A iniciação é o mais profundo dos mistérios humanos. Desde a
aurora das civilizações, os homens buscaram nos ritos e nas tradições a
passagem simbólica entre dois mundos: o da ignorância e o do conhecimento; o da
matéria e o do espírito. A Maçonaria, herdeira das antigas escolas de mistério
do Egito, da Grécia e da tradição pitagórica, não difere neste propósito
essencial: provocar no homem uma metanoia[1], um renascimento
interior que transcenda o véu da aparência e o conduza à percepção de si mesmo
como microcosmo do universo.
O Mistério da Iniciação
Será que a cerimônia de iniciação tem o poder mágico de
transformar o homem comum em iniciado? A pergunta é legítima, mas a resposta,
complexa. O rito é apenas o símbolo visível de um processo invisível. O
que ocorre no templo é a dramatização exterior de um fenômeno interior. Não há,
pois, iniciação que possa ser comprada, nem palavras mágicas que concedam
iluminação. O rito é o espelho que reflete o estado da alma, não a sua causa. O
iniciado é aquele que se permite nascer de novo, não fisicamente, mas em
consciência.
A iniciação não é ensinada: é vivida. Nenhum manual pode
explicá-la, assim como nenhum mapa pode substituir a jornada. É um mergulho no
abismo do próprio ser, onde o homem enfrenta o caos interior para dele extrair
a centelha divina que o anima. Platão, no Banquete, já intuía essa ascensão:
"O amor é o movimento da alma que
sobe do sensível ao inteligível." Assim é o iniciado, aquele que,
conduzido pela razão e pelo amor, ascende da sombra à luz.
O Nascimento Espiritual
A Maçonaria, no primeiro grau, propõe ao neófito o trabalho
sobre a pedra bruta, símbolo do homem imperfeito, cheio de irregularidades e
paixões. É o estágio da Força: a energia que impulsiona o ser à transformação.
Cada golpe do malho contra o cinzel é um ato de vontade moral; cada lasca
retirada é uma limitação vencida, um vício superado. A pedra se torna mais
leve, e o homem, mais livre.
Mas, mesmo após este labor o maçom ainda não é iniciado. Muitos param na
superfície, contentando-se com o ritual e esquecendo o sentido. É fácil
refugiar-se na forma e evitar a essência. É mais cômodo seguir fórmulas,
repetir palavras, delegar o pensamento a livros, sacerdotes, tribunais e
médicos, terceirizar a consciência. Essa é a prisão do conformismo
espiritual.
A Maçonaria convida à libertação: o trabalho interior. No
segundo grau, simbolizado pela coluna da Beleza, o maçom é chamado a polir a
pedra por dentro. A racionalidade já conquistada deve agora servir de
instrumento à espiritualidade. A razão não desperta o espírito, mas o orienta;
é o leme, não o vento. Por isso, a iniciação não é dada, é despertada.
A Jornada Interior
Iniciado é o maçom que passou por diversas dramatizações de
cerimônias de iniciação com a devida introspecção, meditação e mudanças
internas. É aquele que pelo desenvolvimento, apoiado em incontáveis iniciações ao longo da vida, iniciou a si
mesmo, iluminando a sua alma com a Luz da sua busca interior.
A iniciação inicia-se quando o homem ousa olhar para dentro.
"Conhece-te a ti mesmo",
proclamava o oráculo délfico. Essa máxima, retomada pela filosofia socrática e
abraçada pela Maçonaria, não é apenas um convite à introspecção, mas uma
exigência ética. Conhecer-se é reconhecer as próprias sombras e integrá-las na luz
da consciência. Carl Jung chamaria isso de
processo de individuação: a unificação dos opostos que habitam o ser.
Freud, por sua vez, descreveu a psique em três instâncias: o
Id, o Ego e o Superego. O Id representa o impulso, a força cega dos desejos; o
Superego, a norma, a censura moral; o Ego, a consciência que equilibra os dois.
