quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O Ego e o Ser no Templo Interior

 Charles Evaldo Boller

A Maçonaria, em sua essência iniciática, é uma escola de construção interior. Quando o homem ingressa no Templo simbólico, ele o faz como uma pedra bruta: carregada de arestas irregulares, desejos, ambições e paixões. Seu primeiro e mais árduo trabalho é aprender a dominar-se, pois o maior tirano que o homem enfrenta não é externo, é o ego. Superar o ego mantendo o Ser em equilíbrio é, portanto, a grande obra alquímica da Maçonaria: transformar o chumbo da personalidade em ouro espiritual.

O ego, na linguagem maçônica, representa o conjunto das ilusões, das vaidades e dos apegos que impedem o iniciado de perceber o Grande Arquiteto do Universo em si e no outro. É o falso eu que busca poder, aprovação e domínio, esquecendo-se de que o poder é o autodomínio. Já o Ser é a centelha divina, o princípio luminoso que habita o coração do iniciado e o liga ao Todo. Manter o Ser em equilíbrio é viver sob a luz do Compasso e do Esquadro, regulando as ações e pensamentos segundo a harmonia universal.

O Ego como Pedra Bruta: o Início da Obra Maçônica

O Aprendiz, ao ingressar na Loja, recebe a tarefa de desbastar a pedra bruta, símbolo do trabalho sobre si mesmo. Essa pedra representa a personalidade com suas imperfeições, o ego ainda não educado. O malho e o cinzel são as ferramentas do discernimento e da vontade, instrumentos com que o maçom começa a desintegrar o império do ego.

No meio social, o ego se confunde com a identidade; na senda iniciática, ele é visto como véu. O ego teme o silêncio, porque no silêncio o Ser se manifesta. Por isso o primeiro grau ensina a falar pouco, a ouvir e a meditar, o silêncio ritual é o primeiro golpe contra o orgulho interior. Não significa ficar calado sem se manifestar, esse silêncio é interno.

Superar o ego, portanto, não é negá-lo, mas colocá-lo sob o governo da consciência. Como ensina Santo Agostinho em suas Confissões: "O homem é um grande abismo, mas em sua profundidade habita a Verdade." Assim, a pedra bruta não é inútil, é a matéria-prima da perfeição. Sem o ego, não haveria impulso para agir; sem o Ser, não haveria direção para agir corretamente.

O Simbolismo do Esquadro e do Compasso: Reguladores do Ser

Na simbologia maçônica, o Esquadro e o Compasso são as principais ferramentas da harmonia moral. O Esquadro, símbolo da retidão e da moralidade, representa os limites éticos do agir humano; o Compasso, instrumento que traça o círculo das paixões, delimita o campo da ação justa e equilibrada.

O ego tende à expansão ilimitada, quer dominar, quer possuir, quer ser reconhecido. O Compasso o contém, desenhando o círculo sagrado da temperança. O Esquadro, por sua vez, recorda ao iniciado que cada ato deve estar conforme a lei moral universal, refletindo o equilíbrio entre vontade e razão.

Platão, na República, ensina que a alma justa é aquela cujas partes, razão, coragem e desejo, estão em harmonia. O Compasso e o Esquadro são a tradução simbólica dessa filosofia: o domínio da razão sobre o desejo, da sabedoria sobre o instinto. O homem equilibrado é aquele em quem o Compasso do Ser circunscreve o Esquadro das ações.

O Altar do Ser: Onde o Ego se Prostra

No centro do Templo maçônico ergue-se o Altar dos Juramentos, sobre o qual repousa o livro da lei, o Esquadro e o Compasso, símbolos da aliança entre a razão, a fé e a consciência. O ego, ao aproximar-se desse altar, deve inclinar-se: ali o homem reconhece que há uma lei superior à sua vontade pessoal.

O Altar simboliza o coração do homem, lugar onde o Ser se manifesta e onde o ego se rende. Cada vez que o maçom se coloca em atitude de reverência diante do Altar, ele repete o gesto simbólico de renunciar ao domínio do ego para permitir que o Espírito guie sua jornada.

Segundo Albert Pike, em Morals and Dogma, "a verdadeira iniciação é uma morte simbólica, a abdicação do ego, para que o homem possa renascer em espírito". Essa morte ritualística é o sacrifício do orgulho e da ignorância, as chaves que trancam o Templo interior.

O Equilíbrio: a Harmonia Entre Luz e Sombra

O homem que tenta eliminar o ego completamente cria novo desequilíbrio, pois nega parte de sua própria natureza. A Maçonaria não treina a destruição do ego, mas sua integração consciente. O pavimento mosaico, formado por quadrados pretos e brancos, é símbolo desse equilíbrio entre luz e sombra, entre razão e emoção, entre ego e Ser.

