A Fragilidade da Força
A filosofia maçônica, em harmonia com Rousseau, ensina que a
força só é justa quando se torna serviço, e o poder só é legítimo quando
edifica. O direito do mais forte é a infância da civilização; o direito do
mais justo é a sua maturidade. O maçom, ao lapidar sua pedra bruta, transforma
o domínio em fraternidade, a força em Luz, o medo em liberdade, e, com isso, constrói dentro de si o Templo do poder.
A Ilusão do Direito do Mais Forte
Jean-Jacques Rousseau, no Contrato Social, denuncia uma das
mais antigas ilusões da humanidade: a crença de que a força gera legitimidade.
O filósofo revela a fragilidade interna do poder que se sustenta apenas sobre o
domínio físico, afirmando que "o
mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor". A
partir dessa provocação, desdobra-se um dos problemas centrais da filosofia
moral e política: pode o poder sem justiça ser
legítimo?
A Maçonaria, como escola simbólica e moral, também enfrenta
essa questão em seus graus e rituais. Ela ensina que toda força deve ser
iluminada pela razão e pela virtude, sob pena de degenerar em tirania. Assim
como Rousseau, o pensamento maçônico distingue a força material, efêmera e
opressiva, da força moral, perene e libertadora.
O tema se desdobra num terreno comum entre filosofia clássica e
esoterismo maçônico: a luta entre o poder exterior e o poder interior, entre o
domínio do corpo e o domínio do espírito. A "lei da força" revela-se, então, um espelho quebrado,
refletindo a aparência do poder, mas não a sua essência.
A Fraqueza da Força: um Paradoxo Essencial
Rousseau demonstra que a força, quando desprovida de
legitimidade, carrega em si a semente de sua própria ruína. Sua natureza é
instável: ela dura apenas enquanto o mais forte continua sendo o mais forte. O
domínio fundado na violência física é, portanto, passageiro e inconsistente.
Na linguagem maçônica, esse conceito traduz-se pelo símbolo do
malho e do cinzel. O malho, instrumento da força bruta, é necessário para
moldar a pedra bruta; mas, sem o cinzel, símbolo da razão, o golpe se torna
destrutivo. A força precisa ser dirigida pela inteligência; caso
contrário, desfigura o que deveria aperfeiçoar.
Do mesmo modo, o poder que se apoia apenas no medo ou na
coerção perde rapidamente sua autoridade moral. O tirano, mesmo rodeado de
exércitos, dorme inquieto. Sua fraqueza é interior. Já o líder, aquele que guia
pela luz da consciência, exerce influência mesmo em silêncio. É o
paradoxo maçônico: o forte é fraco quando carece de virtude, e o fraco
torna-se forte quando orientado pela sabedoria.
A lição simbólica é clara: a força física corresponde ao
primeiro estágio da construção do Templo Interior. É o domínio dos
instintos, a energia da base. O iniciado deve aprender a transmutar essa
energia em poder criador e moral, elevando o impulso à luz da consciência.
Força e Direito: a Máscara da Dominação
Rousseau afirma que "a
força precisa cobrir-se com a aparência exterior do direito". Em
outras palavras, o poder ilegítimo procura travestir-se de legitimidade. Assim
o fizeram os reis que se declararam "ungidos
por Deus", os conquistadores que se chamaram "libertadores", ou as instituições
que se disfarçaram de guardiãs da moral enquanto perpetuavam injustiças.
A Maçonaria, desde o Iluminismo, ergueu-se contra essa
confusão. Em seus templos, o poder não é hereditário, mas eletivo; não é
imposto, mas consentido. O Venerável Mestre simboliza a autoridade legítima
que nasce do voto livre e do respeito mútuo. Seu malhete não é instrumento
de dominação, mas de harmonia.
Do ponto de vista esotérico, essa transformação da força em
direito recorda o processo alquímico de transmutação: a energia inferior (força
bruta) é sublimada em energia superior (virtude e justiça). É o trabalho
interior que transforma o ferro do poder físico no ouro do poder moral.
A história humana, no entanto, é repleta de falsificações desse
princípio. O "direito do mais forte"
foi usado para justificar escravidões, colonizações e guerras santas. A cada
vez que a força quis vestir a toga do direito, gerou-se sofrimento. O iniciado
deve desvelar as máscaras do poder e perguntar-se: o que legitima o mando? O
temor ou o amor?
O Poder Legítimo na Ótica Maçônica
O poder legítimo é aquele que nasce do consentimento dos livres
e iguais. Rousseau chama isso de "contrato
social"; a Maçonaria denomina-o aliança fraternal. Em ambos os
casos, trata-se de uma convenção fundada na razão e no respeito mútuo, não na
coerção.
