quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Reflexões Maçônicas Sobre o Direito, a Vontade e o Poder

 Charles Evaldo Boller

A Fragilidade da Força

A filosofia maçônica, em harmonia com Rousseau, ensina que a força só é justa quando se torna serviço, e o poder só é legítimo quando edifica. O direito do mais forte é a infância da civilização; o direito do mais justo é a sua maturidade. O maçom, ao lapidar sua pedra bruta, transforma o domínio em fraternidade, a força em Luz, o medo em liberdade, e, com isso, constrói dentro de si o Templo do poder.

A Ilusão do Direito do Mais Forte

Jean-Jacques Rousseau, no Contrato Social, denuncia uma das mais antigas ilusões da humanidade: a crença de que a força gera legitimidade. O filósofo revela a fragilidade interna do poder que se sustenta apenas sobre o domínio físico, afirmando que "o mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor". A partir dessa provocação, desdobra-se um dos problemas centrais da filosofia moral e política: pode o poder sem justiça ser legítimo?

A Maçonaria, como escola simbólica e moral, também enfrenta essa questão em seus graus e rituais. Ela ensina que toda força deve ser iluminada pela razão e pela virtude, sob pena de degenerar em tirania. Assim como Rousseau, o pensamento maçônico distingue a força material, efêmera e opressiva, da força moral, perene e libertadora.

O tema se desdobra num terreno comum entre filosofia clássica e esoterismo maçônico: a luta entre o poder exterior e o poder interior, entre o domínio do corpo e o domínio do espírito. A "lei da força" revela-se, então, um espelho quebrado, refletindo a aparência do poder, mas não a sua essência.

A Fraqueza da Força: um Paradoxo Essencial

Rousseau demonstra que a força, quando desprovida de legitimidade, carrega em si a semente de sua própria ruína. Sua natureza é instável: ela dura apenas enquanto o mais forte continua sendo o mais forte. O domínio fundado na violência física é, portanto, passageiro e inconsistente.

Na linguagem maçônica, esse conceito traduz-se pelo símbolo do malho e do cinzel. O malho, instrumento da força bruta, é necessário para moldar a pedra bruta; mas, sem o cinzel, símbolo da razão, o golpe se torna destrutivo. A força precisa ser dirigida pela inteligência; caso contrário, desfigura o que deveria aperfeiçoar.

Do mesmo modo, o poder que se apoia apenas no medo ou na coerção perde rapidamente sua autoridade moral. O tirano, mesmo rodeado de exércitos, dorme inquieto. Sua fraqueza é interior. Já o líder, aquele que guia pela luz da consciência, exerce influência mesmo em silêncio. É o paradoxo maçônico: o forte é fraco quando carece de virtude, e o fraco torna-se forte quando orientado pela sabedoria.

A lição simbólica é clara: a força física corresponde ao primeiro estágio da construção do Templo Interior. É o domínio dos instintos, a energia da base. O iniciado deve aprender a transmutar essa energia em poder criador e moral, elevando o impulso à luz da consciência.

Força e Direito: a Máscara da Dominação

Rousseau afirma que "a força precisa cobrir-se com a aparência exterior do direito". Em outras palavras, o poder ilegítimo procura travestir-se de legitimidade. Assim o fizeram os reis que se declararam "ungidos por Deus", os conquistadores que se chamaram "libertadores", ou as instituições que se disfarçaram de guardiãs da moral enquanto perpetuavam injustiças.

A Maçonaria, desde o Iluminismo, ergueu-se contra essa confusão. Em seus templos, o poder não é hereditário, mas eletivo; não é imposto, mas consentido. O Venerável Mestre simboliza a autoridade legítima que nasce do voto livre e do respeito mútuo. Seu malhete não é instrumento de dominação, mas de harmonia.

Do ponto de vista esotérico, essa transformação da força em direito recorda o processo alquímico de transmutação: a energia inferior (força bruta) é sublimada em energia superior (virtude e justiça). É o trabalho interior que transforma o ferro do poder físico no ouro do poder moral.

A história humana, no entanto, é repleta de falsificações desse princípio. O "direito do mais forte" foi usado para justificar escravidões, colonizações e guerras santas. A cada vez que a força quis vestir a toga do direito, gerou-se sofrimento. O iniciado deve desvelar as máscaras do poder e perguntar-se: o que legitima o mando? O temor ou o amor?

O Poder Legítimo na Ótica Maçônica

O poder legítimo é aquele que nasce do consentimento dos livres e iguais. Rousseau chama isso de "contrato social"; a Maçonaria denomina-o aliança fraternal. Em ambos os casos, trata-se de uma convenção fundada na razão e no respeito mútuo, não na coerção.

