sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Porque Livro da Lei?

 Charles Evaldo Boller

O Sentido Filosófico, Metafísico e Andragógico do livro da lei na Maçonaria.

O livro da lei é mais do que um objeto ritual; é o símbolo supremo da consciência moral e da liberdade espiritual. Nele se cruzam a Metafísica do Princípio, a ética do dever, a epistemologia da interpretação e a filosofia da mente consciente. É, portanto, a presença visível da Lei Invisível, o verbo eterno que estrutura o cosmos e habita o coração do homem.

Entre o Mito e o Símbolo

A pergunta "Por que livro da lei?" não se restringe à materialidade de um volume repousado sobre o altar maçônico, mas se eleva à categoria de problema filosófico: qual o sentido da Lei na Maçonaria? E o que representa o Livro enquanto repositório simbólico da verdade moral, do conhecimento e do dever? O texto sagrado, tomado como "Livro da Lei", é menos um catecismo e mais um símbolo de consciência, um espelho da relação do homem com o princípio universal que o transcende, o Grande Arquiteto do Universo.

A Maçonaria Especulativa, nascida da transição entre a Idade Média operativa e o Iluminismo racional, herdou o uso de textos bíblicos como suporte ritual e moral. Contudo, sua natureza deísta e filosófica libertou tais textos de suas amarras dogmáticas, transformando-os em instrumentos de método de ensino e iniciáticos. A Bíblia, o Alcorão, o Bhagavad Gita ou qualquer outro livro de revelação tornam-se, sob a ótica maçônica, o livro da lei, símbolo do respeito à moral universal e à pluralidade da experiência humana diante do Sagrado.

Assim, o livro da lei não é o fim, mas o meio; não o dogma, mas o símbolo da ordem moral que sustenta o edifício da liberdade interior. É a "pedra angular" do templo ético do homem, aquele que aprende, pela luz da razão e da fé, a medir com o compasso e o esquadro as proporções do bem, do dever e da verdade.

A Tradição e o Deísmo: a Metafísica do Princípio Criador

A Maçonaria, enquanto tradição filosófico-espiritual, reconhece a existência de um Princípio Criador inominado, o Grande Arquiteto do Universo. Tal concepção, conforme observam Albert Pike e William Preston, não é uma negação dos deuses históricos, mas um retorno à unidade primordial da qual derivam todas as formas de religiosidade.

O Deísmo maçônico nasce da Metafísica da ordem: há uma inteligência organizadora, uma arquitetura cósmica que estrutura o Universo segundo leis harmoniosas e racionais. A "Lei" expressa no livro da lei é, portanto, o reflexo simbólico dessa harmonia universal. O que ali se lê, sob letras humanas, é a tradução imperfeita de um logos eterno, que a mente racional apenas intui.

Platão, em sua República, já vislumbrava essa relação entre o Bem e o inteligível, o Sol que ilumina todas as formas. Aristóteles, em sua Metafísica, chamou esse princípio de Motor Imóvel, causa primeira e fim de todas as coisas. Kant, no Criticismo, situou o princípio moral em cada homem, a Lei dentro de nós, que espelha o céu estrelado acima. A Maçonaria sintetiza essa linhagem filosófica ao afirmar: "O livro da lei representa a presença do Princípio Criador no templo do homem."

Assim, a Lei não é a imposição externa, mas a revelação interna da ordem natural e moral. O Livro, enquanto símbolo, convida o iniciado a abrir não apenas suas páginas materiais, mas as páginas de sua própria consciência, o verdadeiro "livro sagrado" onde o Grande Arquiteto inscreve o destino de cada alma.

O Livro como Espelho da Consciência

A epistemologia maçônica, centrada na busca do conhecimento pela razão e pela experiência, vê no livro da lei um espelho que reflete o estado de consciência do leitor. A Bíblia judaico-cristã, o Alcorão islâmico, o Dhammapada budista, todos, em essência, tornam-se o mesmo espelho quando lidos com a lente da filosofia iniciática.

O que diferencia o maçom do dogmático é a postura crítica, reflexiva e simbólica diante da letra. Ele lê para interpretar, e interpreta para libertar-se da literalidade. Essa leitura simbólica é o que o filósofo Paul Ricoeur chamou de hermenêutica da suspeita[1]: compreender o texto para além de sua aparência, percebendo nele a estrutura profunda da moral e do mito.

Assim, quando o livro da lei é aberto sobre o altar, não é o texto que se abre, mas o próprio espírito do homem diante da luz da verdade. O altar é o coração do templo, e o livro sobre o altar é o coração do homem, aberto e vulnerável ao olhar do Grande Arquiteto do Universo.

A Ética Maçônica e o Princípio da Liberdade

Na ética maçônica, o respeito ao livro da lei é o reconhecimento de que toda sociedade humana precisa de uma base moral comum. Contudo, esta base não pode ser imposta como dogma, mas assumida como convicção livre. O maçom não venera o livro em si, mas o espírito da Lei que nele habita.

