terça-feira, 28 de outubro de 2025

Antiga Prece Judaica e a Filosofia Maçônica da Iluminação Interior

 Charles Evaldo Boller

Antiga Prece Judaica

Da covardia que foge da nova verdade,

Da preguiça que se contenta com meias-verdades,

Da arrogância que pensa que sabe toda a verdade,

Oh! Deus da verdade, livrai-nos!

A prece judaica é um espelho do labor maçônico: orar é lapidar; pensar é construir; mudar é renascer. Que o homem, ao proferi-la, torne-se arquiteto de si mesmo, instrumento do Grande Arquiteto do Universo na edificação da Verdade.

A antiga prece judaica que pede libertação é uma súplica profundamente iniciática. Seu sentido transcende a religiosidade formal e adentra os domínios da filosofia moral e da espiritualidade esotérica, identificando-se com a senda maçônica. A Maçonaria, ao propor a lapidação da pedra bruta, convoca o homem a essa mesma atitude de vigilância interior: superar o medo, o comodismo e a soberba intelectual. Esses três males, covardia, preguiça e arrogância, são os grandes inimigos da iluminação interior e constituem, simbolicamente, as três colunas invertidas que ameaçam o Templo da Verdade.

O Clamor pela Verdade e o Espírito da Iniciação

A prece, em sua simplicidade poética, revela o drama da condição humana: o homem deseja a verdade, mas teme suas consequências. No plano maçônico, esse temor é representado pela resistência à iniciação, o medo de atravessar o véu da ignorância e ver-se despojado das certezas mundanas. A Iniciação, enquanto rito e metáfora, é um processo de ruptura ontológica, onde o ser profano morre simbolicamente para renascer como buscador.

A Maçonaria ensina que a Verdade não é posse, mas caminho. De Albert Pike, em Morals and Dogma, verte: "A Verdade é um raio do Sol Divino; ela ilumina quem a busca, mas cega quem a pretende possuir." O maçom é um peregrino do conhecimento, não seu proprietário. A prece judaica, nesse sentido, é uma oração do aprendiz, aquele que reconhece sua ignorância como o primeiro passo da sabedoria.

Covardia e o Medo da Nova Verdade

A primeira súplica, "Da covardia que foge da nova verdade", aponta para o medo de abandonar as zonas de conforto mental e espiritual. O covarde não é apenas aquele que foge da batalha física, mas o que evita o combate interior contra seus próprios dogmas. No simbolismo maçônico, essa covardia é o apego à pedra bruta, a recusa em usar o malho e o cinzel para transformar-se.

Platão já advertia, no mito da caverna, que os homens preferem a segurança das sombras à dor da luz. O iniciado, ao contrário, escolhe a luz ainda que ela o fira nos olhos. É o mesmo gesto do neófito que, ao ser desvendado, contempla a chama das velas no Templo e entende que cada centelha é um chamado à coragem de pensar. Emmanuel Kant, em seu célebre ensaio "Was ist Aufklärung?", define a maioridade espiritual como a coragem de servir-se do próprio entendimento. O maçom, ao ser iniciado, é exortado a sair dessa minoridade autoimposta, a libertar-se da tutela de outros e a pensar com autonomia.

A covardia não é ausência de força física, mas de independência intelectual. Ela é a antítese da liberdade maçônica. Em Loja, o trabalho começa quando o irmão ousa colocar suas convicções à prova da razão e do diálogo. A coragem de pensar é a mais alta virtude do espírito livre.

Preguiça e as Meias Verdades

A segunda súplica, "Da preguiça que se contenta com meias-verdades", denuncia o conformismo intelectual, o mais perigoso dos vícios para o iniciado. A preguiça espiritual é a estagnação da alma; é a recusa de buscar o significado oculto por detrás do símbolo. Em termos esotéricos, é permanecer no vestíbulo do Templo sem desejar penetrar no Sanctum Sanctorum.

