sábado, 27 de setembro de 2025

O Valor de Aristóteles e a Educação Crítica na Filosofia Maçônica

Charles Evaldo Boller

A pergunta "para que serve aprender Aristóteles?", revela a falência de uma cultura que há décadas reduz a educação a simples mecanismo de inserção no mercado de trabalho. Em um mundo moldado pelo consumismo raso e pelo utilitarismo imediato, todo conhecimento que não se converte em lucro rápido é visto como perda de tempo. Essa lógica, contudo, gera um efeito devastador: a formação de analfabetos de pensamento, incapazes de discernir a verdade da mentira, de participar ativamente da vida política e de educar seus filhos para além da repetição de modelos prontos.

É nesse ponto que a filosofia aristotélica se revela indispensável. Aristóteles não foi apenas mais um filósofo da Antiguidade: ele estruturou a lógica, sem a qual não há ciência; sistematizou a ética, sem a qual não há convivência justa; e definiu a política como o espaço onde o homem, ser essencialmente comunitário, realiza sua cidadania. Seu legado permanece vivo em cada debate sobre Democracia, em cada reflexão sobre virtude e em cada esforço de construir uma sociedade mais justa.

A Maçonaria, como escola iniciática, reconhece essa verdade. Seus rituais, símbolos e instruções constituem um processo educativo que vai muito além da utilidade imediata: são convites ao pensar, ao interpretar, ao buscar Luz em meio às trevas da alienação. O maçom aprende que a educação não é mercadoria, mas instrumento de libertação. Por isso, resgatar Aristóteles em nossas reflexões não é arqueologia filosófica: é tarefa prática e urgente, pois a Ordem deve ser espaço onde o pensamento crítico floresce, em oposição ao conformismo.

A Instrução Maçônica e a Andragogia

A instrução maçônica se harmoniza com a andragogia moderna, que mostra como o adulto aprende por significado, experiência e aplicação. Nesse sentido, Aristóteles se torna aliado natural do maçom: sua lógica ilumina o debate em loja; sua ética guia a conduta no trabalho e na família; sua política inspira a atuação cidadã. Mais ainda: sua noção de virtude como equilíbrio ensina temperança e saúde emocional em meio às pressões contemporâneas.

As aplicações práticas são inúmeras. O cidadão formado por Aristóteles identifica falácias em discursos políticos. O profissional inspirado em sua ética constrói lideranças confiáveis. O pai ou a mãe que compreende a verdadeira felicidade como realização do ser educa filhos para valores duradouros. O maçom que interpreta seus graus à luz da filosofia clássica descobre novos sentidos em cada alegoria.

Invertendo a Pergunta

Assim, a pergunta "para que serve Aristóteles?" deve ser invertida: a questão não é se Aristóteles é útil, mas que tipo de ser humano desejamos formar. Se reduzirmos a vida a consumir, trabalhar e descartar, a filosofia que restará será a do shopping. Mas se desejarmos liberdade, cidadania e fraternidade, então Aristóteles, e toda a tradição filosófica que dele se nutriu, continuará sendo indispensável.

A Maçonaria, ao manter acesa a chama do pensamento crítico, mostra que o verdadeiro valor da educação não é arrumar emprego, mas arrumar a cabeça, capacitando o homem a viver como cidadão livre e consciente, e não como peça descartável de uma máquina de consumo.

A indagação "para que serve aprender Aristóteles?", é, em verdade, um sintoma eloquente de uma crise cultural e educacional mais profunda. Não se trata de incapacidade cognitiva, mas do reflexo de uma sociedade que, ao longo das últimas décadas, condicionou-se a valorizar apenas o conhecimento que gera retorno econômico imediato. Esse pragmatismo rasteiro, moldado pelo consumismo raso e por um utilitarismo barato, fez com que grande parte das pessoas perdesse de vista o sentido maior da educação, reduzindo-a a uma ferramenta para a obtenção de emprego, e não como um processo de formação integral do ser humano.

A Busca da Luz Simbolizada na Cerimônia de Iniciação

A Maçonaria, enquanto escola iniciática, se levanta em contracorrente a essa lógica utilitarista. Desde sua constituição moderna no século XVIII, mas enraizada em tradições muito mais antigas, a Ordem sempre defendeu o conhecimento como valor em si mesmo, não limitado à utilidade imediata. A busca da Luz, simbolizada no próprio rito de iniciação, traduz a convicção de que aprender é um ato de libertação e de autonomia. Nesse sentido, Aristóteles não é apenas um nome de manual de história da filosofia, mas um marco civilizatório: aquele que deu fundamentos à lógica, à ética, à política e ao conceito de felicidade como finalidade da vida humana.