Como na Crítica da Razão Prática de Kant, a verdadeira moral nasce da autonomia da razão, do dever que não é imposto de fora, mas reconhecido como lei interior. O maçom, ao ajoelhar-se diante do livro da lei, não se submete a uma religião, mas à sua própria consciência moral.

Daí o princípio de liberdade que atravessa toda a Maçonaria: a liberdade de crer, de pensar e de mudar. Essa liberdade não é anárquica, mas racional; não é o abandono da Lei, mas sua internalização. A Lei torna-se o eixo invisível que mantém o equilíbrio entre a fé e a razão, entre o indivíduo e o coletivo.

Em termos práticos, essa ética se manifesta no cotidiano maçônico: na tolerância diante das diferenças, no respeito à fé do outro, na busca incessante pela verdade sem destruir a fé alheia. Como metáfora viva, cada maçom é um escriba da nova tábua da lei, não em pedra, mas em consciência.

A Andragogia da Tradição: Aprender a Ler o Símbolo

A leitura do livro da lei na Maçonaria não é catequética, mas andragógica, voltada à formação do adulto pensante. O aprendizado maçônico se dá por meio da experiência, da reflexão e da aplicação prática, e não pela simples memorização de preceitos.

Segundo Malcolm Knowles, o pai da andragogia moderna, o adulto aprende quando percebe a utilidade imediata do saber e quando participa ativamente do processo. A leitura simbólica do livro da lei obedece a esse princípio: cada trecho, lido e debatido em Loja, transforma-se em espelho de realidades interiores e em convite à autoanálise.

Um exemplo prático: o mito da construção do Templo de Salomão, tão recorrente nos textos bíblicos usados na Maçonaria, é reinterpretado não como fato histórico, mas como metáfora do autodesenvolvimento. Cada pedra polida simboliza um aspecto do caráter humano; cada ferramenta, uma virtude a ser cultivada. Assim, o Livro torna-se manual simbólico da construção interior, um "método de ensino da alma".

O maçom, já pleno de experiências e responsabilidades, não precisa de sermões, mas de interpretações libertadoras. A leitura compartilhada do livro da lei em Loja é, pois, exercício de metacognição[2], um diálogo entre consciências maduras que buscam não a certeza, mas o sentido.

Entre a Verdade e o Mito: a Função Hermenêutica

A filosofia maçônica entende o mito como veículo da verdade simbólica. Quando a liturgia utiliza passagens da Bíblia ou de outros livros sagrados, ela não os toma como registro histórico, mas como ficções de um método de ensino, parábolas que comunicam realidades profundas inacessíveis à lógica discursiva.

Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, recorda que o mito é o modo pelo qual a humanidade antiga dava forma sensível ao inefável. A Maçonaria continua essa tradição simbólica, extraindo dos mitos bíblicos o seu valor moral e psicológico. Hiram Abif, por exemplo, não é personagem histórico, mas arquétipo do homem fiel ao dever até a morte. Sua história, como a do Cristo ou de Prometeu, é mito com o objetivo de um método de treinamento: ensina por imagens o que a razão ainda não compreende.

A crítica construtiva que o maçom deve fazer é à idolatria da letra, à tentação de tomar o símbolo como literalidade. A Maçonaria liberta o homem do jugo da palavra morta e o conduz à experiência da Palavra Viva, aquela que habita o silêncio do ser, o verbo interior que cria e recria mundos.

A Diversidade Religiosa como Virtude Filosófica

Desde a admissão do judeu Eduard Rose em 1732, a Maçonaria tornou-se terreno fértil de pluralismo religioso. Tal pluralidade não é fraqueza, mas força, demonstra a universalidade do ideal maçônico. Na Loja, o Alcorão pode repousar ao lado da Bíblia, e ambos são igualmente sagrados, pois representam a presença da consciência moral comum a todos os homens.

Essa convivência entre livros e credos diferentes é metáfora da própria fraternidade universal. O livro da lei é o símbolo que unifica o múltiplo, o ponto dentro do círculo onde todas as linhas da fé convergem. Ele ensina que a verdade pode ser una em essência, ainda que múltipla em expressão.

Na prática, essa tolerância se traduz na arte da convivência: o maçom aprende a ouvir o irmão de outra fé sem pretender convertê-lo, reconhecendo que a luz se manifesta de formas distintas, mas com igual intensidade. Essa é a verdadeira religião do filósofo: não a de um credo particular, mas a da razão iluminada pela fé e da fé esclarecida pela razão.

Filosofia da Mente e o Silêncio do Altar

Do ponto de vista da filosofia da mente, o livro da lei pode ser interpretado como símbolo da consciência observadora. Ele repousa silencioso sobre o altar, mas tudo vê, tudo reflete. Sua presença é um lembrete da dimensão testemunhal da mente, aquela que observa sem julgar, que ilumina sem possuir.

Descartes buscou no cogito a certeza do ser; Husserl falou da intencionalidade da consciência; a Maçonaria, de modo simbólico, propõe o mesmo caminho: o livro é a consciência pura, o espaço em branco onde o homem escreve e reescreve o sentido de sua própria existência.

