quinta-feira, 2 de outubro de 2025

O Compasso e sua Interpretação Filosófico-maçônica

 Charles Evaldo Boller

Elevação do Espírito e a Busca do Invisível

O compasso é, sem dúvida, um dos símbolos mais nobres e universais da Maçonaria. Juntamente com o esquadro, ele compõe o par fundamental de instrumentos que guiam o maçom em sua caminhada. O esquadro estabelece os limites da ação justa no plano da horizontalidade; o compasso, por sua vez, abre-se para a infinitude do espírito, medindo e regulando a vida em dimensões que transcendem a mera materialidade. Enquanto o esquadro representa a retidão da conduta no mundo visível, o compasso eleva o espírito para a busca do invisível, estabelecendo a ponte entre o humano e o divino.

O presente ensaio busca expandir a interpretação filosófico-maçônica do compasso, articulando-o com a tradição clássica, a filosofia iluminista e a espiritualidade iniciática, além de considerar sua aplicação prática na vida adulta, conforme os princípios da andragogia.

A Precisão dos Limites e a Certeza das Proporções

O compasso, instrumento dos arquitetos e construtores, permite desenhar círculos perfeitos, medir distâncias, dividir espaços com rigor geométrico. Essa função imediata simboliza a precisão dos limites que cada homem deve impor a si mesmo, delimitando a esfera de sua ação e respeitando a esfera do próximo.

Na filosofia clássica, Aristóteles ensinava que a virtude consiste em alcançar o "justo meio", evitando os excessos e as carências. O compasso, ao medir proporções, torna-se metáfora da justa medida aristotélica. Na vida maçônica, essa precisão não é fria racionalidade, mas prudência ativa: saber até onde ir, até onde falar, até onde agir, respeitando os ritmos da vida e os limites éticos que preservam a harmonia da coletividade.

A Justiça do Grande Arquiteto do Universo

Ao representar o círculo perfeito, o compasso remete à ideia da totalidade cósmica, reflexo da harmonia do Grande Arquiteto do Universo.

Platão, em sua "República", descreveu a justiça como a ordenação harmoniosa de todas as partes da alma e da cidade. Assim o compasso ordena o desenho, mantendo todas as linhas em perfeita equidistância do centro. Para o maçom, esse centro é o Grande Arquiteto do Universo, fonte de toda medida. O círculo que o compasso traça é a representação simbólica da justiça cósmica, que abarca todos os seres em igualdade.

Distinguir o Bem do Mal

O compasso não apenas delimita, mas também separa. No campo filosófico-maçônico, isso significa distinguir o bem do mal, a justiça da iniquidade. A tarefa iniciática não é meramente contemplativa, mas prática: o maçom deve exercer discernimento constante, utilizando o compasso interior para medir as consequências de seus atos.

Em Kant, o princípio moral se funda no imperativo categórico, que exige agir de modo que a máxima da ação possa valer como lei universal. O compasso traduz graficamente esse universal, pois o círculo é sempre o mesmo, independentemente de quem o trace. Distinguir o bem do mal é, portanto, agir com base em princípios universais, não em caprichos momentâneos.

Apreciar e Medir o Justo Valor

Um dos maiores desafios do homem moderno é atribuir valor às coisas e às pessoas. Vivemos em uma sociedade que confunde preço com valor, utilidade com dignidade. O compasso, símbolo da proporção, convida a medir o valor das coisas não pela conveniência imediata, mas pela sua contribuição à perfeição do ser.

No âmbito maçônico, apreciar o justo valor é reconhecer a fraternidade, a amizade e o conhecimento como riquezas maiores que qualquer bem material. Essa perspectiva aproxima-se de Spinoza, para quem a liberdade não consiste em satisfazer paixões, mas em compreender a ordem da natureza e nela encontrar alegria racional.

Verticalidade do Esquadro e Novo Aspecto da Verdade

O compasso trabalha em sintonia com o esquadro. O esquadro é a norma que garante a retidão; o compasso é a medida que expande essa retidão para novas dimensões. A verticalidade do esquadro indica a ascensão do espírito, que não se contenta com verdades relativas, mas busca a verdade absoluta.

No entanto, a verdade não é estática. Cada abertura do compasso revela um novo aspecto da verdade, um ângulo inexplorado. Isso ressoa com a filosofia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, que vê a verdade como um processo de diálogo e abertura, jamais como dogma imutável. A Maçonaria ensina o mesmo: cada grau, cada símbolo, cada interpretação é apenas um degrau na espiral da verdade infinita.

Transcendentalidade do Espírito Iniciático

A mais elevada função simbólica do compasso está na sua transcendentalidade. Ele não apenas mede o visível, mas aponta para o invisível. O círculo desenhado não é apenas figura geométrica, mas arquétipo do eterno, do infinito e do absoluto.