Negar a relevância de Aristóteles, ou de qualquer pensador que abriu veredas intelectuais, é como recusar as pedras fundacionais de um edifício no qual já habitamos. O problema da sociedade contemporânea, que se reflete no olhar desconfiado de uma pessoa alienada pelo sistema, é a incapacidade de perceber que aquilo que parece distante e abstrato é, na realidade, o que sustenta as estruturas de liberdade, cidadania e justiça que hoje desfrutamos. É possível criticar Aristóteles porque o próprio processo histórico de pensamento, do qual ele foi pioneiro, abriu espaço para a crítica.

A Lógica do Consumo e a Alienação

A pergunta só existe porque, desde cedo, se internaliza a lógica de que "aprender deve servir para ganhar dinheiro". Essa concepção, fomentada por décadas de uma cultura de mercado, restringiu a imaginação coletiva. O saber tornou-se mercadoria; o diploma, moeda de troca; a leitura, investimento com retorno esperado. A filosofia, nesse contexto, parece supérflua. O resultado é o surgimento de gerações inteiras de analfabetos de pensamento, pessoas aptas a operar máquinas, consumir produtos e reproduzir discursos, mas incapazes de questionar as premissas que regem suas vidas.

A Maçonaria denuncia essa alienação. O maçom se treina a pensar, a raciocinar, a interpretar símbolos. Ele aprende que não basta repetir fórmulas: é necessário compreender. A lógica aristotélica, que estruturou o raciocínio ocidental, é a base dessa postura crítica. Sem Aristóteles, não há dedução, não há silogismo[1], não há ciência. Sem ele, também não há a ética como disciplina filosófica que busca a vida boa, nem a política como ciência que visa o bem comum.

No entanto, a sociedade atual prefere a lógica do mercado: trabalhar, comprar, descartar, repetir. Essa filosofia de shopping é a ideologia dominante, e seu maior efeito é desarmar o cidadão diante das grandes decisões coletivas. O eleitor que nunca aprendeu a distinguir argumentos falaciosos de argumentos consistentes é presa fácil de demagogos. O paciente que não compreende as bases mínimas de raciocínio científico é manipulado por curas mágicas e charlatães. O pai ou a mãe que nunca refletiu sobre ética e política reproduz comportamentos alienantes na educação dos filhos.

Assim, a negligência do pensamento crítico cobra uma conta altíssima, não apenas no plano individual, mas, sobretudo, na dimensão social e política. A ignorância é cara. Mais cara do que qualquer curso universitário ou do que anos de estudo.

Aristóteles Como Pedra Angular do Pensamento Ocidental

Aristóteles, discípulo de Platão e preceptor de Alexandre Magno, foi um dos primeiros a sistematizar o conhecimento humano. Ao organizar a lógica, forneceu ferramentas para toda ciência posterior. Ao refletir sobre a ética, inaugurou a concepção de que a vida humana deve buscar a eudaimonia[2], a felicidade plena, entendida não como prazer momentâneo, mas como realização do potencial humano. Ao elaborar uma teoria política, reconheceu o ser humano como zoon politikon[3], isto é, como um ser essencialmente comunitário, cuja realização só se dá na vida em sociedade.

Essas bases continuam sendo as vigas mestras da civilização contemporânea. Quando falamos em Democracia, estamos dialogando, ainda que indiretamente, com Aristóteles. Quando discutimos virtude, cidadania, justiça, estamos pisando nos alicerces que ele ajudou a erguer. Por isso, aprender sobre o pensamento de Aristóteles não é luxo acadêmico, mas investimento em cidadania.

Quem pergunta "para que serve Aristóteles?" está, na verdade, ecoando o espírito de uma época que não sabe mais enxergar os fundamentos. É como se alguém habitasse uma casa sólida e segura, mas desdenhasse do engenheiro que projetou seus pilares, perguntando: "para que serve essa matemática, já que eu nunca a uso diretamente?" A resposta é simples: serve para você estar vivo, livre, protegido e capaz de pensar.

Maçonaria, Educação e o Despertar do Pensamento

A Maçonaria sempre reconheceu que a liberdade política e espiritual depende de uma educação que não se curva ao imediatismo. O Rito Escocês Antigo e Aceito, por exemplo, é uma jornada instrucional: cada grau representa uma lição, uma etapa na formação do ser humano. Nessa caminhada iniciática, a filosofia tem papel central. Um maçom não é um mero repetidor de rituais, mas alguém que interpreta, que questiona, que busca a verdade para além das aparências. Os rituais não existem apenas com a finalidade doutrinária. São apenas pontos de entrada para a edificação do pensamento no filosofar maçônico.