O silêncio do templo durante a leitura do livro da lei é exercício meditativo. O pensamento se aquieta, e o espírito contempla. O altar transforma-se em cérebro simbólico da Loja, e o Livro em seu córtex moral, o lugar onde o pensamento racional e o impulso espiritual se encontram para gerar sabedoria.

Críticas Construtivas: Entre a Letra e o Espírito

A crítica que se pode fazer à tradição maçônica é o risco de cristalizar o símbolo, de reduzir o livro da lei a um fetiche ritualístico. Quando o gesto perde o sentido, o símbolo morre. Cabe ao maçom resgatar o espírito da leitura viva, a interpretação dinâmica que renova o rito.

Outro risco é o sincretismo superficial, a crença de que basta aceitar todos os livros para ser tolerante. A tolerância é profunda: não nega as diferenças, mas as compreende pela empatia e pelo diálogo. O livro da lei deve ser lido não como consenso, mas como convite à convivência na diversidade.

Há o desafio contemporâneo: como manter viva a sacralidade do livro da lei num mundo secularizado? A resposta talvez esteja em redescobrir o sagrado como dimensão interior, não como imposição externa. O livro sagrado do século XXI é a consciência desperta, a única capaz de reconciliar ciência, fé e ética num mesmo horizonte de sentido.

O Livro da Lei e a Lei do Coração

O livro da lei não é o objeto, mas o símbolo da Lei Universal que habita o coração humano. Ele representa a síntese da filosofia maçônica: a união da razão e da fé, da moral e da liberdade, do indivíduo e da fraternidade.

O templo maçônico é o microcosmo do universo; o altar, o centro da consciência; e o Livro, a expressão do Verbo Criador. Quando o maçom abre o livro da lei, ele abre o próprio ser à Luz do Grande Arquiteto do Universo. Ler o Livro é ler-se a si mesmo; interpretar o texto é interpretar o mundo.

Eis, pois, a resposta à pergunta "Por que livro da lei?": porque a Lei é o eixo do cosmos e da consciência; porque o homem precisa de um espelho moral para não se perder no labirinto do ego; porque a liberdade só floresce onde há respeito à ordem e à Verdade; porque, em suma, todo maçom é um escriba da Lei Eterna que o Grande Arquiteto do Universo inscreve nas tábuas invisíveis da alma.

Bibliografia Comentada

1.      KANT, Immanuel, Crítica da Razão Prática. Kant fundamenta a ética na autonomia da razão, antecipando a noção maçônica de lei interior. A frase "o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim" é a mais bela síntese da filosofia do livro da lei;

2.      KNOWLES, Malcolm, The Adult Learner. Referência da andragogia moderna. Knowles explica como o adulto aprende de modo autônomo e experiencial, exatamente o método aplicado na leitura simbólica do livro da lei em Loja;

3.      MACKEY, Albert G., The Landmarks of Freemasonry. Obra fundamental que define os princípios imutáveis da Maçonaria, incluindo a crença no Princípio Criador e na imortalidade da alma. Mackey sustenta a necessidade simbólica do livro da lei como eixo ritual e moral;

4.      NIETZSCHE, Friedrich, O Nascimento da Tragédia. Sua concepção do mito como portador de verdades profundas ilumina o uso maçônico de narrativas simbólicas. O mito não é mentira, mas linguagem da alma;

5.      PIKE, Albert, Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry. Pike interpreta o livro da lei como metáfora da sabedoria divina e da consciência moral. Sua leitura filosófica destaca a universalidade da Lei e o caráter simbólico dos textos bíblicos na liturgia maçônica;

6.      PLATÃO, A República. O diálogo platônico sobre o Bem e a Justiça fornece a base Metafísica para compreender a Lei como ideia eterna, da qual todas as leis humanas são sombras imperfeitas. Influência decisiva para a filosofia iniciática;

7.      PRESTON, William, Illustrations of Masonry. Primeiro sistematizador da simbologia maçônica. Preston relaciona o livro da lei à moral prática e à edificação da virtude como pedra angular da fraternidade;

8.      RICOEUR, Paul, A Simbólica do Mal. Ricoeur propõe uma hermenêutica da consciência e do mito, útil para compreender a leitura simbólica dos textos sagrados pela Maçonaria: a passagem da letra ao espírito, do mito à moral;



[1] A hermenêutica da suspeita é uma abordagem interpretativa crítica que busca desvendar significados ocultos e encobertos em textos, discursos e fenômenos culturais. O termo foi cunhado pelo filósofo francês Paul Ricœur, que se inspirou nos pensadores Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche, os chamados "mestres da suspeita". Essa escola de pensamento parte do ceticismo em relação ao que é aparente, questionando as interpretações mais óbvias para revelar as motivações e ideologias subjacentes;

[2] Metacognição é a habilidade de pensar sobre o próprio pensamento. Envolve monitorar e autorregular seus próprios processos cognitivos para alcançar objetivos de aprendizagem ou resolução de problemas. Isso inclui a capacidade de planejar, organizar, controlar e avaliar suas próprias estratégias de aprendizado e pensamento;

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