O Sentido Filosófico, Metafísico e Andragógico do livro da lei na Maçonaria.
O livro da lei é mais do que um objeto ritual; é o símbolo
supremo da consciência moral e da liberdade espiritual. Nele se cruzam a
Metafísica do Princípio, a ética do dever, a epistemologia da interpretação e a
filosofia da mente consciente. É, portanto, a presença visível da Lei Invisível,
o verbo eterno que estrutura o cosmos e habita o coração do homem.
Entre o Mito e o Símbolo
A pergunta "Por que
livro da lei?" não se restringe à materialidade de um volume repousado
sobre o altar maçônico, mas se eleva à categoria de problema filosófico: qual o
sentido da Lei na Maçonaria? E o que representa o Livro enquanto repositório
simbólico da verdade moral, do conhecimento e do dever? O texto sagrado, tomado
como "Livro da Lei", é menos
um catecismo e mais um símbolo de consciência, um espelho da relação do homem
com o princípio universal que o transcende, o Grande Arquiteto do Universo.
A Maçonaria Especulativa, nascida da transição entre a Idade
Média operativa e o Iluminismo racional, herdou o uso de textos bíblicos como
suporte ritual e moral. Contudo, sua natureza deísta e filosófica libertou tais
textos de suas amarras dogmáticas, transformando-os em instrumentos de método
de ensino e iniciáticos. A Bíblia, o Alcorão, o Bhagavad Gita ou qualquer outro
livro de revelação tornam-se, sob a ótica maçônica, o livro da lei, símbolo do
respeito à moral universal e à pluralidade da experiência humana diante do
Sagrado.
Assim, o livro da lei não é o fim, mas o meio; não o dogma, mas
o símbolo da ordem moral que sustenta o edifício da liberdade interior. É a
"pedra angular" do templo
ético do homem, aquele que aprende, pela luz da razão e da fé, a medir com o
compasso e o esquadro as proporções do bem, do dever e da verdade.
A Tradição e o Deísmo: a Metafísica do Princípio Criador
A Maçonaria, enquanto tradição filosófico-espiritual, reconhece
a existência de um Princípio Criador inominado, o Grande Arquiteto do Universo.
Tal concepção, conforme observam Albert Pike e William Preston, não é uma
negação dos deuses históricos, mas um retorno à unidade primordial da qual
derivam todas as formas de religiosidade.
O Deísmo maçônico nasce da Metafísica da ordem: há uma
inteligência organizadora, uma arquitetura cósmica que estrutura o Universo
segundo leis harmoniosas e racionais. A "Lei" expressa no livro da lei é, portanto, o reflexo simbólico
dessa harmonia universal. O que ali se lê, sob letras humanas, é a tradução
imperfeita de um logos eterno, que a mente racional apenas intui.
Platão, em sua República, já vislumbrava essa relação entre o
Bem e o inteligível, o Sol que ilumina todas as formas. Aristóteles, em sua
Metafísica, chamou esse princípio de Motor Imóvel, causa primeira e fim de
todas as coisas. Kant, no Criticismo, situou o princípio moral em cada homem, a
Lei dentro de nós, que espelha o céu estrelado acima. A Maçonaria sintetiza
essa linhagem filosófica ao afirmar: "O
livro da lei representa a presença do Princípio Criador no templo do homem."
Assim, a Lei não é a imposição externa, mas a revelação interna
da ordem natural e moral. O Livro, enquanto símbolo, convida o iniciado a abrir
não apenas suas páginas materiais, mas as páginas de sua própria consciência, o
verdadeiro "livro sagrado"
onde o Grande Arquiteto inscreve o destino de cada alma.
O Livro como Espelho da Consciência
A epistemologia maçônica, centrada na busca do conhecimento
pela razão e pela experiência, vê no livro da lei um espelho que reflete o
estado de consciência do leitor. A Bíblia judaico-cristã, o Alcorão islâmico, o
Dhammapada budista, todos, em essência, tornam-se o mesmo espelho quando lidos
com a lente da filosofia iniciática.
