Charles Evaldo Boller
Herança Espiritual que Inspira a Prática da Arte Real
A Maçonaria, ao longo de sua história, buscou sempre inspirar
seus adeptos por meio de símbolos, alegorias e doutrinas que transcendem a
simples transmissão literal de conteúdo. Tal postura aproxima a Ordem do
espírito platônico, que legou à humanidade não apenas diálogos escritos, mas,
sobretudo, o testemunho de que as maiores verdades não se comunicam por
palavras, e sim por uma forma de experiência intelectual e espiritual compartilhada, em que o convívio, o debate e a
vivência em comum tornam-se indispensáveis. Essas são as chamadas "doutrinas não escritas", que Platão
teria transmitido apenas oralmente em sua Academia, reservando os escritos para
reflexões secundárias.
Este ensaio busca desenvolver a relação entre as doutrinas não
escritas de Platão e a filosofia maçônica, interpretando-as como herança
espiritual que inspira a prática da Arte Real. Para tanto, abordaremos: o
contexto histórico de Platão, o significado das doutrinas não escritas, sua
ligação com a filosofia iniciática, o paralelo com a prática maçônica
contemporânea, a pedagogia implícita em tais ensinamentos e as consequências
para a formação do homem integral.
Platão e a Desilusão com a Política
Platão nasceu em uma Atenas abalada pela Guerra do Peloponeso.
Seus parentes próximos, Crítias e Cármides, integraram o regime dos Trinta
Tiranos, que marcou a cidade pelo uso arbitrário da violência e pela opressão
contra opositores. Essa experiência, aliada à condenação injusta de Sócrates,
seu mestre, despertou em Platão profundo desencanto com a política prática.
Se por um lado compreendeu que a política é inevitável, por
outro percebeu que sem um fundamento ético e filosófico ela se degrada em
tirania. Tentou intervir junto a governantes da Itália e da Sicília,
aconselhando-os ao governo justo, mas viu-se fracassado, inclusive chegando a
ser preso. Esse contexto histórico nos permite perceber por que Platão se
voltou cada vez mais ao ensino filosófico: via na formação do homem interior
a única base sólida para reformar a cidade.
As Doutrinas não Escritas
As chamadas doutrinas não escritas não constituem uma invenção
tardia de comentadores, mas um testemunho deixado pelo próprio Platão em sua
Carta VII. Nela, afirma:
"O conhecimento
destas coisas não é de forma alguma transmissível como os outros conhecimentos,
mas apenas após muitas discussões sobre tais coisas e após um período de vida
em comum, quando, de modo imprevisto, como luz que se acende de uma simples
fagulha, esse conhecimento nasce da alma e de si mesmo
se alimenta."
Esse trecho nos revela que a Verdade não é meramente
discursiva. Ao contrário, ela emerge no espírito como iluminação súbita, após
longo preparo de debates, reflexões e convivência. Esse é o mesmo método
maçônico: a Verdade não é imposta de fora, mas estimulada internamente pelo trabalho coletivo e pelo estudo
simbólico.
As doutrinas não escritas constituíam, provavelmente, o núcleo
da Metafísica platônica, voltada ao Bem Supremo. Não eram divulgadas a todos,
mas apenas aos que estavam preparados. Platão temia que tais ideias, se
reduzidas a fórmulas escritas, fossem mal interpretadas ou manipuladas pelos
sofistas e pelos tiranos.
A Filosofia da Iniciação
É evidente que o método das doutrinas não escritas guarda
analogia com os ritos iniciáticos. A iniciação nunca é transmissão de um
segredo "objetivo", mas uma
vivência que acende no interior do iniciado a luz de uma nova compreensão.
Daí a afinidade com a Maçonaria, que não "entrega" segredos, mas conduz o homem a experimentá-los em si
mesmo.
Platão, ao afirmar que "não haverá escrito meu sobre estas coisas", confirma a noção
de que certas verdades só podem ser comunicadas simbolicamente. Essa é também a
pedagogia da Maçonaria: seus ritos, alegorias e símbolos não são dogmas, mas
instrumentos que despertam no iniciado a experiência interior.
O Espaço Protegido e o Debate Filosófico
Platão insistia na necessidade de debates "isentos de paixão" para que a Verdade
emergisse. A Maçonaria cria um espaço análogo: a Loja, protegida do mundo
profano, onde guardas asseguram que nada de externo, curiosidade, materialismo
ou maldade, perturbe o ambiente.
A Loja torna-se, assim, um microcosmo do que Platão chamava
de Academia: espaço onde homens livres e comprometidos com a busca do saber
se reúnem para pensar juntos. O método
não é imposição, mas diálogo, confronto de ideias, comparação de perspectivas.
Tal processo reflete também a técnica de ensino andragógica, que valoriza a
experiência do adulto e seu aprendizado ativo em grupo.