O espírito iniciático encontra no compasso a metáfora de sua própria condição: circunscrever-se ao dever e ao bem, mas abrir-se ao infinito da busca espiritual. Enquanto a matéria é transitória, limitada e efêmera, o espírito é eterno e progressivo. A filosofia maçônica, nesse sentido, reflete Plotino e os neoplatônicos, que viam no Uno a fonte de toda emanação e na alma o desejo de retornar ao centro.

Espírito Sobre a Matéria

O compasso, instrumento que se abre para além do ângulo do esquadro, ensina que o espírito prevalece sobre a transitoriedade da matéria. Essa lição é central na vida maçônica: não somos apenas corpo, mas consciência em expansão. A matéria é necessária, mas passageira; o espírito, porém, é eterno.

Na tradição cristã, Paulo já distinguia o "homem exterior" do "homem interior". A Maçonaria, fiel à sua vocação universalista, amplia esse ensinamento, lembrando que toda busca espiritual deve superar a ilusão materialista. Nesse ponto, o compasso torna-se guia de ascensão, símbolo do eterno sobre o efêmero.

Aplicações Práticas na Vida Maçônica e Profana

A filosofia do compasso não se limita a abstrações. Ela pode e deve ser aplicada em diversas esferas da vida:

·         Na família: usar o compasso para medir palavras e atitudes, evitando excessos de autoritarismo ou permissividade.

·         Na profissão: agir com equilíbrio, sem sacrificar a ética pela vantagem material.

·         Na sociedade: ser defensor da justiça, respeitando os limites do direito alheio.

·         Na Loja: exercitar a tolerância, a paciência e a prudência, preservando a harmonia fraterna.

Esse caráter aplicado do símbolo corresponde ao que Malcolm Knowles descreveu como princípio da andragogia: o adulto aprende melhor quando vê utilidade prática no conhecimento. Assim, a meditação sobre o compasso não é mero ritual, mas treinamento ético-espiritual para a vida cotidiana.

O Compasso Como Símbolo Universal

Não apenas a Maçonaria, mas diversas tradições antigas reconheceram no compasso o arquétipo do divino. Na iconografia medieval, Deus é muitas vezes representado como "Arquiteto do Mundo", traçando com o compasso os limites do cosmos.

Na filosofia chinesa, o Tao é simbolizado pelo círculo, em constante movimento, mas sempre retornando ao centro. Na tradição hindu, o mandala expressa graficamente a mesma ideia: a perfeição geométrica que leva ao equilíbrio espiritual. O compasso, portanto, transcende culturas, sendo universal.

O Símbolo da Busca Espiritual

O compasso, em sua simplicidade geométrica, revela uma profundidade inesgotável. Ele ensina proporção, justiça, discernimento, transcendência. É o símbolo da busca espiritual que não se contenta com a materialidade, mas deseja circunscrever-se ao bem e abrir-se ao infinito.

Na vida do maçom, o compasso é guia permanente: delimita o egoísmo, corrige os excessos, mede o valor, aponta para o centro, conduz à verdade. Ele é o instrumento do espírito em sua jornada de aperfeiçoamento contínuo.

Assim como o círculo não tem fim, também a interpretação do compasso é infinita. Cada geração de maçons encontrará nele novas lições, novos aspectos da verdade, novas formas de vivenciar a transcendência.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradicional fonte do conceito de "justo meio", essencial para compreender a função do compasso como medida de equilíbrio;

2.      CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol. Texto que relaciona geometria, espiritualidade e sociedade ideal;

3.      GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Relevante para a noção de que a verdade é dinâmica, revelando-se em novos aspectos, assim como a abertura do compasso;

4.      HALL, Manly P. The Secret Teachings of All Ages. Obra clássica que amplia a interpretação simbólica do compasso em diversas tradições esotéricas;

5.      JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Relevante para compreender o compasso como arquétipo universal do círculo e da totalidade;

6.      KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Inspira a ideia de princípios universais, que o compasso representa geometricamente;

7.      KNOWLES, Malcolm. The Adult Learner. Útil para aplicar a filosofia do compasso ao ensino maçônico na perspectiva da andragogia;

8.      PLATÃO. A República. Fundamenta a ideia da justiça como harmonia, associável ao círculo traçado pelo compasso;

9.      PLOTINO. Enéadas. Fundamenta a transcendência do espírito e o retorno ao Uno, representado pelo círculo;

10.  SPINOZA, Baruch. Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras. Traz a visão do valor racional e da alegria intelectual, que ecoa na justa medida do compasso;

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