terça-feira, 28 de outubro de 2025

Crença Numa Vida Futura, Reflexão Maçônica Sobre a Eternidade do Ser

 Charles Evaldo Boller

A crença numa vida futura é um dos mais antigos arquétipos da consciência humana. Antes mesmo de o homem dominar o fogo ou decifrar o céu estrelado, já intuía, no silêncio da noite e na profundidade dos ritos fúnebres, que a existência não se esgotava com o cessar da respiração. Para o Iniciado, essa intuição não é mero consolo metafísico, mas uma lei universal que expressa o retorno cíclico da energia, a perenidade do espírito e a continuidade da consciência. A Maçonaria, herdeira das tradições dos mistérios do Egito, de Eleusis e de Jerusalém, não define dogmaticamente essa vida futura, mas convida o homem a experimentá-la desde já, ao elevar-se da condição de profano para a de obreiro consciente da própria eternidade.

Herança Simbólica e Transformação da Crença

Por herança cultural, muitos homens que se aproximam da Ordem e trazem consigo a ideia de um juízo após a morte: o Tribunal de Osíris, o Tribunal de Jeová, o Paraíso, o Inferno, o Purgatório, imagens diversas que têm em comum o mesmo fundo moral: o peso da consciência diante da Lei. O maçom, porém, é chamado a depurar tais símbolos, convertendo o medo em entendimento, e o castigo em aprendizado. O julgamento, que nas religiões é projetado para o além, é para o Iniciado um processo interior, constante, autocrítico e libertador.

Nas antigas doutrinas egípcias, a alma, o BA[1], era conduzida à presença de Osíris, onde seu coração seria pesado contra a pluma de Maat, deusa da Verdade. Se o coração fosse leve, a alma ascenderia ao Sol, fundindo-se com Rá, o princípio criador; se pesado, seria devorada por Ammit, a devoradora. Esse mito, lido à luz maçônica, simboliza a avaliação que cada homem faz de si mesmo ao confrontar suas obras à medida da Verdade. A pena de Maat representa a leveza espiritual que decorre da pureza de intenções; o coração pesado é a consciência carregada pela inércia, pelo egoísmo e pela mentira. Assim, o Tribunal de Osíris não é um acontecimento pós-mortem, mas a contínua balança interior onde se mede a retidão do agir.

De modo análogo, o Tribunal de Jeová expressa o julgamento moral do homem diante de uma Lei transcendente. Contudo, a Maçonaria convida o Iniciado a reconhecer que essa Lei está também inscrita em sua própria razão e consciência. O "Céu" é o estado de harmonia interior; o "Inferno" é o desequilíbrio das paixões que aprisionam; e o "Purgatório" é o processo alquímico de depuração das emoções e pensamentos. A teologia externa torna-se, na filosofia maçônica, psicologia sagrada.

A Evolução do Dogma à Consciência

O maçom que adentra o Templo com a crença num Céu e Inferno exteriores, gradualmente percebe que esses espaços são projeções de seu próprio estado de ser. Ao estudar as lições simbólicas da Arte Real, ele aprende que o inferno é a ignorância e o egoísmo; e o paraíso, é o despertar da consciência. O purgatório, nesse contexto, é a vida mesma, onde o homem tem a oportunidade de lapidar a pedra bruta de seu caráter. Assim, a crença numa vida futura deixa de ser esperança passiva e converte-se em prática ativa de aperfeiçoamento.

O processo de iniciação, dramatizado na Câmara de Reflexões, é uma alegoria dessa morte simbólica e renascimento espiritual. O profano, ao escrever seu testamento e confrontar o silêncio e a escuridão, morre para o mundo das ilusões e ressuscita para a Luz do Conhecimento. Esse rito, presente desde os Mistérios de Ísis e Osíris até as iniciações cristãs e alquímicas, representa a transmutação do homem velho no homem novo. O que morre não é o corpo, mas a ignorância; o que nasce é a consciência iluminada. A "vida futura", portanto, começa no instante em que o homem vê a Luz e passa a agir como seu portador.

