quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Encadeamento Lógico dos Graus do Rito Escocês Antigo e Aceito

 Charles Evaldo Boller

Abstrato

A Maçonaria, especialmente no Rito Escocês Antigo e Aceito, apresenta um conjunto de 33 graus que, à primeira vista, parecem carecer de um encadeamento lógico ou de uma narrativa contínua. Muitos estudiosos procuram um fio condutor que organize esses graus em progressão linear, mas essa busca frequentemente esbarra na constatação de que a diversidade é marca essencial do rito. A aparente desconexão é, paradoxalmente, uma forma de instrução iniciática.

O pensamento ocidental, moldado pelo cartesianismo, espera encontrar ordem racional e progressiva em tudo. Contudo, o Rito Escocês Antigo e Aceito, oferece ao iniciado um mosaico de símbolos, histórias e virtudes que não se ligam de forma rígida. Cada grau é uma janela para o mistério, não um capítulo de manual escolar. A lógica cartesiana é insuficiente para abarcar o sentido da multiplicidade maçônica.

Diante disso, alguns tentam encontrar conexões na cabala, no esoterismo e em sistemas simbólicos universais, como a Árvore da Vida. Embora tais aproximações sejam sugestivas, correm o risco de projetar sobre os graus uma ordem artificial. A lição pode ser outra: que a ordem não está na linearidade, mas na diversidade e no aparente caos.

A divisa do Rito Escocês Antigo e Aceito, Ordo ab Chao, ordem no caos, sintetiza esse ensinamento. Não se trata apenas de que da desordem surja ordem, mas de que a ordem já está presente no caos. O caos não é ausência de sentido, mas plenitude de possibilidades. Ao confrontar-se com a fragmentação, o maçom aprende a discernir unidade no múltiplo, harmonia no contraditório.

Exemplos históricos ajudam a compreender. Kepler, ao tentar encaixar as órbitas planetárias em figuras geométricas perfeitas, teve de reconhecer a realidade das elipses imperfeitas, e foi nesse reconhecimento que a ciência avançou. Platão já advertia que o círculo perfeito existe apenas no mundo das ideias. Assim também o maçom: aprende que a perfeição não se encontra no real imediato, mas na aceitação da imperfeição como expressão de uma ordem superior.

A antropologia confirma: a mente humana busca ordem porque teme a morte. Ao projetar no divino padrões humanos de beleza e perfeição, cria-se um deus antropomórfico. A Maçonaria evita essa armadilha ao adotar o conceito de Grande Arquiteto do Universo, símbolo de uma inteligência transcendente, inacessível à razão. Os graus desconexos são reflexo dessa liberdade: não oferecem dogma, mas diversidade simbólica.

A física moderna, ao revelar o átomo como vazio e energia condensada, mostra que a realidade é muito mais fluída e caótica do que a percepção humana admite. Do mesmo modo, a vida, nascida de acidentes e assimetrias cósmicas, ensina que a ordem se revela na aparente desordem.

Em termos práticos, essa filosofia molda o maçom: ensina-o a tolerar diferenças, a comunicar-se com o contraditório, a buscar unidade na diversidade. A fraternidade se constrói não na uniformidade, mas na harmonia das diferenças.

Em síntese, o encadeamento dos graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, não é linear nem lógico nos moldes humanos. É simbólico, iniciático e sapiencial. A aparente desordem é convite a perceber que a ordem suprema do Grande Arquiteto do Universo, se manifesta justamente no "caos". Esse é o encadeamento: ver luz onde parece haver apenas escuridão, encontrar unidade na multiplicidade.

Kepler, e sua Perfeição Geométrica do Cosmos

A Maçonaria, especialmente no Rito Escocês Antigo e Aceito, apresenta ao iniciado uma sequência de 33 graus que, à primeira vista, parecem carecer de uma conexão sistemática ou progressão lógica coerente. Muitos estudiosos e praticantes buscam um "fio de Ariadne" que una os diversos graus em uma narrativa contínua e inteligível. No entanto, a aparente desordem pode ser, em si mesma, o veículo instrucional para induzir à reflexão mais profunda: seria o caos apenas uma fachada da ordem superior? Seria a fragmentação apenas a máscara de uma unidade inacessível ao olhar imediato?

Assim como Kepler, que buscava a perfeição geométrica no cosmos até deparar-se com a realidade das órbitas elípticas, também o maçom se confronta com a desarticulação dos graus. O encadeamento lógico que ele procura talvez não exista nos moldes cartesianos, mas em outro nível de percepção, simbólico, místico, filosófico, onde o que se chama "ordem" se revela nas "linhas tortas" do Grande Arquiteto do Universo.

