Desde os albores da civilização humana, a ideia de um "tribunal celeste" tem sido uma das
mais persistentes e eficazes construções simbólicas criadas pela mente humana.
Ela serve, ao mesmo tempo, como instrumento de controle social, como
representação das angústias morais e como reflexo do anseio pela justiça
perfeita que o homem, limitado por suas paixões e imperfeições, jamais
conseguiu instituir sobre a Terra. Judaísmo e Cristianismo herdaram e adaptaram
esse modelo, revestindo-o de moral teológica, com a figura de um deus que
julga, pune e recompensa. Contudo, a história revela que esta concepção não
nasceu no Sinai nem nas margens do Jordão, mas sim nas margens do Nilo, nas
planícies da Mesopotâmia e nos mistérios solares do Mitraísmo.
O Tribunal de Osíris e o Julgamento das Almas
No Egito Antigo, o Tribunal de Osíris representava o juízo
final do morto diante dos deuses, uma espécie de alfândega espiritual entre o
mundo dos vivos e o Sol de Rá. O coração do falecido era colocado num dos
pratos de uma balança, enquanto, no outro prato, era colocada uma pena de
avestruz, símbolo de Ma'at, a deusa da Verdade e da Justiça. Se o coração
pesasse mais do que a pena, era sinal de impureza moral: a alma era então
devorada por Ammit, a criatura híbrida que unia os traços do leão, do crocodilo
e do hipopótamo.
A beleza dessa narrativa reside no fato de que o julgamento não
se dava pela vontade de uma divindade antropomórfica, mas pelo equilíbrio de
uma lei natural: o peso simbólico das ações. A balança não mente, não se
corrompe, não se altera conforme o humor do deus. Ela apenas mede. Essa
imparcialidade expressa o ideal supremo de justiça, e é talvez por isso que a
Maçonaria tenha preferido, para fins didáticos e filosóficos, o Tribunal de
Osíris ao tribunal de Jeová. O primeiro simboliza a ordem natural; o segundo, o
arbítrio divino.
No Rito Escocês Antigo e Aceito, o Tribunal de Osíris é visto
como uma alegoria da consciência. Cada
homem traz em si o seu tribunal interno: o coração é o réu e o juiz
simultaneamente, a pena representa a verdade que pesa sobre o ato, e a balança
é o equilíbrio entre o amor e a razão. A fera Ammit é a sombra que devora o ser
corrompido pela mentira, pela avareza e pela vaidade.
A Tirania do Tribunal de Jeová
O tribunal do deus hebraico, por sua vez, expressa a
transposição do poder temporal para o plano espiritual. Um deus ciumento e
vingativo, que condena à danação eterna, reflete mais o medo e a culpa humana
do que a natureza do Sagrado. Essa concepção é própria das sociedades
teocráticas que necessitam de instrumentos de domínio. A religião se fez tribunal,
e o tribunal se fez instrumento de poder.
Na leitura maçônica, esse modelo de tribunal divino é
incompatível com o conceito de Grande Arquiteto do Universo, Ele não julga, não
pune e não recompensa; Ele cria, inspira e sustenta. O julgamento é invenção
humana, fruto da necessidade de ordenar o caos social e de controlar o
comportamento pela culpa. O verdadeiro deus, diz a filosofia esotérica, é Amor,
e o amor não julga.
Justiça Imparcial e a Condição Humana
Desde os tempos das cavernas, o homem se mostra incapaz de
julgar com imparcialidade. Sua percepção é falha, seus sentidos o enganam, suas
paixões distorcem o discernimento. O juiz humano, preso à carne e ao ego,
raramente julga o outro sem medir as vantagens ou temores que pode colher do
ato de julgar. A justiça perfeita seria atributo divino, pois exigiria uma visão
que ultrapassasse o tempo e o espaço, o contexto e as aparências.
Foi o homem quem transformou Jeová e Osiris em juízes, pois
para eles a justiça é desnecessária. A justiça é uma invenção humana utilizada
para conter a ferocidade do homem e obter um acordo de paz relativo para
possibilitar a convivência entre os membros das diversas sociedades.