No simbolismo maçônico, o Venerável Mestre exerce o poder em nome da Loja, e não sobre a Loja. Seu dever é orientar, não dominar. O poder legítimo é procedimento instrucional e moral, jamais tirânico. Ele emana da Luz que irradia do Oriente, símbolo do conhecimento e da justiça.

Comparando com a filosofia clássica, Aristóteles via a legitimidade como uma forma de areté[1], ou excelência moral: o governante é aquele cuja alma ordena o bem comum. Kant, por sua vez, sustentou que o poder justo é aquele que se harmoniza com o imperativo categórico, isto é, com a lei moral que cada homem reconhece em si. Spinoza completou a ideia, mostrando que o poder autêntico é a expressão da potentia[2] interna, da força de existir conforme a razão.

A Maçonaria incorpora esses ideais ao seu modo simbólico: cada irmão é soberano em sua consciência, e o poder legítimo consiste em ajudar os outros a ascender à mesma soberania interior. Um venerável mestre sem virtude é como uma tocha apagada no altar do Templo.

A Obediência e a Liberdade: da Prudência à Vontade

Rousseau distingue entre ceder à força e obedecer por dever. No primeiro caso, há submissão; no segundo, há liberdade moral. A diferença é sutil, mas fundamental. Ceder à força é um ato de necessidade; obedecer por dever é um ato de vontade.

Para Aristóteles, a vontade é o princípio da ação deliberada. O homem prudente age conforme a razão; o homem submisso age por medo. Kant, séculos depois, afirmaria que a obediência é à lei moral que o próprio sujeito se dá, e não à imposição de outro.

Na Maçonaria, essa distinção manifesta-se nos juramentos: o iniciado promete obedecer às leis e regulamentos da Ordem, não por temor de sanção, mas por consciência de dever. Ele obedece porque quer, não porque precisa. Essa é a obediência do homem livre, a única compatível com a dignidade humana.

Assim, quando o rito ordena silêncio, o aprendiz cala-se não por medo, mas por aprendizado; quando o mestre fala, não impõe, mas ilumina. O poder legítimo, portanto, não se mede pela quantidade de ordens, mas pela profundidade da influência moral que desperta no outro.

A Prudência como Falsa Virtude Quando Desprovida de Liberdade

Rousseau ironiza a ideia de que ceder à força possa ser um ato de prudência. De fato, quando o homem abdica de sua liberdade sob o pretexto de cautela, degenera sua própria razão moral. A prudência que apenas evita o risco é covardia disfarçada.

Na ética maçônica, a prudência é uma das quatro virtudes cardeais, junto à justiça, fortaleza e temperança, mas sua essência é o equilíbrio da razão e da coragem. Ser prudente não é curvar-se, mas discernir o momento de agir com sabedoria. O prudente é aquele que conhece o valor da força interior e a aplica sem violência.

No plano simbólico, essa lição se expressa pela coluna Jônica, que representa o segundo vigilante. É o pilar da moderação e do julgamento justo. Mas se o homem transforma a prudência em medo, a coluna se quebra. Assim, a prudência só é virtude quando orientada pela liberdade; caso contrário, é simples astúcia de sobrevivência.

A filosofia estoica já alertava para isso: Sêneca ensina que "não é livre aquele que vive com medo". A prudência, descolada da vontade, é apenas a máscara de um espírito acovardado. A Maçonaria combate essa servidão interior, convidando o homem a usar sua razão como espada e seu coração como escudo.

O Direito do Mais Forte e o Despertar da Consciência Maçônica

A expressão "direito do mais forte" é, para Rousseau, uma contradição nos termos. Se é direito, não é força; se é força, não é direito. O que se chama "direito do mais forte" é apenas a permanência da força enquanto ela dura.

A filosofia maçônica traduz essa verdade sob a forma de alegoria: o tirano que domina o Templo não é um rei exterior, mas o ego interior. O iniciado, ao vencer a si mesmo, vence o despotismo. O templo que ele constrói é símbolo da consciência desperta, erguida sobre as colunas da sabedoria e da justiça.

Em termos práticos, essa reflexão tem valor profundo para a vida cotidiana do maçom. No trabalho, na família e na sociedade, ele é convidado a exercer autoridade sem opressão e a obedecer sem servilismo. O equilíbrio entre firmeza e humildade é o selo do homem livre.

O poder não se impõe, irradia. É o poder do exemplo, da coerência e da serenidade. Por isso, o mestre maçom que fala com mansidão pode ser mais forte do que o tirano que grita. A força moral é invisível, mas irresistível.