A Expectativa Cartesiana de Ordem

O pensamento ocidental moderno foi profundamente marcado pelo cartesianismo e pelo Iluminismo, que inculcaram no homem a expectativa de que a realidade deveria ser organizada de modo lógico, linear, progressivo. Essa mentalidade influenciou também a forma como muitos maçons abordam os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito. Espera-se que o grau 4 conduza inevitavelmente ao 5, o 5 ao 6, e assim por diante, como degraus de uma escada ou como capítulos de um manual progressivo.

Entretanto, ao deparar-se com os conteúdos dos graus, o maçom percebe que não há sempre continuidade direta. Alguns graus ressaltam o amor, outros a justiça, outros a coragem, e alguns quase nada dizem sobre virtudes tradicionais, preferindo temas aparentemente desconexos: templários, construções míticas, símbolos astrais, alegorias bíblicas ou históricas. A diversidade desconcerta a mente cartesiana, mas, paradoxalmente, abre espaço para outra ordem: a que se revela na multiplicidade, no entrechoque de imagens e símbolos.

Assim, a busca por uma conexão rígida pode ser uma armadilha. O Rito Escocês Antigo e Aceito não é manual de instrução, mas mapa simbólico de uma viagem iniciática. Cada grau é uma janela para o infinito, não uma etapa de manual escolar.

A Cabala e a Busca pela Unidade

Diante da fragmentação, alguns buscam respostas no esoterismo, na cabala e em sistemas simbólicos mais abrangentes. A cabala judaica, por exemplo, apresenta a Árvore da Vida como estrutura de dez sefirot ligadas entre si, simbolizando etapas de manifestação da divindade. Vários autores tentaram relacionar os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito com essa árvore mística, como se cada grau fosse uma sefirá ou caminho.

Embora tais aproximações sejam sugestivas, o risco é o mesmo que o de Kepler: projetar sobre o Universo uma ordem idealizada, em vez de apreender o real sentido da multiplicidade. A cabala, em sua riqueza, mostra que a ordem pode ser percebida como teia de conexões não lineares. Talvez seja esse o convite do Rito Escocês Antigo e Aceito: não escada, mas rede; não linha, mas círculo; não manual lógico, mas mosaico.

Ordem e Desordem: a Instrução do Caos

A divisa do Rito Escocês Antigo e Aceito, "Ordo ab Chao", Ordem no Caos, é central nesse contexto. Ela ensina que a ordem surge do caos, ou, de modo mais radical, que a ordem está no caos. O caos não é anomia absoluta, mas plenitude de possibilidades. A desordem aparente dos graus pode ser instrução intencional: ao experimentar a fragmentação, o maçom aprende a ver unidade no diverso, harmonia no múltiplo, sentido no contraditório.

O filósofo Heráclito já dizia que a harmonia se revela na tensão dos contrários. A Maçonaria escocesa parece seguir essa linha: ao justapor graus díspares, convida o iniciado a buscar a unidade perdida. Tal instrução é profundamente andragógica: o adulto aprende mais pelo desafio do que pela linearidade. Não se entrega a ele uma sequência lógica, mas um labirinto que o obriga a exercitar discernimento, paciência e tolerância.

Kepler, Platão e a Ilusão da Perfeição

O exemplo de Kepler é ilustrativo. Sua tentativa de encaixar as órbitas em figuras geométricas regulares perfeitas foi bela, mas equivocada. Ele teve de aceitar a imperfeição aparente das elipses. E foi nessa aceitação da irregularidade que a ciência deu um salto. De modo análogo, Platão afirmava que o círculo perfeito só existe no mundo das ideias, não na realidade sensível.

Essa constatação se faz presente na Maçonaria: o ideal de perfeição é meta, não realidade. A vida concreta é tecida de imperfeições e irregularidades, mas é justamente nesse tecido que se esconde a perfeição maior. O Rito Escocês Antigo e Aceito, com seus graus desconexos, parece ensinar isso de forma prática.

A Antropologia do Caos

Do ponto de vista antropológico, a mente humana busca ordem porque teme a morte. Reconhecer-se como parte de um cosmos irregular, acidental e caótico abala a pretensão de imortalidade. Por isso, cria-se um deus antropomórfico que atua segundo padrões humanos de beleza e perfeição.

A Maçonaria, ao referir-se ao conceito de Grande Arquiteto do Universo, evita essa armadilha: não define a divindade, não lhe atribui forma ou atributos humanos. O Grande Arquiteto do Universo é metáfora da inteligência suprema, inacessível à razão humana. A multiplicidade dos graus é reflexo dessa estratégia: não se oferece um dogma, mas uma multiplicidade de símbolos que apontam para o Mistério.

