quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Comportamento na Sala dos Passos Perdidos e Aprendizagem

 Charles Evaldo Boller

A sala dos passos perdidos é mais do que um espaço de espera: constitui um limiar simbólico entre o mundo profano e o templo, preparando o maçom para o exercício espiritual e filosófico. Nela, os irmãos cultivam cordialidade, respeito e amizade, trocando informações, partilhando experiências e reforçando os laços fraternos. A ausência de regras rígidas não implica desordem, mas pressupõe uma ética implícita baseada na sociabilidade, na docilidade e na consideração mútua. É nesse ambiente que a diversidade de personalidades encontra equilíbrio: os extrovertidos animam, os tímidos se abrem, os dinâmicos organizam, todos contribuindo para a harmonia coletiva. Filosoficamente, a sala representa um espaço de transição, onde passos aparentemente "perdidos" tornam-se preparatórios para a iniciação. Pedagogicamente, constitui um local de aprendizagem informal, em que cada irmão ensina e aprende pelo convívio. Assim, sua função transcende o físico, sendo parte essencial da lapidação do homem maçom e da construção da fraternidade.

Embora, à primeira vista, pareça apenas um espaço físico de transição entre o mundo profano e o espaço sacralizado do templo, ela representa muito mais: é um lugar de encontro, de sociabilidade, de preparação espiritual e emocional para os trabalhos que se seguirão. O estudo do comportamento adequado nesse ambiente exige não apenas uma visão protocolar, mas uma análise filosófica, simbólica e pedagógica da função que ele cumpre na vida maçônica e, por extensão, na formação do homem adulto.

A Natureza Social do Espaço

O homem é, por definição aristotélica, um "zoon politikon[1]", um ser social que encontra na convivência com seus semelhantes a realização de sua própria natureza. A sala dos passos perdidos materializa esse princípio: ali, antes de adentrar o espaço ritualístico, os irmãos se reconhecem, se cumprimentam, trocam palavras de afeto, de conselhos ou de simples atualização sobre a vida cotidiana. Essa prática não é trivial, pois contribui para a coesão interna da Loja, estabelecendo vínculos de amizade e fraternidade que ultrapassam o formalismo do ritual.

Como assinala Norbert Elias em sua análise sobre o processo civilizador, os espaços sociais são reguladores de conduta: neles, aprendemos a modular nossa fala, nossos gestos e nossas emoções de acordo com as normas tácitas de convivência. Assim, o comportamento na sala dos passos perdidos não precisa estar rigidamente codificado, porque a própria dinâmica fraterna, a cordialidade e o respeito mútuo já constituem o suficiente para garantir a harmonia.

Cordialidade, Docilidade e Fraternidade

A cordialidade esperada dos irmãos não deve ser confundida com formalismo. Ao contrário, ela se aproxima da espontaneidade que caracteriza os encontros entre amigos. Abraços, conversas leves, trocas de informações pessoais ou profissionais são manifestações legítimas de afeto e confiança. Tais gestos, no entanto, não são apenas demonstrações sociais: são práticas pedagógicas, pois permitem que cada maçom aprenda, na experiência direta, a arte do convívio humano.

Um ponto ressaltado é a docilidade. Esse traço de comportamento funciona como um antídoto contra os ímpetos dominadores e críticos que, por vezes, podem surgir da diversidade de personalidades. A docilidade não é submissão, mas expressão de equilíbrio e de autocontrole, virtudes indispensáveis a quem pretende adentrar o templo com espírito limpo e aberto à elevação. A docilidade harmoniza, atenua tensões e prepara a atmosfera emocional para os trabalhos iniciáticos.

A Função de Equilíbrio Psicológico

Do ponto de vista psicológico, a sala dos passos perdidos representa um limiar, um intermezzo entre o mundo exterior e o interior. Ali, o maçom não se encontra ainda mergulhado na sacralidade do templo, mas já deixou atrás de si, ao menos simbolicamente, o ruído do mundo exterior. Essa transição é essencial para a saúde emocional, pois permite a cada irmão ajustar sua disposição interna, equilibrar sua mente e preparar-se para o esforço de reflexão e elevação espiritual que a sessão exige.

Carl Gustav Jung destacou a importância dos rituais de passagem como elementos estruturantes da psique humana. A sala dos passos perdidos é justamente um desses limiares simbólicos: um lugar onde o indivíduo se despoja das tensões do cotidiano e se abre à comunhão fraterna. O comportamento nesse espaço deve refletir essa função: respeito, amizade e consideração são atitudes que facilitam o processo de integração e de preparação interior.

A Diversidade de Personalidades e a Sociabilidade

Não se pode ignorar que cada Loja reúne homens de temperamentos diversos: extrovertidos e introvertidos, críticos e conciliadores, operativos e contemplativos. A sala dos passos perdidos funciona como um microcosmo dessa diversidade, obrigando cada um a exercitar sua capacidade de conviver com o diferente. Os extrovertidos têm o papel de animar, de acolher; os mais discretos encontram ali a oportunidade de romper suas barreiras e participar de forma mais aberta; os operativos aproveitam para resolver pendências e dar recados, preparando o bom andamento da sessão.