Em A República, Platão descreve a dikê[1] como a harmonia das
partes da alma e a justa ordem do Estado. Em ambos os níveis, a justiça surge
da temperança, da prudência e do autodomínio. Não há justiça sem
autoconhecimento. Julgar o outro sem ter julgado a si mesmo é a maior das
injustiças.
O maçom aprende que a balança da justiça deve primeiro pesar o
próprio coração. O tribunal do templo interno é o mais severo de todos. Nenhum
deus o instituiu: ele é inerente à alma consciente. A iniciação é o despertar
desse tribunal interior, onde o homem se torna simultaneamente juiz, réu e
testemunha de si mesmo.
A Função Didática dos Tribunais Humanos
A história da humanidade é um longo desfile de tribunais e de
tiranos. O Tribunal Fêmico da Alemanha medieval, por exemplo, é um exemplo de
justiça corrompida pela religião e pela política. Criado sob Carlos Magno, e
perpetuado pelos impérios germânicos, transformou-se em instrumento de terror e
de poder, julgando conforme as conveniências da Igreja Católica Apostólica
Romana e dos senhores feudais. Seu simbolismo reaparece, porém, na Maçonaria,
com uma intenção puramente instrucional: ensinar, pelo contraste, o que não
deve ser feito.
O Egrégio Supremo Tribunal Maçônico, inspirado nesse modelo
histórico, representa o desafio de criar um tribunal justo num mundo de
injustos. A espada, a balança, a pena e o coração são símbolos didáticos:
·
A espada, como a língua, fere ou defende
conforme o uso;
·
A balança simboliza a prudência e a
ponderação;
·
A pena de avestruz, a leveza da verdade;
·
O coração, a sinceridade dos sentimentos;
·
A taça de cristal, o destino transparente
do justo;
·
O corvo, mensageiro divino e guia das
almas pelas trevas da ignorância.
A justiça maçônica não se resume a punir ou absolver, mas a
despertar no irmão a consciência da reta conduta. Ela é um exercício
espiritual. Julgar, nesse sentido, é refletir sobre os reflexos do próprio
espelho interior.
O Julgamento e o Amor
A filosofia maçônica se aproxima aqui do ensinamento de
Spinoza, para quem Deus é a própria Natureza, e o bem e o mal são apenas percepções
relativas dos atos humanos. O Grande Arquiteto do Universo não se ocupa em
punir ou premiar, mas em criar. Seu amor é imanente, não dependente de conduta
ou moral. Assim, a ideia de um tribunal após a morte é uma projeção
antropomórfica: é o homem que cria deuses para julgar o que ele mesmo não
consegue compreender em si.
Jesus, no Sermão da Montanha, aboliu o tribunal exterior ao
propor o tribunal da consciência: "Com a medida com que medirdes, sereis
medidos." Não se trata de castigo divino, mas de lei natural. A consciência é o espelho onde a alma
contempla o reflexo de seus atos. O inferno é a mente atormentada por seus
erros; o céu é a serenidade daquele que viveu em harmonia.
Julgar é Coisa de Homens
No simbolismo do Rito
Escocês Antigo e Aceito, o tribunal não se ergue nas colunas de um
templo, mas nas câmaras do coração. Quando o maçom compreende que julgar o
outro é uma forma de fugir do próprio julgamento, ele ascende moralmente. A "justiça divina" é o amor que
dissolve a necessidade do julgamento. Onde o amor impera, não há culpa, apenas
aprendizado.
A sabedoria esotérica afirma que "O que está em cima é como o que está embaixo". Assim, o
tribunal terrestre reflete o tribunal interior, e este, por sua vez, espelha o
tribunal universal. Quando o homem julga com amor e prudência, ele se aproxima
da consciência divina. Quando julga com ódio ou vaidade, distancia-se da Luz.
A Maçonaria, ao instruir o iniciado sobre o Egrégio Tribunal,
convida-o a desenvolver a arte da equidade, a compreender que a justiça é
autoconhecimento, e que o Grande Arquiteto do Universo não exige julgamento,
mas evolução. O amor substitui o castigo, e a consciência substitui a pena.
O Julgamento é Sempre Humano
Em suma, todos os tribunais humanos, divinos ou simbólicos,
não passam de espelhos da alma humana em busca de retidão. O Tribunal de
Osíris, o de Jeová, o Fêmico e o Maçônico são degraus dessa busca. O primeiro
representa a justiça natural; o segundo, o temor; o terceiro, a corrupção; o
quarto, o aprendizado. Mas todos conduzem a uma conclusão comum: o
julgamento é sempre humano, e por isso
falho.
O Maçom não teme o tribunal após a morte, pois compreende que
ele já o enfrenta a cada dia, em cada decisão, em cada palavra. A pena de
avestruz pesa sobre sua consciência tanto quanto a espada do dever. Sua
redenção não virá do perdão, mas do amor que o torna incapaz de ferir.
A conclusão é inequívoca e libertadora: o Grande Arquiteto do Universo não julga. O homem
é que julga a si mesmo. E quando o amor substitui o medo, quando a Luz dissipa
as sombras da ignorância, o tribunal cessa de existir, porque não há mais quem
julgar nem o que ser julgado. O homem, então, reencontra o Sol de Rá em seu
próprio coração.
Bibliografia Comentada
1.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São
Paulo: Cultrix, 1990. Aborda o arquétipo do julgamento como fase de purificação
da alma heroica, essencial à iniciação e ao autoconhecimento, valores centrais
à filosofia maçônica;
2.
CROWLEY, Aleister. Liber ABA (Book 4). York
Beach: Weiser Books, 1997. Apresenta a concepção hermética do julgamento
interno como rito alquímico de purificação do ser, aproximando-se da ideia do
tribunal interior do iniciado;
3.
ELIADE, Mircea. História das Crenças e das
Ideias Religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. Traça a genealogia dos mitos de
julgamento e suas transformações nas religiões solares, revelando o simbolismo
universal da balança e da pena;
4.
HALL,
Manly P. The Secret Teachings of All Ages. Los Angeles: Philosophical
Research Society, 1928. Enciclopédia do esoterismo ocidental. Explica a origem
dos ritos de julgamento pós-vida e sua conexão com o simbolismo iniciático e
maçônico;
5.
HUXLEY, Aldous. A Filosofia Perene. São Paulo:
Cultrix, 2004. Analisa o núcleo místico comum às tradições religiosas, em que o
amor e a consciência substituem o julgamento e o castigo como vias de
libertação espiritual;
6.
JUNG, Carl G. Arquétipos e o Inconsciente
Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2011. Examina o tribunal como arquétipo do
julgamento moral e integração psíquica, vinculando-o ao processo de
individuação e iluminação interior;
7.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática.
Petrópolis: Vozes, 2013. Analisa o tribunal da razão como expressão da lei
moral interna, análoga ao tribunal da consciência maçônica que julga os
próprios atos segundo o dever;
8.
PIKE,
Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of
Freemasonry. Charleston, 1871. Texto fundamental da Maçonaria
filosófica, relaciona símbolos do tribunal às virtudes da prudência, justiça e
amor, como degraus para a elevação espiritual;
9.
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2006. Síntese clássica do pensamento sobre justiça, virtude e
harmonia entre razão e alma. Fundamenta o conceito de julgamento interior e a
ideia de equilíbrio moral;
10. SPINOZA,
Bento. Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica. São Paulo: Martins Fontes,
2009. A obra propõe uma visão imanente de Deus e da moralidade, afirmando que
tudo o que existe é manifestação da substância divina, eliminando a ideia de
castigo e tribunal divino;
[1]
"Diké" refere-se principalmente à divindade grega da justiça,
filha de Zeus e Têmis. A deusa Diké é frequentemente representada com uma
balança e uma espada, simbolizando o equilíbrio e a aplicação da justiça, e
seus olhos estão abertos para buscar a verdade;

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