Carl Jung, em sua teoria da individuação[1], descreve o processo de reconhecer a sombra como etapa essencial da integração psíquica. O maçom, caminhando sobre o pavimento mosaico, aprende a aceitar sua dualidade e a discernir os limites entre o que deve dominar e o que deve compreender. O equilíbrio não é estagnação, mas movimento contínuo entre opostos reconciliados.

Assim, o sábio não nega a existência do ego, ele o observa, educa e o coloca a serviço da Luz. Como ensina o Corpus Hermeticum: "O homem deve tornar-se senhor de si mesmo, pois quem domina a si, domina o universo."

A Escada de Jacó: Ascensão da Consciência

Nos graus simbólicos, a Escada de Jacó representa a ascensão espiritual. Cada degrau é um nível de consciência que se eleva conforme o ego é depurado. A humildade é o primeiro degrau, a sabedoria o último. Entre ambos, há o trabalho silencioso da lapidação interior.

O ego se alimenta de comparações; o Ser cresce na interioridade. Por isso, subir a Escada não é competir, mas compreender. O maçom que se julga mais elevado que seus irmãos, cai no degrau da vaidade, o mais perigoso de todos.

O equilíbrio entre ego e Ser manifesta-se quando a ascensão não é buscada por glória pessoal, mas por amor à Verdade. "Não busques ser o primeiro entre os homens, mas o primeiro em servir", apreende-se no grau de mestre. A elevação é moral.

O Fogo do Coração: a Alquimia da Transformação

A Maçonaria é, em essência, uma alquimia moral. O fogo que arde no coração do iniciado é o fogo do desejo transmutado em Luz. Quando o ego domina, esse fogo consome; quando o Ser governa, ele ilumina.

Na simbologia hermética, o fogo é o elemento da purificação e da vontade. A superação do ego ocorre quando o homem transforma o fogo das paixões em energia espiritual. O alquimista interno transmuta o chumbo do egoísmo no ouro da sabedoria.

É nesse sentido que o filósofo estoico Epicteto afirmava: "Nenhum homem é livre até dominar a si mesmo." E o mestre maçônico aprende que a liberdade é interior, nasce do equilíbrio entre o querer e o dever.

O Silêncio e a Palavra: Dualidade do Caminho

O aprendiz é instruído a guardar silêncio, pois somente quem cala a voz do ego pode ouvir a voz do Ser. Mas, no grau de mestre, o silêncio cede lugar à Palavra reencontrada, não a palavra do orgulho, mas a da Verdade.

Essa passagem do silêncio à palavra representa o domínio do verbo interior. O ego fala para impor; o Ser fala para revelar. O equilíbrio entre ambos é a arte da retórica maçônica: falar com sabedoria, ouvir com humildade.

O Evangelho de João recorda: "No princípio era o Verbo". O Verbo é a vibração primordial, a harmonia do Ser manifestado. Quando o maçom aprende a falar com o coração puro, suas palavras tornam-se instrumentos de construção, e não de destruição.

O Mestre Interior: Domínio e Serviço

O mestre maçom, símbolo da consciência desperta, já compreende que não há vitória sobre o ego sem o exercício do serviço. O domínio é o domínio de si. O ego busca ser servido; o Ser busca servir.

O ritual do terceiro grau instrui que a morte simbólica de Hiram Abif representa o desaparecimento do ego pessoal para que renasça o Eu espiritual. O mestre ressuscitado não busca glória; busca harmonia.

O equilíbrio do Ser manifesta-se na serenidade, na capacidade de agir sem ansiedade e de compreender sem julgar. Assim como o Compasso delimita o círculo da ação justa, o mestre delimita sua conduta pela medida da consciência.

O Espírito do Templo: Microcosmo e Macrocosmo

O Templo maçônico é imagem do universo; o homem é seu microcosmo. O que se constrói no Templo externo deve refletir-se no interior. Quando o ego se exalta, o Templo interno desaba; quando o Ser governa, o Templo se ilumina.

O equilíbrio entre o homem e o cosmos é o equilíbrio entre o ego e o Ser. O ego separa, o Ser une. Essa unidade é o fundamento do conceito do Grande Arquiteto do Universo, princípio ordenador de todas as coisas.

Como recomenda Hermes Trismegisto: "O que está em cima é como o que está embaixo." Dominar o ego é harmonizar o microcosmo interior com o macrocosmo universal. O Ser equilibrado vibra em consonância com as leis divinas.