A Alma e o Silêncio das Constituições

É curioso notar que autores fundamentais da tradição maçônica, como James Anderson e Albert Mackey, evitam o termo alma em suas Constituições e enciclopédias. Essa ausência não é descuido, mas uma escolha consciente: a Maçonaria Especulativa prefere tratar o homem como um ser integral, indivisível, cuja dimensão espiritual não se separa da material. Ao contrário do dualismo platônico que opõe corpo e alma, o simbolismo maçônico, herdeiro da Cabala e da filosofia hermética, vê o homem como microcosmo do Universo, composto das mesmas energias que animam as estrelas.

Platão, em seu Fédon, concebe a alma como prisioneira do corpo e liberta pela morte. A Maçonaria, todavia, considera que a libertação se dá ainda em vida, quando o homem domina suas paixões e submete o corpo à razão iluminada. Assim, o maçom não espera pela morte para viver a eternidade; ele constrói, dia a dia, seu templo interior, onde a vida e a morte são faces de uma mesma realidade vibrante.

Essa perspectiva é reforçada pela passagem bíblica de Gênesis 2:7: "E o homem passou a ser alma vivente." A alma não é algo que o homem possui, mas o que ele é, a totalidade de corpo, mente e espírito em harmonia. A morte, então, não é cessação, mas transformação. O pó retorna ao pó, mas a energia que animava o ser retorna ao Uno. O maçom compreende que a imortalidade não está em sobreviver como indivíduo, mas em integrar-se conscientemente à obra do Grande Arquiteto do Universo.

O Simbolismo da Luz e a Eternidade do Ser

Ver a Luz, na Maçonaria, é perceber-se parte de um todo energético e divino. O iniciado que experimenta essa iluminação descobre que a separação entre matéria e espírito é apenas aparente. A energia que o anima é a mesma que pulsa nas estrelas e vibra nos átomos. Quando o homem morre, essa energia se reintegra ao cosmos, não como perda, mas como continuidade. "Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", ensina Lavoisier, e essa máxima é apresentada no coração do simbolismo maçônico: o ser é eterno porque é energia em transformação constante.

O Jardim do Éden, portanto, não é uma promessa distante, mas o estado de consciência daquele que aprendeu a viver em harmonia com as leis naturais e morais do Universo. A Maçonaria propõe ao homem viver essa "vida futura" agora, no presente, ao praticar as virtudes, exercitar a fraternidade e servir à humanidade. O céu e o inferno estão dentro do homem; é sua escolha que define o estado de sua alma vivente.

A Ciência como Via Iniciática

Curiosamente, a física moderna tem se aproximado da Metafísica. O conceito de que tudo é energia encontra respaldo tanto nas tábuas herméticas, "O que está em cima é como o que está embaixo", quanto na Física Quântica, que revela a natureza ondulatória e vibracional da matéria. O homem, visto sob essa ótica, é um campo energético consciente. A morte, nessa perspectiva, é apenas a dispersão temporária dessa configuração energética.

A Maçonaria, sempre aliada ao progresso da ciência, vê nesses avanços uma confirmação simbólica de seus princípios. A união da cosmologia e da mecânica quântica sugere que o Universo é uma rede interligada de informações e vibrações, uma egrégora cósmica. O iniciado, ao entrar no templo entre as colunas vestibulares, atravessa o portal que o conduz a esse Universo interior, onde descobre que seu ser é feito da mesma substância das estrelas.

Quando a Física Quântica demonstra que partículas subatômicas podem influenciar-se a distâncias incompreensíveis, rompe-se o paradigma do isolamento. Cada ato humano reverbera no todo. Essa interconexão é a base do preceito maçônico da fraternidade universal: "O que fazes ao outro, fazes a ti mesmo." Assim, a crença numa vida futura adquire novo significado, não como continuidade pessoal, mas como participação eterna no fluxo energético e moral do cosmos.

Do Temor à Liberdade Espiritual

As religiões dogmáticas, ao prometerem recompensas e castigos no além, buscaram disciplinar o comportamento humano pelo medo. A Maçonaria, em contraste, educa o homem pela razão e pela liberdade. Não há infernos a temer nem céus a comprar: há apenas o dever moral de tornar-se melhor a cada dia. O julgamento de Osíris e o tribunal de Jeová são arquétipos da consciência que cada maçom deve exercer sobre si mesmo. O juiz é o Eu superior, e a sentença é a própria colheita das ações.

