quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O Grande Tribunal Celeste e a Busca Maçônica pela Justiça Universal

 Charles Evaldo Boller

Desde os albores da civilização humana, a ideia de um "tribunal celeste" tem sido uma das mais persistentes e eficazes construções simbólicas criadas pela mente humana. Ela serve, ao mesmo tempo, como instrumento de controle social, como representação das angústias morais e como reflexo do anseio pela justiça perfeita que o homem, limitado por suas paixões e imperfeições, jamais conseguiu instituir sobre a Terra. Judaísmo e Cristianismo herdaram e adaptaram esse modelo, revestindo-o de moral teológica, com a figura de um deus que julga, pune e recompensa. Contudo, a história revela que esta concepção não nasceu no Sinai nem nas margens do Jordão, mas sim nas margens do Nilo, nas planícies da Mesopotâmia e nos mistérios solares do Mitraísmo.

O Tribunal de Osíris e o Julgamento das Almas

No Egito Antigo, o Tribunal de Osíris representava o juízo final do morto diante dos deuses, uma espécie de alfândega espiritual entre o mundo dos vivos e o Sol de Rá. O coração do falecido era colocado num dos pratos de uma balança, enquanto, no outro prato, era colocada uma pena de avestruz, símbolo de Ma'at, a deusa da Verdade e da Justiça. Se o coração pesasse mais do que a pena, era sinal de impureza moral: a alma era então devorada por Ammit, a criatura híbrida que unia os traços do leão, do crocodilo e do hipopótamo.

A beleza dessa narrativa reside no fato de que o julgamento não se dava pela vontade de uma divindade antropomórfica, mas pelo equilíbrio de uma lei natural: o peso simbólico das ações. A balança não mente, não se corrompe, não se altera conforme o humor do deus. Ela apenas mede. Essa imparcialidade expressa o ideal supremo de justiça, e é talvez por isso que a Maçonaria tenha preferido, para fins didáticos e filosóficos, o Tribunal de Osíris ao tribunal de Jeová. O primeiro simboliza a ordem natural; o segundo, o arbítrio divino.

No Rito Escocês Antigo e Aceito, o Tribunal de Osíris é visto como uma alegoria da consciência. Cada homem traz em si o seu tribunal interno: o coração é o réu e o juiz simultaneamente, a pena representa a verdade que pesa sobre o ato, e a balança é o equilíbrio entre o amor e a razão. A fera Ammit é a sombra que devora o ser corrompido pela mentira, pela avareza e pela vaidade.

A Tirania do Tribunal de Jeová

O tribunal do deus hebraico, por sua vez, expressa a transposição do poder temporal para o plano espiritual. Um deus ciumento e vingativo, que condena à danação eterna, reflete mais o medo e a culpa humana do que a natureza do Sagrado. Essa concepção é própria das sociedades teocráticas que necessitam de instrumentos de domínio. A religião se fez tribunal, e o tribunal se fez instrumento de poder.

Na leitura maçônica, esse modelo de tribunal divino é incompatível com o conceito de Grande Arquiteto do Universo, Ele não julga, não pune e não recompensa; Ele cria, inspira e sustenta. O julgamento é invenção humana, fruto da necessidade de ordenar o caos social e de controlar o comportamento pela culpa. O verdadeiro deus, diz a filosofia esotérica, é Amor, e o amor não julga.

Justiça Imparcial e a Condição Humana

Desde os tempos das cavernas, o homem se mostra incapaz de julgar com imparcialidade. Sua percepção é falha, seus sentidos o enganam, suas paixões distorcem o discernimento. O juiz humano, preso à carne e ao ego, raramente julga o outro sem medir as vantagens ou temores que pode colher do ato de julgar. A justiça perfeita seria atributo divino, pois exigiria uma visão que ultrapassasse o tempo e o espaço, o contexto e as aparências.

Foi o homem quem transformou Jeová e Osiris em juízes, pois para eles a justiça é desnecessária. A justiça é uma invenção humana utilizada para conter a ferocidade do homem e obter um acordo de paz relativo para possibilitar a convivência entre os membros das diversas sociedades.

Em A República, Platão descreve a dikê[1] como a harmonia das partes da alma e a justa ordem do Estado. Em ambos os níveis, a justiça surge da temperança, da prudência e do autodomínio. Não há justiça sem autoconhecimento. Julgar o outro sem ter julgado a si mesmo é a maior das injustiças.

O maçom aprende que a balança da justiça deve primeiro pesar o próprio coração. O tribunal do templo interno é o mais severo de todos. Nenhum deus o instituiu: ele é inerente à alma consciente. A iniciação é o despertar desse tribunal interior, onde o homem se torna simultaneamente juiz, réu e testemunha de si mesmo.

A Função Didática dos Tribunais Humanos

A história da humanidade é um longo desfile de tribunais e de tiranos. O Tribunal Fêmico da Alemanha medieval, por exemplo, é um exemplo de justiça corrompida pela religião e pela política. Criado sob Carlos Magno, e perpetuado pelos impérios germânicos, transformou-se em instrumento de terror e de poder, julgando conforme as conveniências da Igreja Católica Apostólica Romana e dos senhores feudais. Seu simbolismo reaparece, porém, na Maçonaria, com uma intenção puramente instrucional: ensinar, pelo contraste, o que não deve ser feito.

O Egrégio Supremo Tribunal Maçônico, inspirado nesse modelo histórico, representa o desafio de criar um tribunal justo num mundo de injustos. A espada, a balança, a pena e o coração são símbolos didáticos:

·         A espada, como a língua, fere ou defende conforme o uso;

·         A balança simboliza a prudência e a ponderação;

·         A pena de avestruz, a leveza da verdade;

·         O coração, a sinceridade dos sentimentos;

·         A taça de cristal, o destino transparente do justo;

·         O corvo, mensageiro divino e guia das almas pelas trevas da ignorância.

A justiça maçônica não se resume a punir ou absolver, mas a despertar no irmão a consciência da reta conduta. Ela é um exercício espiritual. Julgar, nesse sentido, é refletir sobre os reflexos do próprio espelho interior.

O Julgamento e o Amor

A filosofia maçônica se aproxima aqui do ensinamento de Spinoza, para quem Deus é a própria Natureza, e o bem e o mal são apenas percepções relativas dos atos humanos. O Grande Arquiteto do Universo não se ocupa em punir ou premiar, mas em criar. Seu amor é imanente, não dependente de conduta ou moral. Assim, a ideia de um tribunal após a morte é uma projeção antropomórfica: é o homem que cria deuses para julgar o que ele mesmo não consegue compreender em si.

Jesus, no Sermão da Montanha, aboliu o tribunal exterior ao propor o tribunal da consciência: "Com a medida com que medirdes, sereis medidos." Não se trata de castigo divino, mas de lei natural. A consciência é o espelho onde a alma contempla o reflexo de seus atos. O inferno é a mente atormentada por seus erros; o céu é a serenidade daquele que viveu em harmonia.

Julgar é Coisa de Homens

No simbolismo do Rito Escocês Antigo e Aceito, o tribunal não se ergue nas colunas de um templo, mas nas câmaras do coração. Quando o maçom compreende que julgar o outro é uma forma de fugir do próprio julgamento, ele ascende moralmente. A "justiça divina" é o amor que dissolve a necessidade do julgamento. Onde o amor impera, não há culpa, apenas aprendizado.

A sabedoria esotérica afirma que "O que está em cima é como o que está embaixo". Assim, o tribunal terrestre reflete o tribunal interior, e este, por sua vez, espelha o tribunal universal. Quando o homem julga com amor e prudência, ele se aproxima da consciência divina. Quando julga com ódio ou vaidade, distancia-se da Luz.

A Maçonaria, ao instruir o iniciado sobre o Egrégio Tribunal, convida-o a desenvolver a arte da equidade, a compreender que a justiça é autoconhecimento, e que o Grande Arquiteto do Universo não exige julgamento, mas evolução. O amor substitui o castigo, e a consciência substitui a pena.

O Julgamento é Sempre Humano

Em suma, todos os tribunais humanos, divinos ou simbólicos, não passam de espelhos da alma humana em busca de retidão. O Tribunal de Osíris, o de Jeová, o Fêmico e o Maçônico são degraus dessa busca. O primeiro representa a justiça natural; o segundo, o temor; o terceiro, a corrupção; o quarto, o aprendizado. Mas todos conduzem a uma conclusão comum: o julgamento é sempre humano, e por isso falho.

O Maçom não teme o tribunal após a morte, pois compreende que ele já o enfrenta a cada dia, em cada decisão, em cada palavra. A pena de avestruz pesa sobre sua consciência tanto quanto a espada do dever. Sua redenção não virá do perdão, mas do amor que o torna incapaz de ferir.

A conclusão é inequívoca e libertadora: o Grande Arquiteto do Universo não julga. O homem é que julga a si mesmo. E quando o amor substitui o medo, quando a Luz dissipa as sombras da ignorância, o tribunal cessa de existir, porque não há mais quem julgar nem o que ser julgado. O homem, então, reencontra o Sol de Rá em seu próprio coração.

Bibliografia Comentada

1.      CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 1990. Aborda o arquétipo do julgamento como fase de purificação da alma heroica, essencial à iniciação e ao autoconhecimento, valores centrais à filosofia maçônica;

2.      CROWLEY, Aleister. Liber ABA (Book 4). York Beach: Weiser Books, 1997. Apresenta a concepção hermética do julgamento interno como rito alquímico de purificação do ser, aproximando-se da ideia do tribunal interior do iniciado;

3.      ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. Traça a genealogia dos mitos de julgamento e suas transformações nas religiões solares, revelando o simbolismo universal da balança e da pena;

4.      HALL, Manly P. The Secret Teachings of All Ages. Los Angeles: Philosophical Research Society, 1928. Enciclopédia do esoterismo ocidental. Explica a origem dos ritos de julgamento pós-vida e sua conexão com o simbolismo iniciático e maçônico;

5.      HUXLEY, Aldous. A Filosofia Perene. São Paulo: Cultrix, 2004. Analisa o núcleo místico comum às tradições religiosas, em que o amor e a consciência substituem o julgamento e o castigo como vias de libertação espiritual;

6.      JUNG, Carl G. Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2011. Examina o tribunal como arquétipo do julgamento moral e integração psíquica, vinculando-o ao processo de individuação e iluminação interior;

7.      KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Petrópolis: Vozes, 2013. Analisa o tribunal da razão como expressão da lei moral interna, análoga ao tribunal da consciência maçônica que julga os próprios atos segundo o dever;

8.      PIKE, Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry. Charleston, 1871. Texto fundamental da Maçonaria filosófica, relaciona símbolos do tribunal às virtudes da prudência, justiça e amor, como degraus para a elevação espiritual;

9.      PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. Síntese clássica do pensamento sobre justiça, virtude e harmonia entre razão e alma. Fundamenta o conceito de julgamento interior e a ideia de equilíbrio moral;

10.  SPINOZA, Bento. Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica. São Paulo: Martins Fontes, 2009. A obra propõe uma visão imanente de Deus e da moralidade, afirmando que tudo o que existe é manifestação da substância divina, eliminando a ideia de castigo e tribunal divino;



[1] "Diké" refere-se principalmente à divindade grega da justiça, filha de Zeus e Têmis. A deusa Diké é frequentemente representada com uma balança e uma espada, simbolizando o equilíbrio e a aplicação da justiça, e seus olhos estão abertos para buscar a verdade;

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