No simbolismo maçônico, o Venerável Mestre exerce o poder em
nome da Loja, e não sobre a Loja. Seu dever é orientar, não dominar. O poder
legítimo é procedimento instrucional e moral, jamais tirânico. Ele emana da Luz
que irradia do Oriente, símbolo do conhecimento e da justiça.
Comparando com a filosofia clássica, Aristóteles via a
legitimidade como uma forma de areté[1], ou excelência moral:
o governante é aquele cuja alma ordena o bem comum. Kant, por sua vez,
sustentou que o poder justo é aquele que se harmoniza com o imperativo
categórico, isto é, com a lei moral que cada homem reconhece em si. Spinoza
completou a ideia, mostrando que o poder autêntico é a expressão da potentia[2] interna, da força de
existir conforme a razão.
A Maçonaria incorpora esses ideais ao seu modo simbólico: cada
irmão é soberano em sua consciência, e o poder legítimo consiste em ajudar os
outros a ascender à mesma soberania interior. Um venerável mestre sem virtude é como uma tocha apagada
no altar do Templo.
A Obediência e a Liberdade: da Prudência à Vontade
Rousseau distingue entre ceder à força e obedecer por dever. No
primeiro caso, há submissão; no segundo, há liberdade moral. A diferença é
sutil, mas fundamental. Ceder à força é um ato de necessidade; obedecer por
dever é um ato de vontade.
Para Aristóteles, a vontade é o princípio da ação deliberada. O
homem prudente age conforme a razão; o homem submisso age por medo. Kant,
séculos depois, afirmaria que a obediência é à lei moral que o próprio sujeito
se dá, e não à imposição de outro.
Na Maçonaria, essa distinção manifesta-se nos juramentos: o
iniciado promete obedecer às leis e regulamentos da Ordem, não por temor de
sanção, mas por consciência de dever. Ele obedece porque quer, não porque
precisa. Essa é a obediência do homem livre, a única compatível com a dignidade
humana.
Assim, quando o rito ordena silêncio, o aprendiz cala-se não
por medo, mas por aprendizado; quando o mestre fala, não impõe, mas ilumina. O
poder legítimo, portanto, não se mede pela quantidade de ordens, mas pela
profundidade da influência moral que desperta no outro.
A Prudência como Falsa Virtude Quando Desprovida de Liberdade
Rousseau ironiza a ideia de que ceder à força possa ser um ato
de prudência. De fato, quando o homem abdica de sua liberdade sob o pretexto de
cautela, degenera sua própria razão moral. A prudência que apenas evita o risco
é covardia disfarçada.
Na ética maçônica, a prudência é uma das quatro virtudes
cardeais, junto à justiça, fortaleza e temperança, mas sua essência é o
equilíbrio da razão e da coragem. Ser prudente não é curvar-se, mas discernir o
momento de agir com sabedoria. O prudente é aquele que conhece o valor da força
interior e a aplica sem violência.
No plano simbólico, essa lição se expressa pela coluna Jônica,
que representa o segundo vigilante. É o pilar da moderação e do julgamento
justo. Mas se o homem transforma a prudência em medo, a coluna se quebra.
Assim, a prudência só é virtude quando orientada pela liberdade; caso contrário,
é simples astúcia de sobrevivência.
A filosofia estoica já alertava para isso: Sêneca ensina que
"não é livre aquele que vive com
medo". A prudência, descolada da vontade, é apenas a máscara de um
espírito acovardado. A Maçonaria combate essa servidão interior, convidando o
homem a usar sua razão como espada e seu coração como escudo.
O Direito do Mais Forte e o Despertar da Consciência Maçônica
A expressão "direito
do mais forte" é, para Rousseau, uma contradição nos termos. Se é
direito, não é força; se é força, não é direito. O que se chama "direito do mais forte" é apenas a
permanência da força enquanto ela dura.
A filosofia maçônica traduz essa verdade sob a forma de
alegoria: o tirano que domina o Templo não é um rei exterior, mas o ego
interior. O iniciado, ao vencer a si mesmo, vence o despotismo. O templo que
ele constrói é símbolo da consciência desperta, erguida sobre as colunas da
sabedoria e da justiça.
Em termos práticos, essa reflexão tem valor profundo para a
vida cotidiana do maçom. No trabalho, na família e na sociedade, ele é
convidado a exercer autoridade sem opressão e a obedecer sem servilismo. O
equilíbrio entre firmeza e humildade é o selo do homem livre.
O poder não se impõe, irradia. É o poder do exemplo, da coerência
e da serenidade. Por isso, o mestre maçom que fala com mansidão pode ser mais
forte do que o tirano que grita. A força moral é invisível, mas irresistível.
Do ponto de vista esotérico, o direito do mais forte é a sombra
do direito do mais sábio. O primeiro nasce do instinto; o segundo, do espírito.
O caminho do iniciado é, portanto, a ascensão da força à sabedoria, a passagem
do malho ao compasso, do impulso à harmonia.