Na senda maçônica, a iniciação é precisamente o equilíbrio dessas forças
interiores. O maçom aprende a reconhecer o poder do desejo sem submeter-se a
ele; aprende a ouvir a voz da razão sem transformar-se em pedra. O Superego é
necessário, mas deve ser iluminado pela compaixão; o Id é vital, mas precisa
ser governado pela consciência. O iniciado é,
pois, o arquiteto de si mesmo, o construtor do templo interior onde essas
forças se harmonizam.
O Sofrimento e o Renascimento
Toda iniciação é precedida pela angústia. Antes do nascer, há
as dores do parto; antes da iluminação, há o mergulho na escuridão. É na
angústia existencial que o homem percebe o chamado ao despertar. A Maçonaria o
ensina a caminhar entre colunas, a suportar a noite simbólica da câmara de
reflexões, a encarar o espelho da própria alma. Nesse confronto, o Ego se
desfaz de suas máscaras e o espírito se aproxima do divino.
Essa travessia não é sem dor. A transformação exige o
sacrifício do velho homem, das crenças herdadas, dos medos cultivados. Como a
fênix, o iniciado precisa arder em seu próprio fogo para renascer das cinzas. A
dor é a espada que separa o ilusório do essencial. Nesse ponto, o homem
descobre que o Grande Arquiteto do Universo nunca o castigou; quem o castigava
era sua própria culpa. O Criador não é o juiz, mas a essência que o habita. Quando
o homem compreende isso, cessa o medo e nasce o amor.
O Despertar Espiritual
O iniciado renascido abandona o templo de pedra e encontra o
divino na natureza: nas montanhas, nos mares, nas estrelas. O altar desloca-se
do espaço físico para o coração. A Luz que antes buscava fora agora brilha
dentro. As antigas escrituras perdem o sentido literal e tornam-se símbolos de
uma realidade mais profunda. Como ensina a tradição hermética, "tudo está dentro de ti; nada te é estranho,
exceto tua própria ignorância".
O iniciado não pede mais ao Grande Geômetra, porque reconhece
que o Grande Arquiteto do Universo está nele. A prece cede lugar à
contemplação; o temor, à gratidão. Ele não busca perdão, porque entende que o
Criador não castiga. O mal não é ontológico[2], é
ignorância. O bem é o conhecimento que liberta. Essa é a essência do evangelho
interno, comum a todas as tradições de sabedoria.
A partir desse despertar, o homem compreende que não há
tribunal após a morte, porque o julgamento é contínuo: cada pensamento e cada
ato constroem o próprio destino. A Maçonaria chama isso de livre-arbítrio, a
suprema dádiva do Criador. O iniciado não é mais servo das religiões, mas
cooperador do divino plano da evolução humana. Ele não acredita em Deus, ele O
conhece. E, conhecendo-O em si, reconhece-O em todos os seres.
O Amor como Lei Suprema
Quando o iniciado declara "Eu e o Pai somos um", ele não profere blasfêmia, mas realiza o
supremo mandamento: o amor. Essa
identificação com o divino é o que Jesus chamou de Reino de Deus, não é um
lugar, mas um estado de consciência. O
amor, então, deixa de ser sentimento e torna-se força
cósmica. É a energia que sustenta o Universo e une todas as coisas.
O amor é também o fundamento da moral maçônica. Amar a Deus
sobre todas as coisas é amar a vida, a criação e a si mesmo. Amar a si mesmo é
reconhecer o próprio valor como obra divina. E amar o próximo como a si mesmo é
reconhecer em cada homem o reflexo do Grande Arquiteto do Universo. Nessa
tríplice harmonia, Criador, eu e o outro, a fraternidade
torna-se prática viva e não mero discurso.
Aplicações Práticas na Vida
O iniciado que compreende esses princípios transforma sua vida
cotidiana. No lar, torna-se pacificador; no trabalho, torna-se justo; na
sociedade, torna-se servidor. Ele aplica o esquadro da retidão e o compasso da
prudência em todas as ações. Se é líder, pratica a autoridade amorosa; se é
subordinado, age com dignidade e respeito. Já não busca dominar, mas cooperar.
Entende que toda competição é uma forma de medo e que toda fraternidade é uma forma de poder interior.
Na economia, o iniciado é prudente, mas não avarento; generoso,
mas não imprudente. Sabe que os bens materiais são instrumentos, não fins. Na
família, pratica o diálogo e o perdão, reconhecendo que o lar é o primeiro
templo. Na política, defende a liberdade, a igualdade e a fraternidade, porque
sabe que essas virtudes não são invenções humanas, mas reflexos da ordem
divina.
Na educação, o iniciado age como andragogo: aprende com todos e
ensina a todos. Reconhece que o saber é uma construção compartilhada, não um
privilégio. Como dizia Sócrates, "ensinar
é apenas fazer recordar". Por isso, o método de ensino do iniciado é a
do exemplo; sua palavra tem força porque é coerente com sua vida.
A Dimensão Esotérica
No plano esotérico, a iniciação corresponde ao renascimento
alquímico. A matéria prima, o homem bruto, passa pelas fases da nigredo[3], albedo[4] e rubedo[5]: dissolução,
purificação e iluminação. Na nigredo, o indivíduo enfrenta
suas trevas; na fase do albedo, purifica-se
pelo discernimento; na do rubedo, torna-se Luz.
É o mesmo processo descrito por Hermes Trismegisto na Tábua de Esmeralda:
"O que está embaixo é como o que
está em cima, e o que está em cima é como o que está embaixo, para que se
cumpra o milagre de uma só coisa."
O templo maçônico é o laboratório dessa transmutação. As
colunas, as ferramentas, as luzes, tudo é símbolo da obra interior. O malho é a
vontade, o cinzel é a inteligência, o esquadro é a ética, o compasso é o amor.
O iniciado aprende a manejar essas ferramentas não em pedra, mas em espírito. Ao
final, torna-se o próprio templo vivo, onde o Grande
Arquiteto do Universo habita.
A Ética do Iniciado
A ética maçônica deriva dessa experiência
mística. Não é obediência a mandamentos, mas expressão natural da
consciência desperta. O homem que encontra o Grande Arquiteto do Universo em si
não precisa de leis externas, porque age de acordo com a lei interna do amor. Kant chamou isso de "imperativo categórico": agir de tal
modo que tua ação possa ser erigida em lei universal. O iniciado vive esse
princípio não por dever, mas por compreensão. A moral deixa de ser coerção e
torna-se liberdade.
Esse estado de consciência dissolve o dualismo metafísico entre bem e mal. Para
o iniciado, o mal é apenas o bem em estado de ignorância. Não há demônios fora,
mas dentro do homem, e podem ser redimidos pela luz
do autoconhecimento. Assim, a guerra espiritual é interior, e o
campo de batalha é a própria alma. Vencer é harmonizar, não destruir.
A Iniciação como Processo Contínuo
A iniciação não termina com a cerimônia, nem com o segundo
grau, nem com o trigésimo terceiro. É um processo contínuo de autoconstrução.
Cada dia é um novo grau; cada desafio, uma nova prova. O iniciado é eterno buscador.
Quando cessa de buscar, deixa de ser maçom. Como dizia Pitágoras, "a sabedoria é o único bem que cresce à
medida que é compartilhado".
A iniciação não é um evento, mas um
estado de ser. É a atitude filosófica diante da vida: questionar,
compreender, transformar. É o exercício diário de retificar pensamentos,
palavras e ações, o famoso lema hermético Visita Interiora Terrae Rectificando
Invenies Occultum Lapidem: "Visita o
interior da Terra e, retificando, encontrarás a pedra oculta". Essa
pedra é o próprio coração iluminado.
A Luz do Segundo Grau
A iniciação maçônica é a passagem do homem exterior ao homem
interior, do profano ao sagrado, da matéria ao espírito. É o nascimento em
outra dimensão: o nascimento em espírito. O iniciado é aquele que, ao
filosofar, entra na pedra, em si mesmo, e encontra ali a assinatura do Grande
Arquiteto do Universo. Não o deus das religiões, mas o Princípio Uno que dá
sentido a todas as coisas.
Quando esse encontro acontece, desaparece a necessidade de
intermediários. O homem compreende que a adoração
é o amor, a oração é
a ação, e o templo é o coração. Então, liberto de culpas e medos, ele se
torna construtor do bem, artífice da harmonia universal. E pode, com plena
consciência, afirmar: "Eu e o Pai
somos um."