A liberdade maçônica é, portanto, inseparável da responsabilidade. O homem que compreende a continuidade da vida não busca o bem por temor, mas por amor à harmonia universal. Vive eticamente não para evitar o castigo, mas para vibrar em sintonia com a Lei do Amor e da Verdade. Essa compreensão é a iniciação, o renascimento do homem racional e moral, que se faz arquiteto de seu destino.

A Egrégora e a Energia da Alma Coletiva

A tradição esotérica maçônica sustenta que, ao se reunirem em Loja, os irmãos formam uma egrégora, um campo energético coletivo que transcende a soma de suas individualidades. Essa egrégora é uma manifestação sensível da alma universal. Quando os maçons abrem seus trabalhos "à glória do Grande Arquiteto do Universo", estabelecem uma sintonia vibratória com o plano espiritual, permitindo que suas intenções se unam à corrente cósmica da Luz. Nesse contexto, a "vida futura" não é uma expectativa distante, mas uma experiência presente de comunhão energética.

O homem é uma centelha dessa energia criadora. Sua missão é manter essa centelha acesa, o que as tradições herméticas chamam de "fogo secreto". O apagamento desse fogo corresponde à morte espiritual, não à física. E reacendê-lo é a tarefa de toda iniciação. Por isso o maçom deve trabalhar incessantemente em sua pedra bruta, não para escapar da morte, mas para despertar para a eternidade do ser que nele habita.

O Universo Interligado e o Homem como Microcosmo

Os templos maçônicos representam o cosmos em miniatura. No teto, os astros e constelações simbolizam as forças universais; nas paredes, os signos do zodíaco; no chão, o pavimento mosaico, com seus contrastes de luz e sombra, expressa a dualidade da existência. O iniciado, ao caminhar nesse espaço simbólico, reconhece que é parte viva do Todo. Os elétrons e quarks que compõem seu corpo são da mesma natureza dos que compõem o Sol e as estrelas. Assim, quando sua forma material se desfaz, nada se perde, apenas muda de estado vibracional.

A Lei da Correspondência hermética ensina: "Assim como é acima, é abaixo." Essa máxima surge na consciência do maçom que compreende o elo entre o microcosmo e o macrocosmo. A crença numa vida futura, então, torna-se compreensão da unidade universal: a vida é uma só, manifestando-se em infinitas formas e tempos. Cada existência é uma expressão temporária do eterno.

Morte e Renascimento no Ciclo das Energias

Eclesiastes 3:20 lembra: "Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó." A física moderna confirma esse princípio: os elementos químicos que formam o corpo humano retornam à biosfera e reintegram o ciclo da vida. O que chamamos de "morte" é apenas o retorno dos componentes à grande obra da natureza. Para o maçom, a morte é a iniciação suprema, a passagem de um grau a outro na escada de Jacó, onde o espírito ascende gradativamente aos planos superiores de consciência.

A ideia de que partículas podem viajar dez mil vezes mais rápido que a luz, conforme recentes hipóteses da física quântica, sugere que há dimensões além do tempo e do espaço perceptíveis. Essas dimensões podem corresponder aos planos espirituais de que falavam os antigos mestres. Assim, a alma, entendida como campo de consciência, pode existir em frequências mais sutis, invisíveis ao olho físico, mas perceptíveis pela intuição e pelo espírito. A ciência, aos poucos, aproxima-se da sabedoria dos templos antigos.

A Vida Futura como Estado de Consciência

A Maçonaria ensina que a vida futura é a vida melhorada do iniciado, aquela que se inicia após a morte simbólica na Câmara de Reflexões. É uma nova existência na qual o homem vive de acordo com a Luz, consciente de seu papel como construtor da harmonia universal. Essa "vida futura" não está no além, mas no aqui e agora de quem despertou.

O profano vive escravo do tempo, da matéria e das paixões; o iniciado vive no eterno presente do espírito. Ele compreende que cada ato é semente lançada na eternidade. Viver bem é edificar no plano invisível um templo que não será destruído pela morte. Esse é o significado oculto da construção do Templo de Salomão: não um edifício de pedras, mas a edificação da consciência.

