quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Doutrinas não Escritas, um Ensaio Filosófico-maçônico

 Charles Evaldo Boller

Herança Espiritual que Inspira a Prática da Arte Real

A Maçonaria, ao longo de sua história, buscou sempre inspirar seus adeptos por meio de símbolos, alegorias e doutrinas que transcendem a simples transmissão literal de conteúdo. Tal postura aproxima a Ordem do espírito platônico, que legou à humanidade não apenas diálogos escritos, mas, sobretudo, o testemunho de que as maiores verdades não se comunicam por palavras, e sim por uma forma de experiência intelectual e espiritual compartilhada, em que o convívio, o debate e a vivência em comum tornam-se indispensáveis. Essas são as chamadas "doutrinas não escritas", que Platão teria transmitido apenas oralmente em sua Academia, reservando os escritos para reflexões secundárias.

Este ensaio busca desenvolver a relação entre as doutrinas não escritas de Platão e a filosofia maçônica, interpretando-as como herança espiritual que inspira a prática da Arte Real. Para tanto, abordaremos: o contexto histórico de Platão, o significado das doutrinas não escritas, sua ligação com a filosofia iniciática, o paralelo com a prática maçônica contemporânea, a pedagogia implícita em tais ensinamentos e as consequências para a formação do homem integral.

Platão e a Desilusão com a Política

Platão nasceu em uma Atenas abalada pela Guerra do Peloponeso. Seus parentes próximos, Crítias e Cármides, integraram o regime dos Trinta Tiranos, que marcou a cidade pelo uso arbitrário da violência e pela opressão contra opositores. Essa experiência, aliada à condenação injusta de Sócrates, seu mestre, despertou em Platão profundo desencanto com a política prática.

Se por um lado compreendeu que a política é inevitável, por outro percebeu que sem um fundamento ético e filosófico ela se degrada em tirania. Tentou intervir junto a governantes da Itália e da Sicília, aconselhando-os ao governo justo, mas viu-se fracassado, inclusive chegando a ser preso. Esse contexto histórico nos permite perceber por que Platão se voltou cada vez mais ao ensino filosófico: via na formação do homem interior a única base sólida para reformar a cidade.

As Doutrinas não Escritas

As chamadas doutrinas não escritas não constituem uma invenção tardia de comentadores, mas um testemunho deixado pelo próprio Platão em sua Carta VII. Nela, afirma:

"O conhecimento destas coisas não é de forma alguma transmissível como os outros conhecimentos, mas apenas após muitas discussões sobre tais coisas e após um período de vida em comum, quando, de modo imprevisto, como luz que se acende de uma simples fagulha, esse conhecimento nasce da alma e de si mesmo se alimenta."

Esse trecho nos revela que a Verdade não é meramente discursiva. Ao contrário, ela emerge no espírito como iluminação súbita, após longo preparo de debates, reflexões e convivência. Esse é o mesmo método maçônico: a Verdade não é imposta de fora, mas estimulada internamente pelo trabalho coletivo e pelo estudo simbólico.

As doutrinas não escritas constituíam, provavelmente, o núcleo da Metafísica platônica, voltada ao Bem Supremo. Não eram divulgadas a todos, mas apenas aos que estavam preparados. Platão temia que tais ideias, se reduzidas a fórmulas escritas, fossem mal interpretadas ou manipuladas pelos sofistas e pelos tiranos.

A Filosofia da Iniciação

É evidente que o método das doutrinas não escritas guarda analogia com os ritos iniciáticos. A iniciação nunca é transmissão de um segredo "objetivo", mas uma vivência que acende no interior do iniciado a luz de uma nova compreensão. Daí a afinidade com a Maçonaria, que não "entrega" segredos, mas conduz o homem a experimentá-los em si mesmo.

Platão, ao afirmar que "não haverá escrito meu sobre estas coisas", confirma a noção de que certas verdades só podem ser comunicadas simbolicamente. Essa é também a pedagogia da Maçonaria: seus ritos, alegorias e símbolos não são dogmas, mas instrumentos que despertam no iniciado a experiência interior.

O Espaço Protegido e o Debate Filosófico

Platão insistia na necessidade de debates "isentos de paixão" para que a Verdade emergisse. A Maçonaria cria um espaço análogo: a Loja, protegida do mundo profano, onde guardas asseguram que nada de externo, curiosidade, materialismo ou maldade, perturbe o ambiente.

A Loja torna-se, assim, um microcosmo do que Platão chamava de Academia: espaço onde homens livres e comprometidos com a busca do saber se reúnem para pensar juntos. O método não é imposição, mas diálogo, confronto de ideias, comparação de perspectivas. Tal processo reflete também a técnica de ensino andragógica, que valoriza a experiência do adulto e seu aprendizado ativo em grupo.

