A crença numa vida futura é um dos mais antigos arquétipos da
consciência humana. Antes mesmo de o homem dominar o fogo ou decifrar o céu
estrelado, já intuía, no silêncio da noite e na profundidade dos ritos fúnebres,
que a existência não se esgotava com o cessar da respiração. Para o Iniciado,
essa intuição não é mero consolo metafísico, mas uma lei universal que expressa
o retorno cíclico da energia, a perenidade do espírito e a continuidade da
consciência. A Maçonaria, herdeira das tradições dos mistérios do Egito, de
Eleusis e de Jerusalém, não define dogmaticamente essa vida futura, mas convida
o homem a experimentá-la desde já, ao elevar-se da condição de profano para a
de obreiro consciente da própria eternidade.
Herança Simbólica e Transformação da Crença
Por herança cultural, muitos homens que se aproximam da Ordem e
trazem consigo a ideia de um juízo após a morte: o Tribunal de Osíris, o
Tribunal de Jeová, o Paraíso, o Inferno, o Purgatório, imagens diversas que têm
em comum o mesmo fundo moral: o peso da consciência
diante da Lei. O maçom, porém, é chamado a depurar tais símbolos,
convertendo o medo em entendimento, e o castigo em aprendizado. O julgamento,
que nas religiões é projetado para o além, é para o Iniciado um processo
interior, constante, autocrítico e libertador.
Nas antigas doutrinas egípcias, a alma, o BA[1], era conduzida à
presença de Osíris, onde seu coração seria pesado contra a pluma de Maat, deusa
da Verdade. Se o coração fosse leve, a alma ascenderia ao Sol, fundindo-se com
Rá, o princípio criador; se pesado, seria devorada por Ammit, a devoradora.
Esse mito, lido à luz maçônica, simboliza a avaliação que cada homem faz de si
mesmo ao confrontar suas obras à medida da Verdade. A pena de Maat representa a
leveza espiritual que decorre da pureza de intenções; o coração pesado é a
consciência carregada pela inércia, pelo egoísmo e pela mentira. Assim, o
Tribunal de Osíris não é um acontecimento pós-mortem, mas a contínua balança
interior onde se mede a retidão do agir.
De modo análogo, o Tribunal de Jeová expressa o julgamento
moral do homem diante de uma Lei transcendente. Contudo, a Maçonaria convida o
Iniciado a reconhecer que essa Lei está também inscrita em sua própria razão e
consciência. O "Céu" é o
estado de harmonia interior; o "Inferno"
é o desequilíbrio das paixões que aprisionam; e o "Purgatório" é o processo alquímico de depuração das emoções e
pensamentos. A teologia externa torna-se, na filosofia maçônica, psicologia
sagrada.
A Evolução do Dogma à Consciência
O maçom que adentra o Templo com a crença num Céu e Inferno
exteriores, gradualmente percebe que esses espaços são projeções de seu próprio
estado de ser. Ao estudar as lições simbólicas da Arte Real, ele aprende que o inferno
é a ignorância e o egoísmo; e o paraíso, é o despertar
da consciência. O purgatório, nesse contexto, é a vida mesma, onde o
homem tem a oportunidade de lapidar a pedra bruta de seu caráter. Assim, a
crença numa vida futura deixa de ser esperança passiva e converte-se em prática
ativa de aperfeiçoamento.
O processo de iniciação, dramatizado na Câmara de Reflexões, é
uma alegoria dessa morte simbólica e renascimento espiritual. O profano, ao
escrever seu testamento e confrontar o silêncio e a escuridão, morre para o
mundo das ilusões e ressuscita para a Luz do Conhecimento. Esse rito, presente
desde os Mistérios de Ísis e Osíris até as iniciações cristãs e alquímicas,
representa a transmutação do homem velho no homem novo. O que morre não é o
corpo, mas a ignorância; o que nasce é a consciência iluminada. A "vida futura", portanto, começa no
instante em que o homem vê a Luz e passa a agir como seu portador.