Bibliografia Comentada
1.
ALBERT
PIKE. Morals and Dogma. Obra clássica do Rito Escocês Antigo e Aceito,
que integra filosofia, ética e simbolismo místico;
2.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Explica que a
virtude é um hábito adquirido pelo exercício da razão moderada, base da moral
maçônica;
3.
BLAVATSKY, Helena P. A Doutrina Secreta. Amplia
a visão esotérica da iniciação como expressão da evolução espiritual universal;
4.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Explica
o arquétipo do herói como jornada de autoconhecimento, paralelo ao percurso
maçônico;
5.
DELORS, Jacques. Educação: Um Tesouro a
Descobrir. Fundamenta o aspecto andragógico da iniciação: aprender a ser,
conviver, fazer e conhecer;
6.
ELIADE, Mircea. Ritos e Símbolos de Iniciação.
Mostra que todo rito iniciático é símbolo de morte e renascimento espiritual;
7.
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. Estrutura a
dinâmica da psique, permitindo compreender a iniciação como harmonização das
forças interiores;
8.
GUÉNON, René. O Simbolismo da Cruz e A Crise do
Mundo Moderno. Defende a iniciação como via de retorno ao princípio e crítica à
superficialidade ritualística;
9.
HERMES TRISMEGISTO. Tábua de Esmeralda. Inspira
a visão hermética da unidade entre o homem e o cosmos, essência da iniciação
esotérica;
10. JUNG,
Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Aborda a iniciação como processo de
individuação, o encontro com o Self divino;
11. KANT,
Immanuel. Crítica da Razão Prática. Desenvolve o conceito de lei moral interior
e do dever como expressão da liberdade racional;
12. PLATÃO.
O Banquete e A República. Fundamenta a ideia de ascensão do sensível ao
inteligível e a importância do autoconhecimento como caminho da virtude;
13. WIRTH,
Oswald. O Livro do Aprendiz e do Companheiro. Interpretação simbólica da
iniciação maçônica e do trabalho interior do maçom;
[1]
Na Maçonaria, metanoia refere-se à profunda mudança de pensamento,
atitude e perspectiva necessária para a transformação pessoal e moral do
indivíduo. É um processo de renovação interior que envolve o autodomínio
racional, emocional e intelectual, permitindo que o maçom abandone vícios e
imperfeições para se aprimorar em virtudes. Essa transformação é crucial para a
vivência dos ideais da Ordem, como a busca pelo autoconhecimento e a
participação no desenvolvimento coletivo;
[2]
A ontologia maçônica é o estudo da natureza do ser e da existência na
Maçonaria, focando em conceitos como a essência do homem, a origem do Universo
e a busca por um "ser de linhagem divina" dentro de cada indivíduo.
Ela se baseia na filosofia de que o ser humano, como uma "pedra
bruta", pode ser aperfeiçoado através da experiência, moldado pela
experiência e pelas circunstâncias;
[3]
Nigredo, que significa "escuridão" em latim, é o primeiro
estágio da alquimia e representa a morte espiritual, a decomposição ou putrefação.
É uma fase metafórica de confronto com o inconsciente e a "sombra"
pessoal, onde se enfrenta o desconhecido e o reprimido. Esse processo de
desconstrução do "velho" prepara o indivíduo para os estágios
seguintes de purificação (Albedo), despertar (Citrinitas) e iluminação
(Rubedo);
[4]
Na alquimia, albedo é o segundo estágio do Magnum Opus (a Grande Obra),
significando "brancura" e representando a purificação espiritual após
o estágio de nigredo (escuridão). Este processo envolve "lavar" as
impurezas da alma ou da matéria prima, trazendo clareza e integrando os opostos
para um estado de consciência mais puro e receptivo;
[5]
No, rubedo não é uma alquimia, mas o quarto e último estágio principal
da Grande Obra alquímica, que significa "vermelhidão". Representa a
iluminação e a consumação da transformação, onde as energias opostas se unem e
se integram, levando à criação da Pedra Filosofal. A rubedo é precedida pela
nigredo (escuridão/morte espiritual), albedo (purificação) e citrinitas
(despertar);

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