Charles Evaldo Boller
Abstrato
A Maçonaria, especialmente no Rito Escocês Antigo e Aceito, apresenta
um conjunto de 33 graus que, à primeira vista, parecem carecer de um
encadeamento lógico ou de uma narrativa contínua. Muitos estudiosos procuram um
fio condutor que organize esses graus em progressão linear, mas essa busca
frequentemente esbarra na constatação de que a diversidade é marca essencial
do rito. A aparente desconexão é, paradoxalmente, uma forma de instrução
iniciática.
O pensamento ocidental, moldado pelo cartesianismo, espera
encontrar ordem racional e progressiva em tudo. Contudo, o Rito Escocês Antigo
e Aceito, oferece ao iniciado um mosaico de símbolos, histórias e virtudes que não
se ligam de forma rígida. Cada grau é uma janela para o mistério, não um
capítulo de manual escolar. A lógica cartesiana é insuficiente para abarcar o sentido
da multiplicidade maçônica.
Diante disso, alguns tentam encontrar conexões na cabala, no
esoterismo e em sistemas simbólicos universais, como a Árvore da Vida. Embora
tais aproximações sejam sugestivas, correm o risco de projetar sobre os graus
uma ordem artificial. A lição pode ser outra: que a ordem não está na
linearidade, mas na diversidade e no aparente caos.
A divisa do Rito Escocês Antigo e Aceito, Ordo ab Chao, ordem
no caos, sintetiza esse ensinamento. Não se trata apenas de que da desordem surja
ordem, mas de que a ordem já está presente no caos. O caos não é ausência de
sentido, mas plenitude de possibilidades. Ao confrontar-se com a fragmentação,
o maçom aprende a discernir unidade no múltiplo, harmonia no contraditório.
Exemplos históricos ajudam a compreender. Kepler, ao tentar
encaixar as órbitas planetárias em figuras geométricas perfeitas, teve de
reconhecer a realidade das elipses imperfeitas, e foi nesse reconhecimento
que a ciência avançou. Platão já advertia que o círculo perfeito existe
apenas no mundo das ideias. Assim também o maçom: aprende que a perfeição não
se encontra no real imediato, mas na aceitação da imperfeição como expressão de
uma ordem superior.
A antropologia confirma: a mente humana busca ordem porque teme
a morte. Ao projetar no divino padrões humanos de beleza e perfeição, cria-se
um deus antropomórfico. A Maçonaria evita essa armadilha ao adotar o
conceito de Grande Arquiteto do Universo, símbolo de uma inteligência
transcendente, inacessível à razão. Os graus desconexos são reflexo dessa
liberdade: não oferecem dogma, mas diversidade simbólica.
A física moderna, ao revelar o átomo como vazio e energia
condensada, mostra que a realidade é muito mais fluída e caótica do que a
percepção humana admite. Do mesmo modo, a vida, nascida de acidentes e
assimetrias cósmicas, ensina que a ordem se revela na aparente desordem.
Em termos práticos, essa filosofia molda o maçom: ensina-o a
tolerar diferenças, a comunicar-se com o contraditório, a buscar unidade na
diversidade. A fraternidade se constrói não na uniformidade, mas na harmonia
das diferenças.
Em síntese, o encadeamento dos graus do Rito Escocês Antigo e
Aceito, não é linear nem lógico nos moldes humanos. É simbólico, iniciático e
sapiencial. A aparente desordem é convite a perceber que a ordem suprema do
Grande Arquiteto do Universo, se manifesta justamente no "caos". Esse é o encadeamento: ver
luz onde parece haver apenas escuridão,
encontrar unidade na multiplicidade.
Kepler, e sua Perfeição Geométrica do Cosmos
A Maçonaria, especialmente no Rito Escocês Antigo e Aceito,
apresenta ao iniciado uma sequência de 33 graus que, à primeira vista, parecem
carecer de uma conexão sistemática ou progressão lógica coerente. Muitos
estudiosos e praticantes buscam um "fio
de Ariadne" que una os diversos graus em uma narrativa contínua e
inteligível. No entanto, a aparente desordem pode ser, em si mesma, o veículo instrucional
para induzir à reflexão mais profunda: seria o caos apenas uma fachada da ordem
superior? Seria a fragmentação apenas a máscara de uma unidade inacessível ao
olhar imediato?
Assim como Kepler, que buscava a perfeição geométrica no
cosmos até deparar-se com a realidade das órbitas elípticas, também o maçom
se confronta com a desarticulação dos graus. O encadeamento lógico que ele
procura talvez não exista nos moldes cartesianos, mas em outro nível de
percepção, simbólico, místico, filosófico, onde o que se chama "ordem" se revela nas "linhas tortas" do Grande Arquiteto
do Universo.
A Expectativa Cartesiana de Ordem
O pensamento ocidental moderno foi profundamente marcado pelo
cartesianismo e pelo Iluminismo, que inculcaram no homem a expectativa de que a
realidade deveria ser organizada de modo lógico, linear, progressivo. Essa
mentalidade influenciou também a forma como muitos maçons abordam os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito.