O Autoconhecimento Como Fundamento

Sócrates já havia estabelecido o lema "conhece-te a ti mesmo". Platão prossegue, mostrando que sem esse mergulho interior não há governo justo nem sociedade saudável. O maçom, ao trabalhar sua pedra bruta, realiza exatamente esse labor de autoconhecimento.

A Maçonaria ensina que ninguém pode pensar ou agir no lugar de outro; cada um deve trilhar sua jornada interior. Mas oferece ferramentas, símbolos e irmãos que tornam a caminhada mais fecunda. Assim como Platão descreve a fagulha que se torna chama, também na Loja uma palavra, um debate ou um símbolo pode acender luzes no íntimo do maçom, levando-o à descoberta de sua espiritualidade.

A Lei Gravada no Coração

Platão acreditava que a lei não pode ser externa, mas deve estar inscrita na alma do homem justo. A Maçonaria também sustenta que a única lei suprema é aquela gravada no coração: o amor fraterno, a busca da verdade, a prática da virtude.

O homem sem espiritualidade, guiado apenas por leis externas, é um selvagem contido pela força. O homem que desperta sua consciência interior, ao contrário, torna-se capaz de governar a si mesmo. Esse é o ideal do "rei-filósofo" platônico, mas também do mestre maçom: aquele que, dominando a si próprio, está apto a orientar os demais sem tirania.

Livre Pensamento e Transformação da Sociedade

Platão percebeu que nenhum tirano pode dominar o livre pensamento. Por isso, mesmo sob regimes opressores, a filosofia sobrevive como chama indomável. A Maçonaria, igualmente, defende o livre pensamento como atributo inalienável.

O maçom deve estimular em seus irmãos ideias novas, horizontes diferentes, a fim de que todos cresçam. O resultado é uma sociedade transformada, não pela força, mas pelo exemplo e pela luz interior de cada um. Trata-se de um processo lento, mas seguro: transformar o indivíduo para depois transformar a coletividade.

Amor Fraterno Como Fundamento Civilizatório

As doutrinas não escritas de Platão conduzem ao amor como princípio civilizador. O amor não como emoção passageira, mas como força espiritual capaz de tornar o homem selvagem em ser humano verdadeiro. Essa é também a lição dos grandes iniciados da história, de Krishna a Jesus Cristo, e o propósito último da Maçonaria.

Somente o amor fraterno pode garantir uma sociedade livre de tirania, opressão e violência. A Maçonaria, ao cultivar esse amor em seus templos, oferece ao mundo uma fagulha que pode incendiar consciências e renovar paradigmas.

A Transformação Começa Dentro do Homem

As doutrinas não escritas de Platão não são apenas uma curiosidade histórica, mas um convite atual: cultivar a busca do Bem, do autoconhecimento e da espiritualidade por meio do convívio filosófico. A Maçonaria, como herdeira desse espírito, reproduz o método: oferece espaço protegido, instrumentos simbólicos e irmãos dedicados, para que cada um descubra em si a fagulha da Verdade.

Assim, a filosofia platônica e a Maçonaria convergem em uma mesma lição: a verdadeira transformação começa dentro do homem, e só se realiza plenamente quando vivida em comunidade fraterna.

Bibliografia Comentada

1.      ASSIS, Ruy. Maçonaria: filosofia da educação do homem. Obra brasileira que reflete sobre a Maçonaria como método pedagógico e filosófico, útil para aproximar a tradição platônica da prática maçônica contemporânea;

2.      CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol. Inspirado no platonismo, este texto utópico reforça a ligação entre filosofia iniciática e projetos de sociedade justa, comparável ao ideal maçônico;

3.      ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas. Oferece paralelo entre a iniciação e a espiritualidade universal, mostrando como o tema da fagulha divina é recorrente em diversas tradições;

4.      HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Demonstra que a filosofia antiga não era apenas teoria, mas prática de vida, o que aproxima Platão dos métodos iniciáticos da Maçonaria;

5.      JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Estudo clássico sobre a educação grega, mostrando como filosofia e pedagogia se uniam na formação integral do cidadão. Importante para relacionar Platão e a andragogia maçônica;

6.      PLATÃO. A República. Obra onde Platão delineia a ideia do rei-filósofo e a necessidade de que a política seja orientada pela filosofia. Essencial para relacionar ética e governança justa;

7.      PLATÃO. Carta VII. Texto fundamental para compreender as doutrinas não escritas. Nele, Platão afirma que as maiores verdades não podem ser escritas, mas apenas experimentadas em comunidade filosófica;

8.      REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Apresenta o contexto das doutrinas platônicas e sua recepção, mostrando a relevância das doutrinas não escritas para a tradição Metafísica ocidental;

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