Essa mistura de personalidades constitui uma escola de sociabilidade. Ela obriga cada irmão a equilibrar sua individualidade com a coletividade, a modular seus impulsos e a cultivar virtudes como a paciência, a tolerância e a escuta. Nesse sentido, a sala dos passos perdidos não é apenas um espaço de espera: é um campo de aprendizado moral e social, plenamente alinhado com os objetivos da Maçonaria enquanto escola de aperfeiçoamento humano.

Simbolismo Filosófico da Sala dos Passos Perdidos

Do ponto de vista simbólico, o nome sala dos passos perdidos sugere uma dimensão filosófica mais profunda. Ali, os passos não são ainda os solenes do templo, mas tampouco os ruidosos do mundo. São passos de transição, que podem parecer "perdidos", mas que, na realidade, preparam o homem para o encontro com o sagrado. Em analogia, pode-se pensar na vida humana como uma grande sala de passos perdidos entre o nascimento e a morte, em que o homem deve aprender a conviver, a partilhar e a preparar-se para um destino maior.

Essa interpretação se aproxima da noção de conatus[2], em Espinosa: o esforço de cada ser em perseverar em seu ser. O convívio fraterno na sala dos passos perdidos é uma manifestação desse conatus, pois permite ao indivíduo reforçar sua essência através do contato com o outro, ampliando sua capacidade de existir de forma mais plena e consciente.

Dimensão Maçônica e Andragógica

Aplicando os princípios da andragogia, pode-se dizer que a sala dos passos perdidos é um espaço de aprendizagem informal, mas altamente significativo. O adulto aprende melhor pela experiência, pelo diálogo e pela observação de modelos de comportamento. Ali, cada maçom é simultaneamente aprendiz e mestre: aprende com os gestos dos outros e ensina pelo exemplo de sua própria conduta. A sociabilidade que se estabelece nesse ambiente é, portanto, parte integrante do processo educativo maçônico.

A Pirâmide da Aprendizagem, proposta por William Glasser, sugere que aprendemos mais quando dialogamos, compartilhamos e ensinamos. Ora, a sala dos passos perdidos é justamente o espaço privilegiado para esse tipo de interação, tornando-se uma extensão pedagógica da Loja.

Preparar o Homem para a Elevação Espiritual e Moral

O comportamento na sala dos passos perdidos não é, pois, uma questão de etiqueta superficial. Ele envolve uma pedagogia do convívio, uma filosofia da docilidade, uma psicologia do equilíbrio e uma simbologia da transição. A cordialidade, a amizade e o respeito esperados dos irmãos nesse ambiente não apenas favorecem a harmonia da sessão, mas cumprem uma função iniciática: preparar o homem para a elevação espiritual e moral que a Maçonaria propõe.

A ausência de regras rígidas não significa ausência de normas, mas a presença de uma ética implícita, sustentada pela fraternidade. Assim, cada irmão, ao ingressar nesse espaço, deve recordar-se de que sua conduta ali é também um exercício de lapidação de sua pedra bruta, um passo necessário para a construção de si mesmo e da sociedade que se deseja mais justa, harmônica e fraterna.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Política. Obra fundamental para compreender a natureza social do homem. O conceito de zoon politikon ilumina a função social da sala dos passos perdidos como espaço de realização da sociabilidade humana;

2.      ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Analisa como os espaços de convivência moldam condutas sociais. Sua teoria ajuda a entender por que a cordialidade e a modulação de comportamentos são esperadas nesse ambiente;

3.      JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Estuda os rituais de passagem e sua função na psique humana. A sala dos passos perdidos é interpretada como um limiar simbólico, um espaço de transição entre dois mundos;

4.      ESPINOSA, Baruch. Ética. O conceito de conatus fornece uma chave filosófica para compreender a importância do convívio fraterno como reforço da essência individual e coletiva;

5.      GLASSER, William. The Choice Theory. Base da Pirâmide da Aprendizagem, mostra como o aprendizado adulto se dá pela interação. A sala dos passos perdidos é um exemplo prático desse processo;

6.      DUMAS, André. La Philosophie Maçonnique. Examina o simbolismo dos espaços maçônicos. Contribui para a interpretação filosófica da sala dos passos perdidos como espaço de preparação espiritual;

7.      MACKEY, Albert G. Enciclopédia da Maçonaria. Reúne informações históricas e simbólicas sobre os ambientes maçônicos, útil para compreender o significado e o uso da sala dos passos perdidos;



[1] Zoon politikon é uma expressão do filósofo grego Aristóteles que significa "animal político". Para Aristóteles, o ser humano é naturalmente inclinado a viver em sociedade, e a polis (cidade-estado) é o local onde o indivíduo se realiza plenamente, desenvolvendo suas virtudes e buscando a felicidade em conjunto com os outros;

[2] Conatus é um termo latino que se refere ao esforço inerente a todo ser para perseverar na sua existência e aprimorar-se. Este conceito filosófico, associado principalmente a Spinoza, descreve uma inclinação fundamental pela autoconservação e um aumento da potência de ser e agir;

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