O que diferencia o maçom do dogmático é a postura crítica,
reflexiva e simbólica diante da letra. Ele lê para interpretar, e interpreta
para libertar-se da literalidade. Essa leitura simbólica é o que o filósofo
Paul Ricoeur chamou de hermenêutica da suspeita[1]: compreender o texto
para além de sua aparência, percebendo nele a estrutura profunda da moral e do
mito.
Assim, quando o livro da lei é aberto sobre o altar, não é o
texto que se abre, mas o próprio espírito do homem diante da luz da verdade. O
altar é o coração do templo, e o livro sobre o altar é o coração do homem,
aberto e vulnerável ao olhar do Grande Arquiteto do Universo.
A Ética Maçônica e o Princípio da Liberdade
Na ética maçônica, o respeito ao livro da lei é o
reconhecimento de que toda sociedade humana precisa de uma base moral comum.
Contudo, esta base não pode ser imposta como dogma, mas assumida como convicção
livre. O maçom não venera o livro em si, mas o espírito da Lei que nele
habita.
Como na Crítica da Razão Prática de Kant, a verdadeira moral
nasce da autonomia da razão, do dever que não é imposto de fora, mas
reconhecido como lei interior. O maçom, ao ajoelhar-se diante do livro da
lei, não se submete a uma religião, mas à sua própria
consciência moral.
Daí o princípio de liberdade que atravessa toda a Maçonaria: a
liberdade de crer, de pensar e de mudar. Essa liberdade não é anárquica, mas
racional; não é o abandono da Lei, mas sua internalização. A Lei torna-se o
eixo invisível que mantém o equilíbrio entre a fé e a razão, entre o indivíduo
e o coletivo.
Em termos práticos, essa ética se manifesta no cotidiano
maçônico: na tolerância diante das diferenças, no respeito à fé do outro, na
busca incessante pela verdade sem destruir a fé alheia. Como metáfora viva,
cada maçom é um escriba da nova tábua da lei, não em pedra, mas em consciência.
A Andragogia da Tradição: Aprender a Ler o Símbolo
A leitura do livro da lei na Maçonaria não é catequética, mas
andragógica, voltada à formação do adulto pensante. O aprendizado maçônico se
dá por meio da experiência, da reflexão e da aplicação prática, e não pela
simples memorização de preceitos.
Segundo Malcolm Knowles, o pai da andragogia moderna, o adulto
aprende quando percebe a utilidade imediata do saber e quando participa
ativamente do processo. A leitura simbólica do livro da lei obedece a esse
princípio: cada trecho, lido e debatido em Loja, transforma-se em espelho de
realidades interiores e em convite à autoanálise.
Um exemplo prático: o mito da construção do Templo de Salomão,
tão recorrente nos textos bíblicos usados na Maçonaria, é reinterpretado não
como fato histórico, mas como metáfora do autodesenvolvimento. Cada pedra
polida simboliza um aspecto do caráter humano; cada ferramenta, uma virtude a
ser cultivada. Assim, o Livro torna-se manual simbólico da construção interior,
um "método de ensino da alma".
O maçom, já pleno de experiências e responsabilidades, não
precisa de sermões, mas de interpretações libertadoras. A leitura compartilhada
do livro da lei em Loja é, pois, exercício de metacognição[2], um diálogo entre
consciências maduras que buscam não a certeza, mas o sentido.
Entre a Verdade e o Mito: a Função Hermenêutica
A filosofia maçônica entende o mito como veículo da verdade
simbólica. Quando a liturgia utiliza passagens da Bíblia ou de outros livros
sagrados, ela não os toma como registro histórico, mas como ficções de um
método de ensino, parábolas que comunicam realidades profundas inacessíveis à
lógica discursiva.
Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, recorda que o mito é o
modo pelo qual a humanidade antiga dava forma sensível ao inefável. A Maçonaria
continua essa tradição simbólica, extraindo dos mitos bíblicos o seu valor
moral e psicológico. Hiram Abif, por exemplo, não é personagem histórico, mas
arquétipo do homem fiel ao dever até a morte. Sua história, como a do Cristo ou
de Prometeu, é mito com o objetivo de um método de treinamento: ensina por
imagens o que a razão ainda não compreende.
A crítica construtiva que o maçom deve fazer é à idolatria da
letra, à tentação de tomar o símbolo como literalidade. A Maçonaria liberta o
homem do jugo da palavra morta e o conduz à experiência da Palavra Viva, aquela
que habita o silêncio do ser, o verbo interior que cria e recria mundos.
A Diversidade Religiosa como Virtude Filosófica
Desde a admissão do judeu Eduard Rose em 1732, a Maçonaria
tornou-se terreno fértil de pluralismo religioso. Tal pluralidade não é fraqueza,
mas força, demonstra a universalidade do ideal maçônico. Na Loja, o Alcorão
pode repousar ao lado da Bíblia, e ambos são igualmente sagrados, pois
representam a presença da consciência moral comum a todos os homens.
Essa convivência entre livros e credos diferentes é metáfora da
própria fraternidade universal. O livro da lei é o símbolo que unifica o
múltiplo, o ponto dentro do círculo onde todas as linhas da fé convergem. Ele
ensina que a verdade pode ser una em essência, ainda que múltipla em expressão.
Na prática, essa tolerância se traduz na arte da convivência: o
maçom aprende a ouvir o irmão de outra fé sem pretender convertê-lo,
reconhecendo que a luz se manifesta de formas distintas, mas com igual
intensidade. Essa é a verdadeira religião do filósofo: não a de um credo
particular, mas a da razão iluminada pela fé e da fé esclarecida pela razão.
Filosofia da Mente e o Silêncio do Altar
Do ponto de vista da filosofia da mente, o livro da lei pode
ser interpretado como símbolo da consciência observadora. Ele repousa
silencioso sobre o altar, mas tudo vê, tudo reflete. Sua presença é um lembrete
da dimensão testemunhal da mente, aquela que observa sem julgar, que ilumina
sem possuir.
Descartes buscou no cogito a certeza do ser; Husserl falou da
intencionalidade da consciência; a Maçonaria, de modo simbólico, propõe o mesmo
caminho: o livro é a consciência pura, o espaço em branco onde o homem
escreve e reescreve o sentido de sua própria existência.
O silêncio do templo durante a leitura do livro da lei é
exercício meditativo. O pensamento se aquieta, e o espírito contempla. O altar
transforma-se em cérebro simbólico da Loja, e o Livro em seu córtex moral, o
lugar onde o pensamento racional e o impulso espiritual se encontram para gerar
sabedoria.
Críticas Construtivas: Entre a Letra e o Espírito
A crítica que se pode fazer à tradição maçônica é o risco de
cristalizar o símbolo, de reduzir o livro da lei a um fetiche ritualístico.
Quando o gesto perde o sentido, o símbolo morre. Cabe ao maçom resgatar o
espírito da leitura viva, a interpretação dinâmica que renova o rito.
Outro risco é o sincretismo superficial, a crença de que basta
aceitar todos os livros para ser tolerante. A tolerância é profunda: não nega
as diferenças, mas as compreende pela empatia e pelo diálogo. O livro da lei
deve ser lido não como consenso, mas como convite à convivência na diversidade.
Há o desafio contemporâneo: como manter viva a sacralidade do
livro da lei num mundo secularizado? A resposta talvez esteja em redescobrir o
sagrado como dimensão interior, não como imposição externa. O livro sagrado do
século XXI é a consciência desperta, a
única capaz de reconciliar ciência, fé e ética num mesmo horizonte de sentido.