O aprendiz que se satisfaz com interpretações superficiais dos símbolos maçônicos trai o espírito da Ordem. O livro da lei repousa sobre o altar não como dogma, mas como convite à interpretação contínua. Cada letra, cada palavra, cada gesto ritual é um véu que pede para ser levantado. A preguiça mental é o oposto da vigilância do iniciado, virtude sem a qual o Templo interior desmorona.

Na filosofia clássica, Aristóteles via na acídia, a preguiça moral, um dos vícios capitais, pois impede o homem de agir conforme sua natureza racional. O homem preguiçoso abdica da finalidade que lhe é própria: o exercício da virtude pela razão. O maçom, ao contrário, deve cultivar o labor interior, a ars longa da autoeducação[1], lembrando que o trabalho é o princípio ativo da transformação. "A Maçonaria é trabalho", repete o ritual, não apenas o trabalho material, mas o labor alquímico da alma.

Em termos práticos, essa prece pode ser traduzida na vida cotidiana como o compromisso de revisar crenças, estudar, meditar e questionar. O maçom preguiçoso é o que assiste às sessões, mas não as vive; é o que repete palavras sem se deixar transformar por elas.

Arrogância e a Ilusão de Saber Toda a Verdade

A terceira súplica, "Da arrogância que pensa que sabe toda a verdade", é talvez a mais profunda. A arrogância é o pecado do intelecto, o hybris[2] dos sábios. Na tradição maçônica, representa o mestre que esqueceu o espírito do aprendiz. O sábio, como o rei Salomão, ajoelha-se diante do mistério.

Hermes Trismegisto, em sua Tábua de Esmeralda, ensina que "o que está em cima é como o que está embaixo", mas essa correspondência não é total: o homem reflete o divino de modo fragmentário. A arrogância espiritual nasce quando o homem confunde o reflexo com o sol. Por isso a Maçonaria insiste no simbolismo da Luz: ela é algo que se recebe, não que se possui.

O orgulho do saber é o maior obstáculo ao progresso filosófico. Spinoza, ao falar do conatus, descreve o impulso natural de cada ser em perseverar em sua essência. No homem, esse conatus é a busca da perfeição, mas, quando distorcido pelo orgulho, transforma-se em desejo de dominação. O maçom arrogante não busca compreender, busca vencer debates, impor interpretações, exibir erudição. Esquece que o templo é coletivo, e que cada pedra, cada irmão, carrega uma verdade parcial que só ganha sentido no conjunto.

Assim, o exercício maçônico da humildade é também um método epistemológico: reconhecer a incompletude do próprio saber como condição para continuar aprendendo. Como dizia Sócrates, "só sei que nada sei", máxima que, dentro da Loja, transforma-se em farol da fraternidade intelectual.

A Dor da Mudança e o Papel da Loja

"Modificar-se é doloroso!", e essa dor é o preço da iniciação. A Maçonaria, ao promover o trabalho em grupo, reconhece que a transformação do ser humano é mais fecunda quando realizada em fraternidade. A Loja é o laboratório do espírito, o espaço seguro onde o homem experimenta a coragem de ser outro.

No simbolismo hermético, o processo iniciático é comparado à alquimia: o chumbo das paixões deve ser transmutado no ouro da consciência. Essa operação não se faz isoladamente; requer o calor do fogo coletivo, o atrito das opiniões, o reflexo do outro. Por isso, o trabalho maçônico é essencialmente dialógico. A Verdade nasce do encontro, do embate respeitoso entre pontos de vista. "O ferro se afia com o ferro", diz o Provérbio, e o maçom se aperfeiçoa com o irmão.

Na prática, isso significa ouvir. Ouvir com paciência, sem a ânsia de responder. O debate filosófico maçônico é exercício de tolerância racional. Cada palavra pronunciada na Loja é uma pedra colocada no edifício simbólico do conhecimento. O silêncio atento é o cinzel que permite lapidar as ideias alheias e, por reflexo, as próprias.