Ética, Fraternidade e Imortalidade

O maçom que crê na continuidade da vida sabe que seus atos repercutem além de sua existência física. Por isso, cultiva a ética, a caridade e a fraternidade como instrumentos de construção eterna. Cada gesto de bondade é uma pedra luminosa colocada no templo invisível da humanidade. A crença numa vida futura torna-se, assim, uma ética da responsabilidade cósmica: viver é cooperar com o Grande Arquiteto do Universo na perpetuação da ordem e da beleza.

O inferno, nessa concepção, é a desarmonia interior; o céu, a serenidade do justo; o purgatório, o aprendizado contínuo. Não há punição exterior, mas correção interior. A morte não é ruptura, mas passagem; a vida, não é posse, mas serviço. O homem justo perpetua-se nas obras que realiza e nas consciências que ilumina. Assim, o maçom trabalha não por glória pessoal, mas por amor à Obra.

Caminhos Entre a Ciência e o Sagrado

A filosofia maçônica não separa ciência e espiritualidade; ambas são expressões da busca pela Verdade. A física investiga a estrutura da matéria; a Maçonaria, a estrutura da moral. Ambas revelam que o Universo é regido por leis de harmonia. A energia que anima os átomos é a mesma que move o coração humano. O iniciado reconhece que estudar a natureza é estudar a divindade, e que compreender as leis universais é praticar uma religião: a religião da Razão iluminada pelo Amor.

A crença numa vida futura não se opõe à ciência, mas a complementa. Quando o homem entende que é feito de energia e que energia é indestrutível, ele percebe que sua essência é imortal. O que morre é a forma; o que vive eternamente é o princípio. Assim, o maçom vê na morte não o fim, mas a libertação para novas formas de existência.

A Eternidade Começa Agora

A Maçonaria convida o homem a substituir a crença pela experiência. A vida futura não é promessa: é realidade presente para quem desperta para a Luz. O iniciado vive como se fosse eterno porque compreende que o é. Seu corpo é templo passageiro; sua consciência, pedra angular da Obra Divina.

Viver de modo ético, servir à humanidade, cultivar a sabedoria e a fraternidade, eis o passaporte para a eternidade. O inferno é ignorar essa verdade; o paraíso é vivê-la plenamente. A alma do homem é chama do Fogo Criador, e seu destino é fundir-se, consciente, à Luz que o gerou.

Quando o maçom levanta seu olhar ao Oriente, vê ali o Sol de Rá, símbolo da energia divina que tudo anima. E ao contemplar as estrelas, recorda que talvez uma delas seja o brilho de uma alma que retornou à fonte. Então compreende que nada morre, nada cessa, tudo vibra, tudo continua.

A crença numa vida futura, para o Iniciado, é a certeza silenciosa de que cada respiração é parte da respiração do Universo.

Bibliografia Comentada

1.      ANDERSON, James. Constitutions of the Free-Masons. Londres, 1723. Obra fundacional da Maçonaria Especulativa. Notável pela ausência da palavra "alma", enfatizando a vida futura como continuidade moral e não dogmática;

2.      ARISTÓTELES. De Anima. Tradução Maria Cecília Gomes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. Trata da alma como princípio vital do corpo, antecipando a ideia;

3.      MACKEY, Albert G. Encyclopedia of Freemasonry. Chicago, 1873. Compilação de conceitos maçônicos. Define "vida futura" em termos éticos e filosóficos, associando-a à perfeição progressiva do homem;

4.      PLATÃO. Fédon. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 2001. Diálogo sobre a imortalidade da alma. Serve como contraponto ao conceito maçônico de imortalidade pela consciência e não pela separação dualista;



[1] Nas antigas doutrinas egípcias, a alma não era uma entidade única, mas uma composição de múltiplos elementos, incluindo o Ba, que representava a personalidade e a liberdade de movimento do falecido. O BA era uma das partes mais importantes do complexo conceito de ser dos egípcios, que também incluía o Ka (força vital) e o Akh (o espírito glorificado);

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