Matéria, Energia e Vazio: Metáforas Iniciáticas

A física moderna mostra que o átomo é constituído de espaço vazio, é a reunião de inúmeros campos energéticos que se deslocam em velocidades alucinantes e que a matéria é, em essência, essa energia condensada que devido a esse movimento extraordinário ilude os sensores humanos dando a impressão de matéria densa, palpável. Essa constatação reflete-se simbolicamente no iniciado: somos pó e luz ao mesmo tempo, massa insignificante e energia imensa. Se o Universo é feito de imperfeições, acidentes e assimetrias, então a vida é um milagre nascido do caos.

O maçom, ao meditar sobre sua natureza, percebe que a busca de ordem absoluta é vã. A sabedoria é aceitar o caos como matriz de vida. O encadeamento ilógico dos graus é metáfora desse ensinamento: cada grau é fragmento de uma totalidade que não se deixa reduzir à lógica humana.

Filosofia Maçônica: Ver Ordem no Invisível

A filosofia é a lente que permite enxergar onde os sentidos falham. Assim, o maçom aprende que a ordem não é estática, mas movimento; não é imobilidade, mas fluxo; não é simetria rígida, mas harmonia dinâmica. O caos é vida, a ordem absoluta é morte. O Rito Escocês Antigo e Aceito, que só é completo se considerado com seus 33 graus, convida o maçom a perceber a vida como ordem em meio ao caos.

A divisa "Ordo ab Chao" não deve ser lida como "da desordem surge a ordem", mas como "a ordem está no caos". Essa nuance altera toda a compreensão: não é que o caos seja mera fase a ser superada pela ordem; é que a ordem suprema já está presente no caos, ainda que invisível à mente humana.

Implicações Práticas para o Maçom

Para além da especulação filosófica, essa reflexão tem implicações práticas na vida do maçom. Ele aprende a tolerar o diverso, a aceitar o contraditório, a dialogar com a diferença. Aprende que a verdade não está em um grau isolado, mas na tessitura de todos. Aprende que a vida não se organiza como manual, mas como sinfonia de sons dissonantes que, juntos, criam harmonia.

Assim, o maçom não busca encadear rigidamente os graus, mas saborear cada um como expressão única do Mistério. E na convivência com os irmãos, aprende que a ordem da fraternidade se constrói a partir da diversidade de opiniões, temperamentos e experiências.

Uma Expressão de Ordem Superior

O encadeamento lógico dos graus do Rito Escocês Antigo e Aceito é, em certo sentido, inexistente. Mas essa inexistência é uma instrução valiosa: ensina que a ordem se revela no caos, que a perfeição se manifesta na imperfeição, que o mistério do Grande Arquiteto do Universo não cabe em esquemas humanos. Assim, a aparente desordem é, de fato, expressão de ordem superior.

Ao compreender isso, o maçom liberta-se da obsessão cartesiana e abre-se ao mistério da vida. Ele aprende a ver unidade na diversidade, luz no caos, sentido na multiplicidade. Esse é o encadeamento dos graus: não linear, mas simbólico; não cartesiano, mas iniciático; não lógico, mas sapiencial.

Bibliografia Comentada

1.      BAIGENT, Michael; Leigh, Richard. O Templo e a Loja. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. Explora a conexão histórica e simbólica entre templários e maçons, útil para entender a diversidade temática dos graus;

2.      CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. Ressalta a função pedagógica dos mitos como metáforas do mistério, paralela à função dos graus maçônicos;

3.      DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Analisa como as sociedades constroem símbolos para lidar com o sagrado, aplicável à leitura da Maçonaria como sistema simbólico fragmentado;

4.      ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Fundamenta a ideia de que o homem projeta padrões de ordem e perfeição sobre o divino, incapaz de apreender o mistério em si;

5.      GUÉNON, René. Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada. Lisboa: Vega, 1995. Aborda a multiplicidade simbólica como linguagem do sagrado, compatível com a leitura do Rito Escocês Antigo e Aceito como mosaico caótico;

6.      HERÁCLITO. Fragmentos. São Paulo: Loyola, 2001. O filósofo do devir, para quem a harmonia nasce da tensão dos contrários, fundamento da visão do caos como ordem dinâmica;

7.      KEPLER, Johannes. Harmonices Mundi. 1619. Clássico em que Kepler tentou encaixar a ordem cósmica em sólidos perfeitos, exemplo do desejo humano de impor simetria ao universo;

8.      KNOWLES, Malcolm. The Adult Learner. New York: Routledge, 2015. A andragogia explica por que a fragmentação dos graus pode ser método eficaz para o aprendizado adulto: aprende-se mais no desafio do que na linearidade;

9.      PIKE, Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry. Charleston, 1871. Obra fundamental para compreender a riqueza simbólica dos graus filosóficos e sua aparente desconexão;

10.  PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. A reflexão sobre o mundo das ideias e a perfeição do círculo fornece suporte filosófico para a distinção entre ideal e realidade imperfeita;

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