Charles Evaldo Boller
O templo maçônico, na sua configuração arquitetônica e
simbólica, é um microcosmo que reproduz a ordem universal e fornece ao iniciado
um espaço pedagógico para o exercício da disciplina, da reflexão e do
aprendizado espiritual. Dentro desse espaço, cada detalhe possui significado,
ainda que, por vezes, este não esteja formalmente codificado. É o caso dos
degraus existentes em loja, no Rito Escocês Antigo e Aceito, que somam dez e se
distribuem em posições específicas: um no altar do Segundo Vigilante, dois no
altar do Primeiro Vigilante, três no trono do Venerável Mestre e quatro
separando o Oriente do Ocidente.
Embora a tradição ritualística do Rito Escocês Antigo e Aceito não lhes atribua, de
forma explícita, nomes ou significados canônicos, a presença dos degraus
constitui oportunidade para uma leitura simbólica ampliada, capaz de revelar
aspectos centrais da filosofia maçônica. A interpretação simbólica dos degraus
conduz à reflexão sobre hierarquia, disciplina, obediência, liderança,
humildade e serviço, categorias fundamentais para o maçom que busca não apenas
o crescimento pessoal, mas também o aperfeiçoamento coletivo.
O Degrau Como Símbolo de Ascensão
O degrau é, em essência, um convite ao movimento vertical, ao
esforço de elevar-se. Cada subida implica superar um estado anterior para
alcançar um patamar mais alto. No templo, o degrau não é mero obstáculo físico,
mas uma metáfora da escalada iniciática, que exige esforço contínuo, disciplina
e consciência do caminho. Na medida em que se sobe, aumenta-se a
responsabilidade; na medida em que se alcança posição mais elevada, maior deve
ser a humildade.
A Maçonaria, como escola filosófica, não tolera o orgulho
desmedido. Aquele que sobe degraus apenas para exibir insígnias, aventais
reluzentes ou títulos pomposos desvirtua o sentido da escalada. A subida que
deveria conduzir à virtude, nesse caso, degenera em descida moral. O brilho do
ouro ou da prata dos adornos não substitui o fulgor interno da alma
disciplinada, que se constrói no silêncio do trabalho e na dedicação ao bem
coletivo.
Degraus e Hierarquia: o Servir Como Poder
A hierarquia maçônica, ao contrário da hierarquia mundana, não
existe para estabelecer privilégios, mas responsabilidades. O Venerável Mestre,
sentado no trono elevado por três degraus, não está acima dos irmãos por mérito
de origem, riqueza ou dominação, mas por encargo temporário de servir. Os
degraus que o separam dos demais não simbolizam distância, mas responsabilidade
redobrada.
Aqui se aplica um princípio filosófico caro à Maçonaria: quanto
mais alto o degrau, maior a humildade exigida. Liderança não é domínio, mas
serviço. O mestre compreende que só lidera porque ouve, porque obedece à Ordem,
porque respeita a tradição e porque se deixa corrigir. A subida, portanto, é ao
mesmo tempo um abaixar-se diante dos irmãos.
No contexto maçônico, obedecer não significa submeter-se a um
autoritarismo cego, mas sim dar ouvidos, aprender a escutar. O verbo latino ob-audire[1] já
apontava para essa dimensão da obediência como ato de ouvir atentamente. O
líder maçom, antes de mandar, escuta; antes de falar, medita; antes de agir,
pondera. É desse equilíbrio que se forma o poder maçônico, diferente do poder
despótico que corrompe sociedades.
Degraus e Disciplina: a Escola do Templo
Cada degrau representa também um exercício de disciplina. Na
vida em sociedade, a disciplina é muitas vezes confundida com obediência
passiva; no templo, ao contrário, ela é um instrumento de lapidação. O erro
cometido em loja não destrói vidas, mas educa o espírito. O templo é o
laboratório onde se aprende a lidar com críticas, ansiedades, medos e
conflitos. É no degrau que se aprende a suportar o peso da responsabilidade, a
ouvir repreensões, a aceitar correções, e a cultivar a paciência.
Assim, os degraus são também símbolos da técnica de ensino
maçônica: cada um exige o esforço de quem sobe e, ao mesmo tempo, o cuidado de
quem já está acima em estender a mão ao irmão que vem atrás. Ninguém sobe
sozinho; todo degrau conquistado é também responsabilidade de puxar os outros.
É a tradução prática do ideal de fraternidade, que não pode ser apenas palavra,
mas deve ser ação concreta.
A Escalada dos Dez Degraus: Interpretação Simbólica
A distribuição dos dez degraus no templo pode ser lida como
progressão iniciática.
·
Um degrau no altar do Segundo Vigilante,
representa o primeiro passo, o aprendizado inicial, a base da formação
maçônica. É o degrau da escuta e da disciplina, onde o neófito começa sua
jornada.
·
Dois degraus no altar do Primeiro Vigilante,
indicam o progresso do companheiro, que já possui alguma maturidade e aprende a
conjugar teoria e prática, mente e ação.
·
Três degraus no trono do Venerável Mestre,
remetem à tríade simbólica da sabedoria, força e beleza, atributos necessários
ao governar da loja.
·
Quatro degraus separando Oriente do Ocidente,
simbolizam a ponte que liga mundos, o esforço coletivo para unir os extremos.
Representam também os quatro pontos cardeais e o caráter universal da
Maçonaria.
