terça-feira, 14 de outubro de 2025

Reflexão Filosófico-maçônica Sobre o Herói, o Ícone e a Ordem Moral

 Charles Evaldo Boller

Valorizar os que se Destacam

É restaurar a ponte entre o visível e o invisível. É reconhecer nos exemplos humanos a geometria divina do progresso moral. Na filosofia maçônica, esse ato é mais que reconhecimento: é iniciação contínua, onde cada herói exterior desperta o herói interior, o homem que busca a Verdade, edifica o Bem e ilumina o mundo com a Luz do Grande Arquiteto do Universo.

Significado da Valorização

Valorizar os que se destacam é reconhecer o reflexo da Luz nas ações humanas. O maçom, em sua busca pela perfeição moral e intelectual, aprende a admirar e imitar os exemplos que conduzem à virtude, à sabedoria e à liberdade interior. A admiração não é mero culto, mas um ato de discernimento espiritual: ela distingue o transitório do essencial, o aplauso mundano do reconhecimento ético.

Desde as antigas civilizações, os homens projetam em heróis e mitos o ideal da humanidade aperfeiçoada. Na filosofia maçônica, este gesto simbólico não se reduz à veneração, mas constitui exercício de autoconhecimento: o herói externo reflete o herói interno. Como ensina o axioma hermético, "assim como é acima, é abaixo", o que se admira fora é o prenúncio do que deve ser despertado dentro de si.

Herói, Ícone e Mito: a Arquitetura do Ideal

O herói, desde Homero até Campbell, é o símbolo do homem em busca de sentido. O mito de Hércules, que enfrenta seus doze trabalhos, é o arquétipo da alma que enfrenta suas paixões e limitações. Jesus, Sócrates, Buda ou Tiradentes são expressões culturais distintas de um mesmo impulso universal: transcender o ego em nome de um bem superior.

Na linguagem maçônica, o herói representa aquele que se lapidou a ponto de refletir a Luz do Grande Arquiteto do Universo. Ele é o exemplo que desperta a consciência, inspira virtude e estabelece um paradigma moral. A valorização dos heróis é, portanto, parte do método iniciático: o maçom contempla o símbolo não para idolatrá-lo, mas para compreender o princípio que ele encarna.

Platão, em sua teoria das Formas, ensinava que todo objeto sensível participa de uma ideia eterna. Assim também o herói participa da Ideia do Bem. A figura concreta, Cristo, Tiradentes, Sócrates, é a sombra visível de uma essência invisível: a Virtude.

Jesus e Tiradentes: o Herói Natural e o Herói Fabricado

Existe uma distinção fecunda entre o "herói natural", como Jesus, e o "herói fabricado", como Tiradentes. O primeiro surge da espontaneidade moral e espiritual; o segundo é construído pela necessidade política ou cultural de um povo.

Jesus, símbolo solar da Luz interior, representou a desobediência criadora: rompeu com o poder dogmático de seu tempo e introduziu uma nova ética baseada na compaixão e na consciência. Sua crucificação é a metáfora da vitória do espírito sobre a matéria, do amor sobre o poder.

Tiradentes, por sua vez, foi o arquétipo republicano do herói político. Sua figura, moldada posteriormente à imagem de Cristo, serviu como cimento simbólico para a unidade nacional. Mesmo "forjado", o mito desempenhou função vital: despertou no povo brasileiro um sentimento de identidade e de liberdade.

Ambos, portanto, são necessários. O primeiro ilumina o interior do homem; o segundo fortalece o espírito coletivo. Um eleva a alma ao infinito; o outro ancora o cidadão na história. O maçom compreende que a verdade simbólica transcende a factual: o mito, mesmo quando nascido da ficção, possui valor moral real.

A Função Moral dos Mitos na Formação do Homem

Aristóteles afirmava que "a virtude nasce do hábito". Mas o hábito nasce do ideal. O mito oferece à imaginação o modelo a ser repetido. Quando uma sociedade destrói seus símbolos, ela destrói também o imaginário ético que sustenta a civilização.

Joseph Campbell, em O Herói de Mil Faces, demonstra que o mito não é superstição, mas mapa espiritual. Ele orienta a alma humana nas etapas do "monomito"[1]: a chamada, a travessia, o retorno transformado. O herói que retorna da jornada é aquele que aprendeu a arte de viver.

A Maçonaria, ao preservar símbolos, alegorias e rituais, cumpre a mesma função: manter vivos os arquétipos que a modernidade racional tende a dissipar. O maçom, ao reverenciar seus "heróis", históricos ou simbólicos, reativa a memória moral da humanidade. O templo interior só se ergue quando o homem se recorda de sua natureza divina.

Ética e Metafísica da Valorização

Valorizar é reconhecer o telos[2], o fim nobre das ações humanas. Kant ensinou que o valor moral não está na consequência, mas na intenção conforme o dever. Assim, o maçom valoriza o irmão que age por convicção e consciência, não por recompensa.

Na metafísica maçônica, o valor é luz condensada na forma da virtude. O herói é aquele que manifesta essa luz em meio à treva do mundo profano. A valorização, nesse contexto, é um ato de justiça ontológica: reconhecer no outro a centelha do Grande Arquiteto do Universo.