Do ponto de vista esotérico, o direito do mais forte é a sombra do direito do mais sábio. O primeiro nasce do instinto; o segundo, do espírito. O caminho do iniciado é, portanto, a ascensão da força à sabedoria, a passagem do malho ao compasso, do impulso à harmonia.

O Poder Legítimo e a Ascensão do Ser

Rousseau encerra sua crítica com uma advertência: "Nada é mais frágil que um tirano." Sua força depende do medo dos outros; sua ruína começa quando cessa o medo. A Maçonaria ensina o mesmo princípio sob outra forma: "O poder não reside no trono, mas na consciência de quem o ocupa."

A obediência é fruto da vontade esclarecida, não da coerção. O maçom aprende que sua lealdade pertence à Verdade, à Luz, e não a pessoas ou instituições que a obscurecem. O dever de obedecer só existe onde há legitimidade; e a legitimidade nasce da harmonia entre liberdade e moralidade.

O poder legítimo, portanto, é o que se exerce em conformidade com o bem comum, com a lei moral universal e com o amor fraterno. É o poder que edifica o Templo da humanidade, pedra por pedra, com justiça e sabedoria.

Em termos simbólicos, o iniciado deve transformar a força em vontade consciente, a vontade em ação justa, e a ação em obra de Luz. Essa é a transmutação alquímica: a elevação da matéria à consciência.

Assim, "o mais forte" será sempre aquele que, tendo poder, renuncia ao abuso; que, podendo mandar, escolhe servir; que, sendo livre, decide amar. Eis a força suprema, aquela que nenhuma espada destrói, porque nasce do espírito.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Mário da Gama Kury. São Paulo: Martins Fontes, 2009. A obra clássica que define a virtude como meio-termo e a prudência (phronesis) como sabedoria prática. Fundamenta a reflexão sobre a distinção entre atos de vontade e atos de necessidade;

2.      ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Fundamenta a distinção entre poder sagrado (legítimo) e poder profano (coercitivo), aplicável à leitura simbólica da Maçonaria;

3.      FICHTE, Johann Gottlieb. A Doutrina da Ciência. São Paulo: Loyola, 2010. Reforça a ideia de que o eu livre é fundamento da ação moral; o poder legítimo é o que brota da autodeterminação racional;

4.      GUÉNON, René. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos. Lisboa: Vega, 1995. Mostra como a civilização moderna transformou a força em critério de poder, esquecendo o princípio qualitativo do ser;

5.      JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Ajuda a compreender o tirano interior como arquétipo psicológico, o ego dominador que o iniciado deve vencer para libertar o Self;

6.      KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986. Obra essencial para compreender o conceito de dever moral como expressão da razão autônoma, base da obediência livre;

7.      MACKEY, Albert G. Enciclopédia da Maçonaria. São Paulo: Madras, 2005. Reúne interpretações simbólicas e históricas do poder maçônico, reforçando a distinção entre autoridade moral e dominação ritual;

8.      PIKE, Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry. Charleston: Supreme Council, 1871. Obra monumental que interpreta simbolicamente a relação entre força e sabedoria nos graus do Rito Escocês Antigo e Aceito;

9.      ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Paris: Union Générale d'Éditions, 1963. Texto central que inspira este ensaio. Rousseau distingue força e direito, mostrando que a legitimidade nasce da vontade coletiva e não da dominação física;

10.  SÊNECA. Cartas a Lucílio. Tradução J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. Reflexões estoicas sobre a liberdade interior e a distinção entre prudência e medo;

11.  SPINOZA, Baruch. Ética. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Desenvolve a ideia de conatus, a força interna de perseverar no ser, aqui reinterpretada como poder legítimo interior, em contraste com a força externa coercitiva;

12.  WIRTH, Oswald. O Livro do Aprendiz Maçom. São Paulo: Pensamento, 2000. Descreve o simbolismo do malho e do cinzel, relacionando força e razão na construção moral do iniciado;



[1] Para Aristóteles, areté é um conceito central que significa "excelência" ou "virtude" e representa a capacidade de realizar plenamente a função de algo ou alguém. A areté ética é a virtude moral que se desenvolve pelo hábito e se encontra na "justa medida" entre dois extremos viciosos. Atingir a areté, através da ação virtuosa guiada pela razão, é o caminho para a eudaimonia (felicidade ou bem-estar);

[2] Em Spinoza, "potentia" refere-se à potência de uma coisa para perseverar em seu ser, um esforço intrínseco e ativo de existir e agir, e não a uma mera possibilidade ou potencial futuro. Essa potência é uma força ativa, sempre em ato, que se expressa tanto na ética quanto na política. Na ética, a potência é aumentada pela alegria e diminuída pela tristeza; na política, é equiparada ao direito natural, onde "direito e potência são uma só e mesma coisa";

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