Espera-se que o grau 4 conduza inevitavelmente ao 5, o 5 ao 6, e assim por
diante, como degraus de uma escada ou como capítulos de um manual progressivo.
Entretanto, ao deparar-se com os conteúdos dos graus, o maçom
percebe que não há sempre continuidade direta. Alguns graus ressaltam o amor,
outros a justiça, outros a coragem, e alguns quase nada dizem sobre virtudes
tradicionais, preferindo temas aparentemente desconexos: templários,
construções míticas, símbolos astrais, alegorias bíblicas ou históricas. A
diversidade desconcerta a mente cartesiana, mas, paradoxalmente, abre
espaço para outra ordem: a que se revela na multiplicidade, no entrechoque de
imagens e símbolos.
Assim, a busca por uma conexão rígida pode ser uma armadilha. O
Rito Escocês Antigo e
Aceito não é manual de instrução, mas mapa simbólico de uma viagem
iniciática. Cada grau é uma janela para o infinito, não uma etapa de manual
escolar.
A Cabala e a Busca pela Unidade
Diante da fragmentação, alguns buscam respostas no esoterismo,
na cabala e em sistemas simbólicos mais abrangentes. A cabala judaica, por
exemplo, apresenta a Árvore da Vida como estrutura de dez sefirot ligadas entre
si, simbolizando etapas de manifestação da divindade. Vários autores tentaram
relacionar os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito com essa árvore mística,
como se cada grau fosse uma sefirá ou caminho.
Embora tais aproximações sejam sugestivas, o risco é o mesmo
que o de Kepler: projetar sobre o Universo uma ordem idealizada, em vez de
apreender o real sentido da multiplicidade. A cabala, em sua riqueza,
mostra que a ordem pode ser percebida como teia de conexões não lineares.
Talvez seja esse o convite do Rito Escocês Antigo e Aceito: não escada, mas
rede; não linha, mas círculo; não manual lógico, mas mosaico.
Ordem e Desordem: a Instrução do Caos
A divisa do Rito
Escocês Antigo e Aceito, "Ordo
ab Chao", Ordem no Caos, é central nesse contexto. Ela ensina que a ordem surge do caos, ou, de modo mais radical,
que a ordem está no caos. O caos não é
anomia absoluta, mas plenitude de possibilidades. A desordem aparente dos graus
pode ser instrução intencional: ao experimentar a fragmentação, o maçom aprende
a ver unidade no diverso, harmonia no múltiplo, sentido no contraditório.
O filósofo Heráclito já dizia que a harmonia se revela na
tensão dos contrários. A Maçonaria escocesa parece seguir essa linha: ao
justapor graus díspares, convida o iniciado a buscar a unidade perdida. Tal instrução
é profundamente andragógica: o adulto aprende mais pelo desafio do que pela
linearidade. Não se entrega a ele uma sequência lógica, mas um labirinto que o
obriga a exercitar discernimento, paciência e tolerância.
Kepler, Platão e a Ilusão da Perfeição
O exemplo de Kepler é ilustrativo. Sua tentativa de encaixar as
órbitas em figuras geométricas regulares perfeitas foi bela, mas equivocada.
Ele teve de aceitar a imperfeição aparente das elipses. E foi nessa
aceitação da irregularidade que a ciência deu um salto. De modo análogo,
Platão afirmava que o círculo perfeito só existe no mundo das ideias, não na
realidade sensível.
Essa constatação se faz presente na Maçonaria: o ideal de
perfeição é meta, não realidade. A vida concreta é tecida de imperfeições e
irregularidades, mas é justamente nesse tecido que se esconde a perfeição
maior. O Rito Escocês
Antigo e Aceito, com seus graus desconexos, parece ensinar isso de forma
prática.
A Antropologia do Caos
Do ponto de vista antropológico, a mente humana busca ordem
porque teme a morte. Reconhecer-se como parte de um cosmos irregular, acidental
e caótico abala a pretensão de imortalidade. Por isso, cria-se um deus antropomórfico
que atua segundo padrões humanos de beleza e perfeição.
A Maçonaria, ao referir-se ao conceito de Grande Arquiteto do
Universo, evita essa armadilha: não define a divindade, não lhe atribui forma
ou atributos humanos. O Grande Arquiteto do Universo é metáfora da
inteligência suprema, inacessível à razão humana.
A multiplicidade dos graus é reflexo dessa estratégia: não se oferece um dogma,
mas uma multiplicidade de símbolos que apontam para o Mistério.
Matéria, Energia e Vazio: Metáforas Iniciáticas
A física moderna mostra que o átomo é constituído de espaço vazio,
é a reunião de inúmeros campos energéticos que se deslocam em velocidades
alucinantes e que a matéria é, em essência, essa energia condensada que devido
a esse movimento extraordinário ilude os sensores humanos dando a impressão de
matéria densa, palpável. Essa constatação reflete-se simbolicamente no
iniciado: somos pó e luz ao mesmo tempo, massa insignificante e energia imensa.