A dor da mudança é o eco do martelo batendo na pedra interior. O maçom suporta essa dor porque compreende que cada golpe é libertação: liberta o ser de suas arestas, de suas vaidades, de suas ilusões. Assim, o sofrimento é mestre e aliado. "Sem fogo, o ouro não se purifica", ensina a alquimia espiritual.

A Iluminação e o Esclarecimento

A "Iluminação" da iniciação maçônica é a saída da minoridade espiritual. É o momento em que o homem descobre que a Luz que buscava fora sempre esteve dentro. Esse instante, simultaneamente simbólico e psicológico, é o nascimento do "Homem Novo" de que falam as tradições esotéricas.

Na filosofia clássica, esse despertar equivale ao noûs[3] de Anaxágoras, a inteligência ordenadora que dá forma ao caos. No campo cristão-hermético, é o "fiat lux" interior, o verbo criador que se manifesta no microcosmo humano. Para o maçom, é o momento em que a mente deixa de ser mera receptora e se torna fonte de Luz.

O termo "esclarecimento", usado na tradição iluminista e retomado na Maçonaria Especulativa, carrega o mesmo sentido: libertar-se da ignorância pela razão. Mas a luz maçônica não é apenas racional; é também moral e espiritual. É uma Luz que aquece, não apenas que revela. É o fogo tríplice, sabedoria, força e beleza, que dá harmonia à existência.

Assim, a iluminação não é um evento, mas um processo contínuo. Cada sessão em Loja é uma pequena iniciação, cada debate é um novo nascer do sol. O maçom vive em constante alvorecer.

O Valor da Tolerância e o Sofrimento da Escuta

A tolerância implica em sofrimento. Essa observação é de profunda sabedoria. Tolerar é suportar a dissonância sem reagir de imediato; é deixar que o outro seja sem tentar moldá-lo à própria imagem. O maçom aprende, pela convivência, que a verdade não se impõe, é compartilhada.

No entanto, o excesso de tolerância anula a própria virtude. Assim como a corda muito tensa se rompe e a frouxa não produz som, a tolerância exige equilíbrio. É preciso saber quando ceder e quando firmar-se na coluna da retidão. Essa tensão é o que mantém viva a chama do diálogo.

Na prática maçônica, esse equilíbrio se expressa no respeito aos rituais e à liberdade de expressão. A Loja é espaço de ordem e de liberdade, duas forças que se complementam como as colunas J e B. Sem ordem, há caos; sem liberdade, há tirania. A tolerância é a chave que harmoniza ambos.

O sofrimento que acompanha a escuta ativa é o mesmo da lapidação: é a fricção necessária para o brilho. Ao acolher ideias novas, o maçom experimenta o desconforto da revisão, mas também o júbilo do crescimento.

A Verdade Coletiva e o Corpo Maçônico

A Verdade "é construída pela soma dos intelectos". Essa concepção é profundamente platônica e ao mesmo tempo moderna. Platão via a Verdade como reminiscência de uma forma ideal, acessível apenas em parte. A Maçonaria, por sua vez, vê a Verdade como construção coletiva, uma catedral edificada por muitas mãos.

Cada irmão contribui com uma pedra, seu pensamento, sua experiência, sua intuição. Nenhuma pedra é o templo inteiro, mas sem ela o templo não se ergue. Essa é a beleza da fraternidade intelectual: cada fragmento de luz reflete um aspecto do Grande Arquiteto do Universo.

Essa compreensão dissolve o ego e cria uma ética do diálogo. O maçom aprende a pensar com o outro, não contra o outro. Essa atitude é o antídoto contra a arrogância intelectual e o fundamento da sabedoria prática.

Exemplos Práticos na Vida Profana

A filosofia dessa prece e seu paralelo maçônico encontram aplicação em múltiplas dimensões da vida. No trabalho, o homem iluminado sabe ouvir, respeitar opiniões e inovar sem medo. No lar, pratica a tolerância e reconhece o valor da palavra do outro. Na sociedade, atua com coragem moral para defender a Verdade, mesmo quando impopular.

O empresário que questiona práticas injustas, o professor que revisa seus métodos, o cidadão que busca informação antes de opinar, todos são maçons em espírito, ainda que não iniciados. A Maçonaria, como escola simbólica da humanidade, oferece instrumentos para que cada indivíduo construa seu próprio altar interior, onde a Verdade é cultuada sem fanatismo.

O Templo da Verdade

A antiga prece judaica e a filosofia maçônica convergem num ponto essencial: a busca da verdade é um ato de libertação. Libertar-se do medo, do comodismo e da soberba é libertar-se de si mesmo. A Verdade, na Maçonaria, não é um dogma, mas um horizonte. O Templo nunca se conclui, porque o homem é obra inacabada do Grande Arquiteto do Universo.

Que cada maçom, ao lembrar essas palavras, renove o compromisso de trabalhar sua pedra interior, de amar a Luz mais do que as sombras, e de transformar o sofrimento em sabedoria. Assim, a prece torna-se prática, e o Templo, que é o próprio homem, resplandece.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Fundamenta o conceito de virtude como equilíbrio e hábito racional, base da ética maçônica e da noção de tolerância equilibrada;

2.      CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. Relaciona ciência e espiritualidade, mostrando que a verdadeira iluminação é um processo de integração entre razão e intuição, ecoando o ideal maçônico do equilíbrio entre ciência e fé;

3.      GUÉNON, René. Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada. Analisa os símbolos universais sob a ótica esotérica, elucidando o valor iniciático do trabalho coletivo e do autoconhecimento;

4.      HERMES TRISMEGISTO. Tábua de Esmeralda. Texto essencial do hermetismo, ensina a correspondência entre macrocosmo e microcosmo, inspiração simbólica para a ideia maçônica de que o Templo exterior reflete o interior;

5.      KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Esclarecimento? (1784). Define a "maioridade" do homem como o uso autônomo da razão - ideia diretamente refletida na filosofia maçônica da iluminação interior;

6.      MACKEY, Albert. Encyclopedia of Freemasonry. Fonte de referência sobre a simbologia e o pensamento maçônico, reforçando o papel da fraternidade e da busca compartilhada da verdade;

7.      PIKE, Albert. Morals and Dogma (1871). Obra fundamental do Rito Escocês Antigo e Aceito, onde Pike desenvolve a ideia de que a busca pela verdade é uma jornada moral e espiritual, nunca concluída;

8.      PLATÃO. A República. O mito da caverna oferece uma metáfora atemporal para o processo iniciático: sair das sombras para a luz é doloroso, mas libertador;

9.      SPINOZA. Ética. Expõe o conceito de conatus, o impulso de perseverar no ser, que na Maçonaria corresponde ao esforço de aperfeiçoamento constante;



[1] A expressão "ars longa da autoeducação" relaciona o processo de aprendizado autônomo com o famoso aforismo latino Ars longa, vita brevis, que significa "a arte é longa, a vida é breve". No contexto da autoeducação, essa frase destaca a dedicação e o longo tempo necessários para dominar uma habilidade, um conhecimento ou, no caso, para moldar a si mesmo;

[2] "Hybris" (ou húbris) é um conceito grego que se refere à arrogância desmedida ou ao orgulho excessivo que leva alguém a desafiar os deuses, a não reconhecer limites ou a cometer atos impensados. Atualmente, o termo pode ser usado para descrever a soberba, o excesso de confiança e a insolência que frequentemente levam a um merecido castigo;

[3] O noûs (ou nous) de Anaxágoras é o princípio inteligente que deu ordem ao universo, separando e organizando as substâncias primordiais que estavam em um estado inicial caótico. Traduzido como "mente" ou "espírito", o noûs é uma força cósmica que pôs o movimento e a geração em marcha, transformando um estado inicial de "tudo junto" em um Universo ordenado;

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