A Alma e o Silêncio das Constituições
É curioso notar que autores fundamentais da tradição maçônica,
como James Anderson e Albert Mackey, evitam o termo alma em suas Constituições
e enciclopédias. Essa ausência não é descuido, mas uma escolha consciente: a
Maçonaria Especulativa prefere tratar o homem como um ser integral,
indivisível, cuja dimensão espiritual não se separa da material. Ao contrário
do dualismo platônico que opõe corpo e alma, o simbolismo maçônico, herdeiro da
Cabala e da filosofia hermética, vê o homem como microcosmo do Universo,
composto das mesmas energias que animam as estrelas.
Platão, em seu Fédon, concebe a alma como prisioneira do corpo
e liberta pela morte. A Maçonaria, todavia, considera que a libertação se dá
ainda em vida, quando o homem domina suas paixões e submete o corpo à razão
iluminada. Assim, o maçom não espera pela morte para viver a eternidade; ele
constrói, dia a dia, seu templo interior, onde a vida e a morte são faces de
uma mesma realidade vibrante.
Essa perspectiva é reforçada pela passagem bíblica de Gênesis
2:7: "E o homem passou a ser alma
vivente." A alma não é algo que o homem possui, mas o que ele é, a
totalidade de corpo, mente e espírito em harmonia. A morte, então, não é
cessação, mas transformação. O pó retorna ao pó, mas a energia que animava
o ser retorna ao Uno. O maçom compreende que a imortalidade não está em
sobreviver como indivíduo, mas em integrar-se conscientemente à obra do Grande
Arquiteto do Universo.
O Simbolismo da Luz e a Eternidade do Ser
Ver a Luz, na Maçonaria, é perceber-se parte de um todo
energético e divino. O iniciado que experimenta essa iluminação descobre que a
separação entre matéria e espírito é apenas aparente. A energia que o anima é a
mesma que pulsa nas estrelas e vibra nos átomos. Quando o homem morre, essa
energia se reintegra ao cosmos, não como perda, mas como continuidade. "Nada se cria, nada se perde, tudo se
transforma", ensina Lavoisier, e essa máxima é apresentada no coração
do simbolismo maçônico: o ser é eterno porque é energia
em transformação constante.
O Jardim do Éden, portanto, não é uma promessa distante, mas o estado de consciência daquele
que aprendeu a viver em harmonia com as leis naturais e morais do Universo. A
Maçonaria propõe ao homem viver essa "vida
futura" agora, no presente, ao praticar as virtudes, exercitar a
fraternidade e servir à humanidade. O céu e o inferno estão dentro do homem;
é sua escolha que define o estado de sua alma vivente.
A Ciência como Via Iniciática
Curiosamente, a física moderna tem se aproximado da Metafísica.
O conceito de que tudo é energia encontra respaldo tanto nas tábuas herméticas,
"O que está em cima é como o que
está embaixo", quanto na Física Quântica, que revela a natureza
ondulatória e vibracional da matéria. O homem, visto sob essa ótica, é um
campo energético consciente. A morte, nessa perspectiva, é apenas a dispersão
temporária dessa configuração energética.
A Maçonaria, sempre aliada ao progresso da ciência, vê nesses
avanços uma confirmação simbólica de seus princípios. A união da cosmologia e
da mecânica quântica sugere que o Universo é uma rede interligada de
informações e vibrações, uma egrégora cósmica. O iniciado, ao entrar
no templo entre as colunas vestibulares, atravessa o portal que o conduz a esse
Universo interior, onde descobre que seu ser é feito da mesma substância das
estrelas.
Quando a Física Quântica demonstra que partículas subatômicas
podem influenciar-se a distâncias incompreensíveis, rompe-se o paradigma do
isolamento. Cada ato humano reverbera no todo. Essa interconexão é a
base do preceito maçônico da fraternidade universal: "O que fazes ao outro, fazes a ti mesmo." Assim, a crença numa
vida futura adquire novo significado, não como continuidade pessoal, mas como
participação eterna no fluxo energético e moral do cosmos.
Do Temor à Liberdade Espiritual
As religiões dogmáticas, ao prometerem recompensas e
castigos no além, buscaram disciplinar o comportamento humano pelo medo. A
Maçonaria, em contraste, educa o homem pela razão e
pela liberdade. Não há infernos a temer nem céus a comprar: há
apenas o dever moral de tornar-se melhor a cada dia. O julgamento de Osíris e o
tribunal de Jeová são arquétipos da consciência
que cada maçom deve exercer sobre si mesmo. O juiz é o Eu superior, e a
sentença é a própria colheita das ações.