O Poder Legítimo e a Ascensão do Ser
Rousseau encerra sua crítica com uma advertência: "Nada é mais frágil que um tirano."
Sua força depende do medo dos outros; sua ruína começa quando cessa o medo. A
Maçonaria ensina o mesmo princípio sob outra forma: "O poder não reside no trono, mas na consciência de quem o ocupa."
A obediência é fruto da vontade esclarecida, não da coerção. O
maçom aprende que sua lealdade pertence à Verdade, à Luz, e não a pessoas ou
instituições que a obscurecem. O dever de obedecer só existe onde há
legitimidade; e a legitimidade nasce da harmonia entre liberdade e moralidade.
O poder legítimo, portanto, é o que se exerce em conformidade
com o bem comum, com a lei moral universal e com o amor fraterno. É o poder que
edifica o Templo da humanidade, pedra por pedra, com justiça e sabedoria.
Em termos simbólicos, o iniciado deve transformar a força em
vontade consciente, a vontade em ação justa, e a ação em obra de Luz. Essa
é a transmutação alquímica: a elevação da matéria à consciência.
Assim, "o mais forte"
será sempre aquele que, tendo poder, renuncia ao abuso; que, podendo mandar,
escolhe servir; que, sendo livre, decide amar. Eis a força suprema, aquela que nenhuma
espada destrói, porque nasce do espírito.
Bibliografia Comentada
1.     
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Mário da
Gama Kury. São Paulo: Martins Fontes, 2009. A obra clássica que define a
virtude como meio-termo e a prudência (phronesis) como sabedoria prática.
Fundamenta a reflexão sobre a distinção entre atos de vontade e atos de
necessidade;
2.     
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São
Paulo: Martins Fontes, 1992. Fundamenta a distinção entre poder sagrado
(legítimo) e poder profano (coercitivo), aplicável à leitura simbólica da
Maçonaria;
3.     
FICHTE, Johann Gottlieb. A Doutrina da Ciência.
São Paulo: Loyola, 2010. Reforça a ideia de que o eu livre é fundamento da ação
moral; o poder legítimo é o que brota da autodeterminação racional;
4.     
GUÉNON, René. O Reino da Quantidade e os Sinais
dos Tempos. Lisboa: Vega, 1995. Mostra como a civilização moderna transformou a
força em critério de poder, esquecendo o princípio qualitativo do ser;
5.     
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Ajuda a compreender o tirano interior como
arquétipo psicológico, o ego dominador que o iniciado deve vencer para libertar
o Self;
6.     
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986. Obra essencial
para compreender o conceito de dever moral como expressão da razão autônoma,
base da obediência livre;
7.     
MACKEY, Albert G. Enciclopédia da Maçonaria. São
Paulo: Madras, 2005. Reúne interpretações simbólicas e históricas do poder
maçônico, reforçando a distinção entre autoridade moral e dominação ritual;
8.     
PIKE,
Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of
Freemasonry. Charleston: Supreme Council, 1871. Obra monumental que
interpreta simbolicamente a relação entre força e sabedoria nos graus do Rito
Escocês Antigo e Aceito;
9.     
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social.
Paris: Union Générale d'Éditions, 1963. Texto central que inspira este ensaio.
Rousseau distingue força e direito, mostrando que a legitimidade nasce da
vontade coletiva e não da dominação física;
10.  SÊNECA.
Cartas a Lucílio. Tradução J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1998. Reflexões estoicas sobre a liberdade interior e a distinção
entre prudência e medo;
11.  SPINOZA,
Baruch. Ética. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Desenvolve a ideia de conatus,
a força interna de perseverar no ser, aqui reinterpretada como poder legítimo
interior, em contraste com a força externa coercitiva;
12.  WIRTH,
Oswald. O Livro do Aprendiz Maçom. São Paulo: Pensamento, 2000. Descreve o
simbolismo do malho e do cinzel, relacionando força e razão na construção moral
do iniciado;
[1]
Para Aristóteles, areté é um conceito central que significa
"excelência" ou "virtude" e representa a capacidade de
realizar plenamente a função de algo ou alguém. A areté ética é a virtude moral
que se desenvolve pelo hábito e se encontra na "justa medida" entre
dois extremos viciosos. Atingir a areté, através da ação virtuosa guiada pela
razão, é o caminho para a eudaimonia (felicidade ou bem-estar);
[2]
Em Spinoza, "potentia" refere-se à potência de uma coisa para
perseverar em seu ser, um esforço intrínseco e ativo de existir e agir, e não a
uma mera possibilidade ou potencial futuro. Essa potência é uma força ativa,
sempre em ato, que se expressa tanto na ética quanto na política. Na ética, a
potência é aumentada pela alegria e diminuída pela tristeza; na política, é
equiparada ao direito natural, onde "direito e potência são uma só e mesma
coisa";
 
 

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