O Livro da Lei e a Lei do Coração
O livro da lei não é o objeto, mas o símbolo da Lei Universal
que habita o coração humano. Ele representa a síntese da filosofia maçônica: a
união da razão e da fé, da moral e da liberdade, do indivíduo e da fraternidade.
O templo maçônico é o microcosmo do universo; o altar, o centro
da consciência; e o Livro, a expressão do Verbo Criador. Quando o maçom abre o
livro da lei, ele abre o próprio ser à Luz do Grande Arquiteto do Universo. Ler
o Livro é ler-se a si mesmo; interpretar o texto é interpretar o mundo.
Eis, pois, a resposta à pergunta "Por que livro da lei?": porque a Lei é o eixo do cosmos e da
consciência; porque o homem precisa de um espelho moral para não se perder no
labirinto do ego; porque a liberdade só floresce onde há respeito à ordem e à
Verdade; porque, em suma, todo maçom é um escriba da Lei Eterna que o Grande
Arquiteto do Universo inscreve nas tábuas invisíveis da alma.
Bibliografia Comentada
1.
KANT, Immanuel, Crítica da Razão Prática. Kant
fundamenta a ética na autonomia da razão, antecipando a noção maçônica de lei
interior. A frase "o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de
mim" é a mais bela síntese da filosofia do livro da lei;
2.
KNOWLES,
Malcolm, The Adult Learner. Referência da andragogia moderna. Knowles
explica como o adulto aprende de modo autônomo e experiencial, exatamente o
método aplicado na leitura simbólica do livro da lei em Loja;
3.
MACKEY,
Albert G., The Landmarks of Freemasonry. Obra fundamental que define os
princípios imutáveis da Maçonaria, incluindo a crença no Princípio Criador e na
imortalidade da alma. Mackey sustenta a necessidade simbólica do livro da lei
como eixo ritual e moral;
4.
NIETZSCHE, Friedrich, O Nascimento da Tragédia.
Sua concepção do mito como portador de verdades profundas ilumina o uso
maçônico de narrativas simbólicas. O mito não é mentira, mas linguagem da alma;
5.
PIKE,
Albert, Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of
Freemasonry. Pike interpreta o livro da lei como metáfora da sabedoria
divina e da consciência moral. Sua leitura filosófica destaca a universalidade
da Lei e o caráter simbólico dos textos bíblicos na liturgia maçônica;
6.
PLATÃO, A República. O diálogo platônico sobre o
Bem e a Justiça fornece a base Metafísica para compreender a Lei como ideia
eterna, da qual todas as leis humanas são sombras imperfeitas. Influência
decisiva para a filosofia iniciática;
7.
PRESTON,
William, Illustrations of Masonry. Primeiro sistematizador da simbologia
maçônica. Preston relaciona o livro da lei à moral prática e à edificação da
virtude como pedra angular da fraternidade;
8.
RICOEUR, Paul, A Simbólica do Mal. Ricoeur
propõe uma hermenêutica da consciência e do mito, útil para compreender a
leitura simbólica dos textos sagrados pela Maçonaria: a passagem da letra ao
espírito, do mito à moral;
[1]
A hermenêutica da suspeita é uma abordagem interpretativa crítica que
busca desvendar significados ocultos e encobertos em textos, discursos e
fenômenos culturais. O termo foi cunhado pelo filósofo francês Paul Ricœur, que
se inspirou nos pensadores Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche, os chamados
"mestres da suspeita". Essa escola de pensamento parte do ceticismo
em relação ao que é aparente, questionando as interpretações mais óbvias para
revelar as motivações e ideologias subjacentes;
[2]
Metacognição é a habilidade de pensar sobre o próprio pensamento.
Envolve monitorar e autorregular seus próprios processos cognitivos para
alcançar objetivos de aprendizagem ou resolução de problemas. Isso inclui a
capacidade de planejar, organizar, controlar e avaliar suas próprias
estratégias de aprendizado e pensamento;
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