A liberdade maçônica é, portanto, inseparável da
responsabilidade. O homem que compreende a continuidade da vida não busca o bem
por temor, mas por amor à harmonia universal. Vive eticamente não para evitar
o castigo, mas para vibrar em sintonia com a Lei do Amor e da Verdade. Essa
compreensão é a iniciação, o renascimento do homem racional e moral, que se faz
arquiteto de seu destino.
A Egrégora e a Energia da Alma Coletiva
A tradição esotérica maçônica sustenta que, ao se reunirem em
Loja, os irmãos formam uma egrégora, um campo energético coletivo que
transcende a soma de suas individualidades. Essa egrégora é uma manifestação
sensível da alma universal. Quando os maçons abrem seus trabalhos "à glória do Grande Arquiteto do Universo",
estabelecem uma sintonia vibratória com o plano espiritual, permitindo que suas
intenções se unam à corrente cósmica da Luz. Nesse contexto, a "vida futura"
não é uma expectativa distante, mas uma experiência presente de comunhão
energética.
O homem é uma centelha dessa energia criadora. Sua missão é
manter essa centelha acesa, o que as tradições herméticas chamam de "fogo secreto". O apagamento desse
fogo corresponde à morte espiritual, não à física. E reacendê-lo é a tarefa de
toda iniciação. Por isso o maçom deve trabalhar incessantemente em sua pedra
bruta, não para escapar da morte, mas para despertar para a eternidade do ser
que nele habita.
O Universo Interligado e o Homem como Microcosmo
Os templos maçônicos representam o cosmos em miniatura. No
teto, os astros e constelações simbolizam as forças universais; nas paredes, os
signos do zodíaco; no chão, o pavimento mosaico, com seus contrastes de luz e
sombra, expressa a dualidade da existência. O iniciado, ao caminhar nesse
espaço simbólico, reconhece que é parte viva do Todo. Os elétrons e quarks que
compõem seu corpo são da mesma natureza dos que compõem o Sol e as estrelas.
Assim, quando sua forma material se desfaz, nada se perde, apenas muda de
estado vibracional.
A Lei da Correspondência hermética ensina: "Assim como é acima, é abaixo." Essa
máxima surge na consciência do maçom que compreende o elo entre o microcosmo e
o macrocosmo. A crença numa vida futura, então, torna-se compreensão da unidade
universal: a vida é uma só, manifestando-se em infinitas formas e tempos.
Cada existência é uma expressão temporária do eterno.
Morte e Renascimento no Ciclo das Energias
Eclesiastes 3:20 lembra: "Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao
pó." A física moderna confirma esse princípio: os elementos
químicos que formam o corpo humano retornam à biosfera e reintegram o ciclo da
vida. O que chamamos de "morte"
é apenas o retorno dos componentes à grande obra da natureza. Para o maçom, a
morte é a iniciação suprema, a passagem de um grau a outro na escada de Jacó,
onde o espírito ascende gradativamente aos planos superiores de consciência.
A ideia de que partículas podem viajar dez mil vezes mais
rápido que a luz, conforme recentes hipóteses da física quântica, sugere que há
dimensões além do tempo e do espaço perceptíveis. Essas dimensões podem
corresponder aos planos espirituais de que falavam os antigos mestres. Assim, a
alma, entendida como campo de consciência, pode existir em frequências mais
sutis, invisíveis ao olho físico, mas perceptíveis pela intuição e pelo
espírito. A ciência, aos poucos, aproxima-se da sabedoria dos templos
antigos.
A Vida Futura como Estado de Consciência
A Maçonaria ensina que a vida futura é a vida melhorada do
iniciado, aquela que se inicia após a morte simbólica na Câmara de Reflexões. É
uma nova existência na qual o homem vive de acordo com a Luz, consciente de seu
papel como construtor da harmonia universal. Essa "vida futura" não está no além, mas no aqui e agora de quem
despertou.
O profano vive escravo do tempo, da matéria e das paixões; o
iniciado vive no eterno presente do espírito. Ele compreende que cada ato é
semente lançada na eternidade. Viver bem é edificar no plano invisível um
templo que não será destruído pela morte. Esse é o significado oculto da
construção do Templo de Salomão: não um edifício de
pedras, mas a edificação da consciência.