A lógica da valorização, por sua vez, evita o culto à personalidade e dirige-se ao princípio. Aristóteles distingue entre areté (virtude) e doxa (opinião). O herói busca a areté, a excelência moral, enquanto o falso herói busca a doxa, o aplauso efêmero.

O Colapso dos Símbolos e a Crise da Modernidade

Um ponto crucial: o desaparecimento dos mitos fundadores na sociedade contemporânea. O homem moderno, submerso em redes virtuais e em narrativas fragmentadas, perdeu o eixo simbólico. Vive a era do "homem sem centro", de que fala Mircea Eliade[3].

Sem mitos, não há coesão moral. O indivíduo sem ídolos nobres idolatra o efêmero: celebridades, ideologias ou o próprio ego. O vazio simbólico converte-se em desordem ética.

A filosofia maçônica, nesse contexto, é antídoto contra a dissolução moral. Ela ensina a restaurar o símbolo interior, a reerguer o templo da consciência. O pavimento mosaico, com seus contrastes de luz e sombra, é a metáfora dessa dialética: o homem deve aprender a caminhar sobre a diversidade e o conflito sem perder o equilíbrio da alma.

O Herói como Ponte Entre Razão e Espiritualidade

O herói reconcilia os domínios da razão e do espírito. Sócrates foi condenado por "corromper a juventude" e "introduzir novos deuses", mas sua coragem em morrer pela verdade inspirou séculos de filosofia moral. Sua maiêutica[4] é o exemplo perfeito do método de ensino maçônico: despertar no outro a verdade que já habita em si.

Jesus e Sócrates, separados por contextos, convergem na mesma atitude: viver segundo a verdade interior, ainda que isso custe a vida exterior. Ambos são exemplos de que a Luz não pode ser silenciada pela injustiça humana.

Na Loja, cada maçom é convidado a realizar simbolicamente esse mesmo gesto: morrer para o profano e renascer para a Luz. A iniciação é, por excelência, o drama do herói.

A Valorização como Método de Autoeducação Maçônica

A Maçonaria entende a valorização como processo de aprendizado ativo. O maçom aprende com os exemplos dos grandes homens, mas, sobretudo, aprende a reconhecer a própria grandeza potencial.

Inspirado na Andragogia, a Ordem propõe uma educação pela experiência: o conhecimento nasce da vivência simbólica, e o símbolo desperta a consciência ética. Ao valorizar quem se destaca pela virtude, o irmão interioriza padrões de conduta. A homenagem torna-se método de ensino de valores e princípios.

O venerável mestre que louva a prudência de um irmão em assembleia não o faz por vaidade, mas para semear virtudes imitáveis. Assim, a loja transforma-se em microcosmo educativo, onde a ética é transmitida por contágio de exemplo.

Economia, Ética e Prosperidade

A valorização do exemplo ético gera prosperidade, não como fim material, mas como consequência da harmonia interior. Max Weber[5], em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, demonstrou que o comportamento disciplinado e ético fomenta o desenvolvimento econômico.

Analogamente, a ética maçônica gera riqueza moral e social. O maçom que pratica a retidão inspira confiança, atrai cooperação e multiplica o bem comum. A valorização dos exemplos virtuosos constrói capital simbólico, que se converte em prosperidade real.

Na loja, esse processo é visível: o irmão que cumpre seus deveres, respeita os rituais e contribui com amor fraterno torna-se farol de estabilidade e progresso coletivo.

Crítica ao Heroísmo Falso e à Idolatria

Há, contudo, um perigo: o culto ao falso herói. A sociedade do espetáculo, descrita por Guy Debord[6], fabrica ídolos descartáveis. O herói midiático substitui o sábio silencioso.

A Maçonaria alerta contra essa inversão de valores. O verdadeiro destaque não está na aparência, mas na essência. O "herói maçônico" é aquele que serve, não o que se exibe. Ele pratica a virtude no silêncio, lapidando a Pedra Bruta sem buscar aplauso.

O reconhecimento deve ser exercício de justiça, não de bajulação. A loja deve exaltar os que constroem, não os que aparecem. Assim, preserva-se a pureza do mérito.

A Lógica do Reconhecimento e o Caminho da Liberdade

Do ponto de vista lógico, valorizar o que se destaca é reconhecer a causa eficiente do progresso moral. É o raciocínio da coerência: a virtude produz harmonia; a harmonia gera liberdade.

Espinosa[7], em sua Ética, ensina que a liberdade é a consciência da necessidade. O maçom livre é aquele que conhece as leis morais do Universo e age em conformidade com elas. Ao valorizar os exemplos virtuosos, ele reforça o campo da necessidade racional, afastando-se da paixão cega.

A lógica maçônica, portanto, é libertadora: raciocínio, símbolo e ação convergem para o mesmo fim, o aperfeiçoamento do Ser.

O Templo Interior e a Ordem Moral

A valorização dos que se destacam culmina na edificação do Templo Interior. O herói exterior torna-se espelho do homem que o contempla. A cada exemplo ético, o maçom assenta uma nova pedra em sua construção moral.