O conjunto de dez degraus pode ser interpretado como uma escada
moral, semelhante à escada de Jacó descrita no Gênesis, que liga a terra ao
céu. Cada degrau é etapa de progresso, não apenas para o indivíduo, mas para
toda a comunidade.
O Amor Como Último Degrau
No final de toda escalada, há um fundamento único que sustenta
os degraus: o amor fraterno. Sem amor, não há disciplina que dure, nem
liderança que prospere. O amor não é sentimentalismo ingênuo, mas compromisso
ativo com a justiça, com o perdão, com a humildade e com o respeito. O amor
é o cimento que liga os degraus e que impede a queda.
Cada degrau exige amor em diferentes modalidades: paciência,
gentileza, altruísmo, perdão, honestidade. É no exercício repetido dessas
virtudes que o maçom transforma a loja em verdadeira oficina de humanismo. O
templo, sustentado pelo amor, torna-se não apenas espaço arquitetônico, mas
lugar de manifestação do Grande Arquiteto do Universo.
Degraus, Liderança e Andragogia
A leitura dos degraus não pode ser dissociada da técnica de
ensino aplicada aos adultos, ou seja, da andragogia. O maçom não é criança em
formação; é adulto em lapidação. Os degraus representam um itinerário de
aprendizagem ativa, em que cada um deve ser sujeito da própria ascensão. O
facilitador, seja o Vigilante ou o Venerável ou outro mestre do quadro, não
ensina de forma vertical, mas conduz, provoca, estimula.
Assim como Malcolm Knowles descreveu na teoria andragógica, o
adulto aprende melhor quando é colocado diante de situações problematizadoras,
quando participa da decisão e quando percebe utilidade imediata no que aprende.
Subir um degrau é, portanto, um exercício prático, um ensaio de liderança, uma
oportunidade de aplicar no mundo profano o que se experimenta no templo.
Subir não é Dominar
Os dez degraus do templo no Rito Escocês Antigo e Aceito,
embora não possuam designação oficial, oferecem vasto campo para reflexão
filosófica e pedagógica. Eles ensinam que a liderança nasce da humildade, que a
obediência é ato de escuta, que a disciplina é laboratório de crescimento, e
que o amor fraterno é a argamassa que une todos os irmãos.
Na prática, cada degrau não é apenas um nível arquitetônico,
mas uma lição de vida. Eles recordam que subir não é dominar, mas servir;
que liderar não é mandar, mas ouvir; que aprender não é acumular títulos, mas
transformar-se. São símbolos permanentes que mantêm viva a essência da
Maçonaria: formar homens melhores para transformar a sociedade em espaço de
justiça, fraternidade e liberdade.
Bibliografia Comentada
1.
ALMEIDA, J. F. Maçonaria: Filosofia e
Simbolismo. Lisboa: Editorial Estrela, 1998. Explora a simbologia dos templos
maçônicos e sua relação com a filosofia moral, servindo de base para
interpretações como a dos degraus;
2.
ANDERSON, James. Constituições de 1723. Tradução
e edição crítica. São Paulo: Madras, 2002. Texto fundador da Maçonaria
Especulativa, onde se estabelecem princípios de igualdade e fraternidade que
fundamentam a interpretação dos degraus como símbolos de serviço e humildade;
3.
CÍCERO. De Officiis. São Paulo: Martins Fontes,
2005. O clássico da filosofia romana que trata do dever e da virtude,
mencionado para contextualizar a evolução do verbo obedire;
4.
KNOX,
Malcolm. The Adult Learner: Andragogy in Practice. Houston: Gulf
Publishing, 1980. Referência fundamental para compreender como os degraus se
relacionam com a aprendizagem adulta e a formação prática em loja;
5.
LÉVI, Éliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia.
Lisboa: Pensamento, 1997. Embora mais esotérico, ajuda a entender a ideia da
escada iniciática como símbolo de ascensão espiritual;
6.
MACNULTY, W. Kirk. Freemasonry: Symbols,
Secrets, Significance. Londres: Thames & Hudson, 2006. Obra de referência
que analisa o simbolismo arquitetônico e ritualístico da Maçonaria, incluindo a
simbologia dos degraus e escadas;
7.
PIKE,
Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry.
Charleston, 1871. Texto clássico do Rito Escocês Antigo e Aceito, embora não atribua
significados diretos aos degraus, oferece as bases para interpretação simbólica
ligada à disciplina e à liderança;
8.
SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro:
Record, 2009. Reflexão sobre o valor do trabalho e da disciplina na formação
humana, aplicável à ideia dos degraus como exercício contínuo de
aperfeiçoamento;
9.
SPINOZA, Baruch. Ética Demonstrada à Maneira dos
Geômetras. São Paulo: abril Cultural, 1979. Fundamenta a concepção de que o
progresso humano se faz por etapas racionais e éticas, semelhante à subida dos
degraus;
10. WEISHAUPT,
Adam. Escritos Maçônicos. Munique: Universitas, 1784. Contextualiza a função
política da Maçonaria e alerta para o perigo de sua deturpação por interesses
pessoais, diretamente relacionado ao mau uso dos degraus como trampolim de
poder;
[1]
"Ob audire" é uma expressão em Latim que significa "ouvir
com atenção" ou "dar ouvidos". Deriva da combinação do prefixo
latino "ob", que indica direção ou atenção, e do verbo
"audire", que significa "escutar" ou "ouvir". A
palavra portuguesa "obediência" tem essa origem, referindo-se a uma
atitude de acolhimento e escuta ativa em relação a uma palavra ou ordem;
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