Ética, Fraternidade e Imortalidade
O maçom que crê na continuidade da vida sabe que seus atos
repercutem além de sua existência física. Por isso, cultiva a ética, a caridade
e a fraternidade como instrumentos de construção eterna. Cada gesto de bondade
é uma pedra luminosa colocada no templo invisível da humanidade. A crença numa
vida futura torna-se, assim, uma ética da responsabilidade cósmica: viver é
cooperar com o Grande Arquiteto do Universo na perpetuação da ordem e da beleza.
O inferno, nessa concepção, é a desarmonia interior; o céu, a
serenidade do justo; o purgatório, o aprendizado contínuo. Não há punição
exterior, mas correção interior. A morte não é ruptura, mas passagem; a vida,
não é posse, mas serviço. O homem justo perpetua-se nas obras que realiza e
nas consciências que ilumina. Assim, o maçom trabalha não por glória
pessoal, mas por amor à Obra.
Caminhos Entre a Ciência e o Sagrado
A filosofia maçônica não separa ciência e espiritualidade;
ambas são expressões da busca pela Verdade. A física investiga a estrutura
da matéria; a Maçonaria, a estrutura da moral. Ambas revelam que o Universo é
regido por leis de harmonia. A energia que anima os átomos é a mesma que move o
coração humano. O iniciado reconhece que estudar a natureza é estudar a
divindade, e que compreender as leis universais é praticar uma religião: a religião da Razão iluminada pelo Amor.
A crença numa vida futura não se opõe à ciência, mas a
complementa. Quando o homem entende que é feito de energia e que energia é
indestrutível, ele percebe que sua essência é imortal. O que morre é a
forma; o que vive eternamente é o princípio. Assim, o maçom vê na morte não o
fim, mas a libertação para novas formas de existência.
A Eternidade Começa Agora
A Maçonaria convida o homem a substituir a crença pela
experiência. A vida futura não é promessa: é realidade presente para quem
desperta para a Luz. O iniciado vive como se fosse eterno porque compreende
que o é. Seu corpo é templo passageiro; sua consciência, pedra angular da Obra
Divina.
Viver de modo ético, servir à humanidade, cultivar a sabedoria
e a fraternidade, eis o passaporte para a eternidade. O inferno é ignorar essa
verdade; o paraíso é vivê-la plenamente. A alma do homem é chama do Fogo
Criador, e seu destino é fundir-se, consciente, à Luz que o gerou.
Quando o maçom levanta seu olhar ao Oriente, vê ali o Sol de
Rá, símbolo da energia divina que tudo anima. E ao contemplar as estrelas,
recorda que talvez uma delas seja o brilho de uma alma que retornou à fonte.
Então compreende que nada morre, nada cessa, tudo vibra, tudo continua.
A crença numa vida futura, para o Iniciado,
é a certeza silenciosa de que cada respiração é parte da respiração do
Universo.
Bibliografia Comentada
1.
ANDERSON,
James. Constitutions of the Free-Masons. Londres, 1723. Obra fundacional
da Maçonaria Especulativa. Notável pela ausência da palavra "alma",
enfatizando a vida futura como continuidade moral e não dogmática;
2.
ARISTÓTELES. De Anima. Tradução Maria Cecília
Gomes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. Trata da alma como princípio
vital do corpo, antecipando a ideia;
3.
MACKEY, Albert G. Encyclopedia of Freemasonry.
Chicago, 1873. Compilação de conceitos maçônicos. Define "vida
futura" em termos éticos e filosóficos, associando-a à perfeição
progressiva do homem;
4.
PLATÃO. Fédon. Tradução Carlos Alberto Nunes.
Belém: UFPA, 2001. Diálogo sobre a imortalidade da alma. Serve como contraponto
ao conceito maçônico de imortalidade pela consciência e não pela separação
dualista;
[1]
Nas antigas doutrinas egípcias, a alma não era uma entidade única, mas uma
composição de múltiplos elementos, incluindo o Ba, que representava a personalidade
e a liberdade de movimento do falecido. O BA era uma das partes mais
importantes do complexo conceito de ser dos egípcios, que também incluía o Ka
(força vital) e o Akh (o espírito glorificado);

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