O templo é o símbolo da ordem interna. Sem ordem, não há beleza; sem beleza, não há verdade. O herói é o arquiteto dessa harmonia: ele inspira o traçado da vida justa.

Valorizar, portanto, é participar da obra do Grande Arquiteto do Universo. É reconhecer que a Luz se manifesta nos que se dedicam ao Bem, à Verdade e à Justiça.

A Arte de Viver pela Admiração

Valorizar os que se destacam é praticar a arte de viver. É reconhecer que cada grande homem, mártir, sábio, líder ou irmão, é um degrau na escada de Jacó que liga a Terra ao Céu.

A sociedade moderna, ao rejeitar seus mitos, mergulha na crise de sentido. A Maçonaria oferece o remédio: restaurar o símbolo, honrar o exemplo e viver com propósito.

Quando o maçom valoriza o herói, ele desperta em si mesmo o herói adormecido. Jesus e Tiradentes, Sócrates e Newton, Confúcio e Hiram Abif, todos são reflexos da mesma Luz eterna que brilha no coração do homem consciente.

A loja é o espaço onde essa Luz é celebrada, transmitida e ampliada. Valorizar é, pois, um ato de racional, um exercício de amor fraterno e um compromisso com a eternidade.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2015. Fundamenta a ideia de virtude como hábito, baseando a moral na excelência prática, essencial à formação do caráter maçônico;

2.      BACON, Francis. Novum Organum. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. Introduz a noção de conhecimento empírico e lógico, baseando a relação entre experiência e sabedoria prática, aplicável ao aprendizado simbólico;

3.      CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 2007. Explica a jornada arquetípica do herói, oferecendo chave simbólica para compreender o papel do mito na transformação individual;

4.      CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. Reitera a função pedagógica e espiritual do mito, convergindo com o método andragógico maçônico;

5.      DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Critica a fabricação de ídolos na modernidade, servindo de alerta contra o heroísmo falso e o esvaziamento simbólico;

6.      ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1998. Mostra como os mitos estruturam o sentido da existência humana e sustentam as civilizações, sendo aplicável à função simbólica da Maçonaria;

7.      KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2012. Define a ética do dever e a autonomia moral, princípios centrais ao ideal maçônico de liberdade interior;

8.      PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. Desenvolve a teoria das Formas e o conceito de Bem como princípio supremo, referência Metafísica para o entendimento do herói ideal;

9.      SPINOZA, Baruch. Ética. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Relaciona liberdade à compreensão racional da necessidade, perspectiva aplicável à lógica do reconhecimento maçônico;

10.  WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2004. Demonstra a conexão entre ética e prosperidade, confirmando a tese de que valores morais moldam o sucesso material;



[1] O monomito, conhecido como a jornada do herói, é uma estrutura narrativa universal encontrada em mitos, lendas e histórias, descrita por Joseph Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces. A estrutura descreve um padrão comum: um herói parte em uma aventura, é vitorioso em uma crise decisiva e retorna para casa transformado. Essa jornada geralmente envolve três fases principais: a Partida, a Iniciação e o Retorno;

[2] Telos é o antigo termo grego para fim, realização, completude, meta ou objetivo; é a origem da palavra moderna "teleologia";

[3] Mircea Eliade, cientista das religiões, filósofo, historiador, mitólogo, professor e romancista de nacionalidade norte-americana e romena. Nasceu em Bucareste, Romênia em 9 de março de 1907. Faleceu em Chicago em 22 de abril de 1986. Um dos mais influentes cientistas das religiões e filósofos das religiões da contemporaneidade;

[4] Maiêutica é um método filosófico socrático que consiste em fazer perguntas para ajudar as pessoas a "dar à luz" suas próprias ideias e conhecimentos. O termo, que significa "arte de partejar", foi inspirado na profissão da mãe de Sócrates, uma parteira. Através de um diálogo que geralmente começa com a ironia socrática (o questionador finge não saber para desconstruir preconceitos), o interlocutor é levado a refletir, a reconhecer a contradição em seus próprios argumentos e, finalmente, a chegar a novas conclusões por si mesmo;

[5] Max Weber ou Maximilian Karl Emil Weber, economista, intelectual, jurista e sociólogo de nacionalidade alemã. Nasceu em Erfurt em 21 de abril de 1864. Faleceu em Munique em 14 de junho de 1920. Considerado um dos fundadores da Sociologia;

[6] Guy Debord, escritor e filósofo de nacionalidade francesa. Nasceu em Paris em 28 de dezembro de 1931. Faleceu em 30 de novembro de 1994;

[7] Baruch de Espinoza ou Baruch de Benedictus Spinoza, autor, filósofo e maçom de nacionalidade holandesa, judia e portuguesa. Também conhecido por Baruch Spinoza ou Bento Espinosa. Nasceu em Amsterdã em 24 de novembro de 1632. Faleceu em Haia em 1677, tuberculose. Profundo estudioso da Bíblia, do Talmude e de obras de judeus;

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