Se o Universo é feito de imperfeições, acidentes e assimetrias, então a vida
é um milagre nascido do caos.
O maçom, ao meditar sobre sua natureza, percebe que a busca
de ordem absoluta é vã. A sabedoria é aceitar o caos como matriz de vida. O
encadeamento ilógico dos graus é metáfora desse ensinamento: cada grau é
fragmento de uma totalidade que não se deixa reduzir à lógica humana.
Filosofia Maçônica: Ver Ordem no Invisível
A filosofia é a lente que permite enxergar onde os sentidos
falham. Assim, o maçom aprende que a ordem não é estática, mas movimento; não é
imobilidade, mas fluxo; não é simetria rígida, mas harmonia dinâmica. O caos é
vida, a ordem absoluta é morte. O Rito Escocês Antigo e Aceito, que só é
completo se considerado com seus 33 graus, convida o maçom a perceber a vida
como ordem em meio ao caos.
A divisa "Ordo ab
Chao" não deve ser lida como "da
desordem surge a ordem", mas como "a ordem está no caos". Essa nuance altera toda a compreensão:
não é que o caos seja mera fase a ser superada pela ordem; é que a ordem
suprema já está presente no caos, ainda que invisível à mente humana.
Implicações Práticas para o Maçom
Para além da especulação filosófica, essa reflexão tem
implicações práticas na vida do maçom. Ele aprende a tolerar o diverso, a
aceitar o contraditório, a dialogar com a diferença. Aprende que a verdade não
está em um grau isolado, mas na tessitura de todos. Aprende que a vida não se
organiza como manual, mas como sinfonia de sons dissonantes que, juntos, criam
harmonia.
Assim, o maçom não busca encadear rigidamente os graus, mas
saborear cada um como expressão única do Mistério. E na convivência com os
irmãos, aprende que a ordem da fraternidade se constrói a partir da diversidade
de opiniões, temperamentos e experiências.
Uma Expressão de Ordem Superior
O encadeamento lógico dos graus do Rito Escocês Antigo e Aceito
é, em certo sentido, inexistente. Mas essa inexistência é uma instrução valiosa:
ensina que a ordem se revela no caos, que a perfeição se manifesta na
imperfeição, que o mistério do Grande Arquiteto do Universo não cabe em esquemas
humanos. Assim, a aparente desordem é, de fato, expressão de ordem superior.
Ao compreender isso, o maçom liberta-se da obsessão cartesiana
e abre-se ao mistério da vida. Ele aprende a ver
unidade na diversidade, luz no caos, sentido na multiplicidade. Esse
é o encadeamento dos graus: não linear, mas simbólico; não cartesiano, mas
iniciático; não lógico, mas sapiencial.
Bibliografia Comentada
1.
BAIGENT, Michael; Leigh, Richard. O Templo e a
Loja. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. Explora a conexão histórica e
simbólica entre templários e maçons, útil para entender a diversidade temática
dos graus;
2.
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo:
Palas Athena, 1990. Ressalta a função pedagógica dos mitos como metáforas do
mistério, paralela à função dos graus maçônicos;
3.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida
Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Analisa como as sociedades
constroem símbolos para lidar com o sagrado, aplicável à leitura da Maçonaria
como sistema simbólico fragmentado;
4.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São
Paulo: Martins Fontes, 1992. Fundamenta a ideia de que o homem projeta padrões
de ordem e perfeição sobre o divino, incapaz de apreender o mistério em si;
5.
GUÉNON, René. Símbolos Fundamentais da Ciência
Sagrada. Lisboa: Vega, 1995. Aborda a multiplicidade simbólica como linguagem
do sagrado, compatível com a leitura do Rito Escocês Antigo e Aceito como
mosaico caótico;
6.
HERÁCLITO. Fragmentos. São Paulo: Loyola, 2001.
O filósofo do devir, para quem a harmonia nasce da tensão dos contrários,
fundamento da visão do caos como ordem dinâmica;
7.
KEPLER, Johannes. Harmonices Mundi. 1619.
Clássico em que Kepler tentou encaixar a ordem cósmica em sólidos perfeitos,
exemplo do desejo humano de impor simetria ao universo;
8.
KNOWLES,
Malcolm. The Adult Learner. New York: Routledge, 2015. A andragogia
explica por que a fragmentação dos graus pode ser método eficaz para o
aprendizado adulto: aprende-se mais no desafio do que na linearidade;
9.
PIKE,
Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of
Freemasonry. Charleston, 1871. Obra fundamental para compreender a riqueza
simbólica dos graus filosóficos e sua aparente desconexão;
10. PLATÃO.
A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. A reflexão sobre o
mundo das ideias e a perfeição do círculo fornece suporte filosófico para a
distinção entre ideal e realidade imperfeita;
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