O Autoconhecimento Como Fundamento
Sócrates já havia estabelecido o lema "conhece-te a ti mesmo". Platão
prossegue, mostrando que sem esse mergulho interior não há governo justo nem
sociedade saudável. O maçom, ao trabalhar sua pedra bruta, realiza
exatamente esse labor de autoconhecimento.
A Maçonaria ensina que ninguém pode pensar ou agir no lugar de
outro; cada um deve trilhar sua jornada interior. Mas oferece ferramentas,
símbolos e irmãos que tornam a caminhada mais fecunda. Assim como Platão
descreve a fagulha que se torna chama, também na Loja uma palavra, um debate
ou um símbolo pode acender luzes no íntimo do
maçom, levando-o à descoberta de sua espiritualidade.
A Lei Gravada no Coração
Platão acreditava que a lei não pode ser externa, mas deve
estar inscrita na alma do homem justo. A Maçonaria também sustenta que a única
lei suprema é aquela gravada no coração: o amor fraterno, a busca da verdade, a
prática da virtude.
O homem sem espiritualidade, guiado apenas por leis
externas, é um selvagem contido pela força. O homem que desperta sua
consciência interior, ao contrário, torna-se capaz de governar a si mesmo. Esse
é o ideal do "rei-filósofo"
platônico, mas também do mestre maçom: aquele que, dominando a si próprio, está
apto a orientar os demais sem tirania.
Livre Pensamento e Transformação da Sociedade
Platão percebeu que nenhum tirano pode dominar o livre
pensamento. Por isso, mesmo sob regimes opressores, a filosofia sobrevive
como chama indomável. A Maçonaria, igualmente, defende o livre pensamento como
atributo inalienável.
O maçom deve estimular em seus irmãos ideias novas, horizontes
diferentes, a fim de que todos cresçam. O resultado é uma sociedade
transformada, não pela força, mas pelo exemplo e pela luz interior de cada um.
Trata-se de um processo lento, mas seguro: transformar o indivíduo para depois
transformar a coletividade.
Amor Fraterno Como Fundamento Civilizatório
As doutrinas não escritas de Platão
conduzem ao amor como princípio civilizador. O amor não como emoção
passageira, mas como força espiritual capaz de tornar o homem selvagem em ser
humano verdadeiro. Essa é também a lição dos grandes iniciados da história, de
Krishna a Jesus Cristo, e o propósito último da Maçonaria.
Somente o amor fraterno pode garantir uma sociedade livre de
tirania, opressão e violência. A Maçonaria, ao cultivar esse amor em seus
templos, oferece ao mundo uma fagulha que pode incendiar consciências e renovar
paradigmas.
A Transformação Começa Dentro do Homem
As doutrinas não escritas de Platão não são apenas uma
curiosidade histórica, mas um convite atual: cultivar a busca do Bem, do
autoconhecimento e da espiritualidade por meio do convívio filosófico. A
Maçonaria, como herdeira desse espírito, reproduz o método: oferece espaço
protegido, instrumentos simbólicos e irmãos dedicados, para que cada um
descubra em si a fagulha da Verdade.
Assim, a filosofia platônica e a Maçonaria convergem em uma
mesma lição: a verdadeira transformação
começa dentro do homem, e só se realiza plenamente quando vivida em
comunidade fraterna.
Bibliografia Comentada
1.
ASSIS, Ruy. Maçonaria: filosofia da educação do
homem. Obra brasileira que reflete sobre a Maçonaria como método pedagógico e
filosófico, útil para aproximar a tradição platônica da prática maçônica contemporânea;
2.
CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol. Inspirado
no platonismo, este texto utópico reforça a ligação entre filosofia iniciática
e projetos de sociedade justa, comparável ao ideal maçônico;
3.
ELIADE, Mircea. História das Crenças e das
Ideias Religiosas. Oferece paralelo entre a iniciação e a espiritualidade
universal, mostrando como o tema da fagulha divina é recorrente em diversas
tradições;
4.
HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e
filosofia antiga. Demonstra que a filosofia antiga não era apenas teoria, mas
prática de vida, o que aproxima Platão dos métodos iniciáticos da Maçonaria;
5.
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem
grego. Estudo clássico sobre a educação grega, mostrando como filosofia e
pedagogia se uniam na formação integral do cidadão. Importante para relacionar
Platão e a andragogia maçônica;
6.
PLATÃO. A República. Obra onde Platão delineia a
ideia do rei-filósofo e a necessidade de que a política seja orientada pela
filosofia. Essencial para relacionar ética e governança justa;
7.
PLATÃO. Carta VII. Texto fundamental para
compreender as doutrinas não escritas. Nele, Platão afirma que as maiores
verdades não podem ser escritas, mas apenas experimentadas em comunidade filosófica;
8.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga.
Apresenta o contexto das doutrinas platônicas e sua recepção, mostrando a
relevância das doutrinas não escritas para a tradição Metafísica ocidental;
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