Essa dimensão instrucional da Maçonaria conecta-se com a andragogia, a ciência da educação de adultos. Malcolm Knowles, ao desenvolver esse conceito, destacou que o adulto aprende de forma diferente da criança: busca significado, autonomia, aplicabilidade prática. Nesse sentido, ao estudar Aristóteles o maçom pode argumentar ser difícil justificar o valor imediato. Mas ao aprender, especialmente dentro do ambiente maçônico, torna-se evidente como a lógica aristotélica é ferramenta de debate, como a ética aristotélica é guia de conduta, como a política aristotélica é modelo de cidadania ativa.

O templo maçônico é, portanto, espaço privilegiado para resgatar a relevância de Aristóteles. Em cada debate, em cada instrução, em cada reflexão sobre símbolos, pratica-se a mesma atividade que o filósofo grego inaugurou: a racionalidade crítica, voltada ao bem comum.

Aplicações Práticas na Vida Adulta e Maçônica

A questão que se coloca é: como aplicar Aristóteles, e a filosofia em geral, à vida prática? Alguns exemplos podem ser destacados:

·         No exercício da cidadania - um cidadão que compreende a lógica aristotélica é capaz de identificar falácias em discursos políticos. Isso o protege contra manipulações e fortalece a Democracia.

·         Na vida profissional - a ética aristotélica, ao valorizar a virtude como hábito, orienta comportamentos justos e consistentes em ambientes de trabalho, fortalecendo lideranças responsáveis e confiáveis.

·         Na vida familiar - a concepção de felicidade como realização do ser, e não como consumo, reorienta a educação dos filhos para valores duradouros, não para modismos passageiros.

·         Na vida maçônica - cada grau pode ser reinterpretado à luz de Aristóteles. O dever de buscar a Verdade, a exigência de justiça, a centralidade da virtude, todos são princípios aristotélicos que se harmonizam com os símbolos e alegorias da Ordem.

·         Na saúde emocional - Aristóteles já ensinava que a virtude está no meio-termo, no equilíbrio. Essa noção, aplicada à vida moderna, ajuda a evitar excessos, cultivar temperança e buscar serenidade.

Assim, Aristóteles não é um luxo intelectual, mas um instrumento concreto de autogoverno e de convivência social.

O Despertar de Consciências

A pergunta "para que serve Aristóteles?" deve ser transformada em provocação instrucional: "Você deseja viver como cidadão livre, capaz de pensar, ou como peça descartável de uma engrenagem que só consome?" A Maçonaria, fiel à sua missão de despertar consciências, responde a essa pergunta com a vida de seus membros, mostrando que o saber não se mede em moedas, mas em autonomia, justiça e fraternidade.

Aristóteles serve, em última instância, para que possamos servir à vida, à liberdade e à humanidade. Ele é parte do alicerce invisível sobre o qual se ergue o templo da civilização. Desdenhar disso é serrar a madeira da própria embarcação em pleno mar.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução clássica das reflexões sobre virtude e felicidade. Essencial para compreender a noção de eudaimonia como finalidade da vida;

2.      ARISTÓTELES. Política. Base da concepção do homem como animal político, mostrando que a cidadania é inerente à condição humana;

3.      BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Reflexão crítica sobre a lógica consumista contemporânea, contraponto à filosofia perene;

4.      HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Analisa como a filosofia antiga era prática de vida, não teoria abstrata. Reforça a aplicabilidade de Aristóteles hoje;

5.      KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Esclarecimento? Texto fundamental para entender a continuidade entre Aristóteles e a filosofia moderna: a liberdade de pensar como emancipação;

6.      KNOWLES, Malcolm. The Adult Learner. Obra seminal da andragogia, mostrando como o adulto aprende por significado e aplicação, em diálogo direto com a pedagogia maçônica;

7.      MACKEY, Albert G. Enciclopédia da Maçonaria. Recurso para compreender como a Ordem integra filosofia clássica em seus símbolos e rituais;

8.      REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. Panorama acessível que contextualiza Aristóteles e sua influência;



[1] Silogismo, raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas proposições (premissas), das quais se obtém por inferência uma terceira (conclusão);

[2] Eudaimonia é um conceito grego antigo que se traduz frequentemente como "felicidade" ou "florescimento humano", representando um estado de plenitude, realização e bem-estar duradouro alcançado através do desenvolvimento pessoal, da prática da virtude e da vida em consonância com os valores e propósitos autênticos de um indivíduo;

[3] Zoon politikon, grego, significa "animal político" e é um conceito de Aristóteles que descreve a natureza do ser humano como um animal social e racional, que precisa viver em sociedade e na comunidade política organizada (a pólis ou cidade-Estado) para alcançar a sua plena realização e felicidade;

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