Aplicações Práticas na Vida Maçônica

A filosofia maçônica não é teórica; ela é um método de vida. Superar o ego mantendo o Ser em equilíbrio exige prática constante. Eis alguns princípios práticos do exercício diário:

·         Meditação antes do trabalho: purificar a mente de opiniões e vaidades, dispondo-se a ouvir com atenção.

·         Trabalho ritualístico consciente: compreender cada símbolo como espelho de si mesmo.

·         Ação compassiva: agir com firmeza, mas sem ferir; com justiça, mas sem orgulho.

·         Autocrítica fraterna: revisar atitudes e buscar reconciliação sempre que o ego dividir.

·         Serviço à Loja e à sociedade: oferecer tempo e talento sem esperar reconhecimento.

Assim, o maçom transforma o cotidiano em oficina espiritual e o mundo profano em extensão do Templo. O equilíbrio do Ser não é isolamento, mas presença serena no meio do caos.

O Grau Supremo: Equilíbrio como Luz Interior

Nos graus filosóficos do Rito Escocês Antigo e Aceito, o iniciado descobre que a sabedoria não está em possuir conhecimento, mas em ser Luz. O ego coleciona títulos; o Ser irradia sabedoria.

O grau 14, "Grande Eleito, Perfeito e Sublime Maçom", ensina que a perfeição é interior: o delta luminoso no peito simboliza a consciência equilibrada, onde o Ser reina e o ego serve. A harmonia entre ambos é o estado de perfeição moral, não a ausência de defeitos, mas a consciência deles.

Quando o homem vive sob o governo do Ser, ele torna-se instrumento do Grande Arquiteto do Universo. Sua vida passa a refletir o equilíbrio cósmico, e suas ações tornam-se orações silenciosas.

O Ser que Domina o Ego

Superar o ego mantendo o Ser em equilíbrio é a meta de toda a iniciação maçônica. O ego é o servo necessário, mas o Ser é o mestre. O caminho do aprendiz à perfeição é a longa jornada do domínio interior, da humildade iluminada e da serenidade conquistada.

O homem equilibrado é aquele que compreende que o poder está em dominar a si mesmo, e a Luz é aquela que, mesmo pequena, não se apaga diante das trevas do orgulho.

No fim, quando o ego se cala e o Ser fala, o homem ouve em seu coração as palavras do Grande Arquiteto do Universo: "Constrói, em ti, o Templo da Sabedoria".

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco (séc. IV a. C.): define a virtude como meio-termo entre excessos, princípio que ressalta no ideal maçônico do equilíbrio;

2.      CAMINO, Rizzardo da. Simbolismo Maçônico (1994): interpreta os instrumentos e rituais do Rito Escocês Antigo e Aceito, como meios de lapidação moral e superação do ego;

3.      EPICTETO. Manual de Vida (século I d. C.): mostra que a liberdade humana reside no autodomínio e na serenidade diante do mundo;

4.      GUÉNON, René. Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada (1962): analisa o valor metafísico dos símbolos maçônicos, explicando que cada um é uma chave para a integração do Ser com o Todo;

5.      JUNG, Carl Gustav. Aion (1951): descreve o processo de individuação e a necessidade de integrar a sombra, oferecendo uma leitura psicológica moderna do equilíbrio entre ego e Self;

6.      PIKE, Albert. Morals and Dogma (1871): obra central da filosofia do Rito Escocês Antigo e Aceito, propõe que a iniciação é uma progressiva iluminação moral e espiritual. Descreve o ego como obstáculo à compreensão da Verdade;

7.      PLATÃO. A República (séc. IV a. C.): oferece a base filosófica do equilíbrio interior, ensinando que a justiça da alma depende da harmonia entre suas partes;

8.      SANTO AGOSTINHO. Confissões (séc. IV): examina o conflito entre o ego e o espírito, propondo a interioridade como caminho de iluminação;

9.      TOLLE, Eckhart. O Poder do Agora (1997): apresenta práticas de dissolução do ego pela consciência do presente, em harmonia com o ideal maçônico de vigilância interior;

10.  TRISMEGISTO, Hermes, Corpus Hermeticum (séc. II): texto esotérico que fundamenta a correspondência entre microcosmo e macrocosmo, essencial à filosofia maçônica;



[1] A teoria da individuação refere-se ao processo de se tornar um indivíduo único, integrando aspectos conscientes e inconscientes da psique. Criada por Carl Jung, ela descreve uma jornada de autodescoberta e desenvolvimento pessoal ao longo da vida, na qual a pessoa se torna singular e mais autêntica, conectando-se ao "Si-mesmo";

Nenhum comentário: