quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Razão, Liberdade e Iluminação na Filosofia Maçônica

 Charles Evaldo Boller

Servir-se do próprio intelecto é erguer o templo da razão em meio às ruínas da ignorância. É o gesto mais nobre do homem livre, o mesmo que a Maçonaria perpetua há séculos, iluminando consciências e lembrando que a iniciação começa quando ousamos pensar com a própria luz.

A senda maçônica é, por excelência, o caminho do esclarecimento. "Servir-se do próprio intelecto" é a tarefa do homem livre, aquele que ousa pensar por si mesmo e, ao fazê-lo, ascende do estado de menoridade para o de autonomia espiritual. Este princípio, herdado do Iluminismo kantiano, encontra na Maçonaria um terreno fértil para seu florescimento, pois ela propõe a educação do ser pela razão, pela ética e pela fraternidade. O maçom esclarecido é o ser que, ao admirar o Universo e reconhecer nele a manifestação de um Princípio Criador, não se limita a crer, mas busca compreender, refletir e agir conforme as leis universais.

O Grande Arquiteto do Universo e a Razão Filosófica

Na visão maçônica, o Grande Arquiteto do Universo não é uma entidade definida pelos dogmas religiosos, mas um conceito simbólico que representa a causa primeira, o princípio ordenador e racional da existência. Trata-se de uma ideia-limite, expressão do espírito humano que, diante do mistério da criação, reconhece que há ordem, harmonia e proporção em tudo o que existe.

O maçom não discute a essência do Criador, pois reconhece a limitação do intelecto humano e a precariedade de qualquer linguagem que pretenda capturar o Absoluto. Assim como o círculo não contém o ponto sem reconhecer sua centralidade, o homem não pode abarcar o divino sem aceitar o mistério. Essa postura filosófica é de humildade racional, não de negação: ela afirma que a Verdade pode ser intuída, mas nunca totalmente possuída.

Em termos andragógicos, esse reconhecimento da limitação é o primeiro passo da sabedoria. O adulto que aprende, e o maçom é um aprendiz de tempo integral, compreende que todo saber é provisório, todo conceito é ponte e não morada. A Maçonaria, ao estimular a autonomia do pensamento, propõe o desenvolvimento do julgamento crítico, sem o qual o homem torna-se refém da opinião, do fanatismo e da superstição.

Maçonaria e Religião: Duas Linguagens da Experiência Humana

As religiões instituídas, historicamente, pretendem ser mediadoras entre o homem e a divindade. Criam ritos, dogmas e hierarquias para traduzir o inefável. A Maçonaria, por sua vez, adota caminho diverso: não se propõe a substituir a religião, mas a despertar no homem o sentimento do sagrado em si mesmo. Ela é religiosa, no sentido de religar o homem ao transcendente, mas não é religião, porque não se coloca como intermediária.

Esta distinção é essencial. Enquanto as religiões prescrevem crenças e comportamentos, a Maçonaria estimula a reflexão e a prática consciente da virtude. Sua moral é universal, fundada na razão e na liberdade interior. O maçom pode, portanto, pertencer a qualquer religião que não contradiga seus princípios de liberdade e tolerância. Se houver conflito entre sua fé e sua consciência, ele deve escolher o caminho da coerência e da verdade interior.

Essa liberdade espiritual é um exercício de maturidade. O homem comum busca respostas fora de si; o maçom, pela introspecção e pela luz do intelecto, descobre que o templo está dentro de seu próprio ser. Essa é a essência do processo iniciático: deslocar o centro de autoridade do exterior para o interior.

Aufklärung: o Iluminismo e a Maturidade da Razão

Immanuel Kant, em seu célebre ensaio "Was ist Aufklärung?", "O que é o Esclarecimento?", define o Iluminismo como a "saída do homem de sua menoridade autoinfligida". Menoridade, aqui, é a incapacidade de usar o entendimento sem a direção de outro. "Sapere aude!", ouse saber, tenha coragem de servir-se de seu próprio intelecto, é o grito libertador da consciência humana.

Na Maçonaria, essa máxima encontra sua mais alta expressão. O maçom é chamado a pensar, não a repetir; a compreender, não a decorar; a questionar, não a obedecer cegamente. A iniciação é o rito simbólico que o desperta do sono da dependência. Ele sai da caverna platônica, abandona as sombras das opiniões e busca a luz da razão.

Mas a coragem de pensar exige ética. A razão sem virtude degenera em tirania intelectual; a fé sem razão, em fanatismo. A Maçonaria, como escola moral e filosófica, harmoniza essas duas forças: ela ensina que o intelecto deve ser iluminado pelo amor, e o coração, guiado pela razão.

A Andragogia e o Caminho da Autonomia

A pedagogia ensina a criança; a andragogia educa o adulto. O método andragógico, proposto por Malcolm Knowles, parte do princípio de que o adulto aprende pela experiência e pela motivação interna. Na Maçonaria, esse princípio é aplicado em plenitude: o aprendizado não se dá pela imposição, mas pela vivência ritualística, pelo debate e pela reflexão.

O maçom aprende fazendo, refletindo, questionando e comparando. Cada símbolo, cada palavra e cada gesto ritual é um pretexto para despertar o pensamento autônomo. O instrutor maçônico é um facilitador, não um doutrinador. Ele acende tochas, mas não ilumina por outrem, pois a luz nasce de dentro.

Exemplo prático: quando o aprendiz contempla o esquadro e o compasso, ele não deve perguntar o que "significam", mas o que "lhe dizem". O símbolo é espelho, não mapa. Assim, a andragogia maçônica propõe que cada irmão descubra seu próprio sentido do sagrado e do racional, tornando-se artífice da própria consciência.

A Razão Leiga e a Emancipação do Pensamento

A "razão leiga" é a razão liberta da tutela religiosa, política ou ideológica. A Maçonaria, como herdeira do Iluminismo, propõe a emancipação do pensamento frente a toda autoridade dogmática. Não se trata de negar a fé, mas de submetê-la ao crivo da consciência individual.

Kant, Spinoza e Voltaire partilham dessa visão: o homem deve ser livre para pensar e agir de acordo com sua razão. No templo maçônico, essa liberdade é cultivada como virtude. Nenhum dogma é imposto; nenhuma verdade é absoluta. A verdade é buscada, construída, lapidada, como a pedra bruta que o maçom trabalha incessantemente.

Essa lapidação intelectual e moral é o "trabalho de templo". A cada golpe do malho, o homem retira de si o excesso da ignorância, do preconceito e da intolerância. Servir-se do próprio intelecto é, portanto, o exercício contínuo de polir a mente até que reflita a luz do Grande Arquiteto do Universo

Crítica Construtiva: o Risco da Razão Orgulhosa

Toda virtude contém seu risco. O culto à razão, se desprovido de humildade, pode gerar soberba intelectual. A história mostra que o racionalismo extremo levou, em certos períodos, ao desprezo pelo mistério e pela dimensão simbólica do ser humano. A Maçonaria, consciente disso, ensina que a razão é instrumento, não trono.

Quando o homem acredita dominar o Universo apenas pela lógica, esquece que a lógica é apenas uma linguagem humana para tentar decifrar o indizível. A sabedoria consiste em equilibrar o saber racional e o saber intuitivo. Assim como o compasso e o esquadro se equilibram sobre o altar, razão e sentimento devem coexistir em harmonia.

Um exemplo cotidiano: o líder maçônico que aplica friamente regras sem compreender a alma dos irmãos reproduz a tirania da letra. Por outro lado, o líder sentimental que age sem reflexão sucumbe ao caos. O caminho do meio, que a filosofia maçônica propõe, é o uso equilibrado do intelecto e da sensibilidade.

Maçonaria e a Educação da Consciência Cívica

Ao promover o uso da razão, a Maçonaria contribui para a formação de cidadãos conscientes. Ela defende que o Estado deve ser laico e que a educação deve libertar, não domesticar. A influência das religiões sobre o poder político, quando excessiva, sufoca a liberdade de pensamento e impede o progresso social.

O maçom, ao aplicar esses princípios na vida prática, torna-se um agente de transformação. Ele defende o ensino científico, a liberdade de imprensa, a igualdade de oportunidades, o respeito à diversidade. Ele entende que servir-se do próprio intelecto é um dever moral, pois quem não pensa por si mesmo, facilmente se torna instrumento da vontade alheia.

Nas relações profissionais e familiares, essa autonomia se manifesta em decisões baseadas na reflexão, não na conveniência. O maçom que age por consciência, e não por medo, torna-se exemplo de equilíbrio e justiça. Assim, a filosofia maçônica ultrapassa o templo e se converte em ação transformadora no mundo.

Metáforas para a Autonomia do Pensamento

Podemos imaginar o intelecto humano como uma lâmpada. Quando desligada, permanece inerte, mesmo em meio à luz do dia. Somente quando o homem acende sua própria lâmpada interior é que pode enxergar o que o sol externo não revela, os recessos da própria alma.

Outra metáfora útil é a do templo interior: cada pedra simboliza uma ideia adquirida, um conceito lapidado. Construir esse templo é um ato contínuo de pensar e repensar, de duvidar e confirmar. O maçom que se serve do próprio intelecto é o arquiteto de sua própria catedral interior, sustentada não por dogmas, mas por colunas de sabedoria, tolerância e amor.

Em termos práticos, esse ideal se traduz em atitudes simples: questionar o que se lê, duvidar do que se ouve, refletir antes de julgar, estudar antes de opinar. A Maçonaria ensina que o intelecto é a ferramenta mais nobre do homem, mas que seu uso exige disciplina, ética e compaixão.

A Luz Maçônica como Processo de Libertação

A iluminação maçônica não é um evento, mas um processo. Cada grau representa um estágio de libertação das sombras da ignorância. Servir-se do próprio intelecto é, portanto, o exercício contínuo de acender velas no templo interior da consciência.

Essa luz não é apenas racional: ela é moral e espiritual. O maçom que aprende a pensar por si mesmo deve também aprender a sentir com o coração e agir com justiça. Assim, a tríade pensamento-sentimento-ação constitui a base da sabedoria maçônica.

Quando o homem pensa com clareza, sente com empatia e age com retidão, torna-se instrumento do Grande Arquiteto do Universo. Sua mente é o compasso, seu coração o esquadro, e sua vida a obra que testemunha o equilíbrio entre ambos.

Ousar Pensar, Ousar Ser Livre

Servir-se do próprio intelecto é o maior ato de liberdade. É reconhecer que o Universo é inteligível, que o homem é coautor do seu destino, e que a razão é uma centelha do próprio Grande Arquiteto do Universo em nós. A Maçonaria, como escola de moral e filosofia, propõe essa revolução silenciosa, a emancipação da consciência humana.

O maçom que compreende essa lição transforma o mundo não pela imposição, mas pelo exemplo. Ele não prega doutrinas, mas irradia luz. Ele não se curva a dogmas, mas se inclina diante da Verdade. Ele é o homem que, tendo aprendido a servir-se do próprio intelecto, torna-se servo apenas da sabedoria.

Assim, a Maçonaria continua sendo, como no ideal iluminista, a oficina onde se forjam os arquitetos da própria alma e os construtores da humanidade futura, uma humanidade livre, consciente e fraterna.

Bibliografia Comentada

1.      DELORS, Jacques (org.). Educação: Um Tesouro a Descobrir. São Paulo: Cortez, 2000. Documento da UNESCO que defende os quatro pilares da educação, aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser, em plena consonância com o ideal maçônico de aperfeiçoamento humano integral;

2.      KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Esclarecimento? São Paulo: Martins Fontes, 2005. Texto fundamental para compreender o conceito de Aufklärung que inspira o lema maçônico "Ouse pensar por si mesmo". Kant propõe a autonomia da razão e a superação da dependência intelectual, ideias basilares da filosofia maçônica moderna;

3.      KNOWLES, Malcolm. The Modern Practice of Adult Education: From Pedagogy to Andragogy. New York: Cambridge Books, 1980. Fundamenta a educação maçônica como processo andragógico, centrado na autonomia, na experiência e na motivação do aprendiz adulto;

4.      PIKE, Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry. Charleston: Supreme Council, 1871. Obra clássica que explora a dimensão filosófica e simbólica dos graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, ressaltando o papel da razão e do livre-arbítrio na jornada iniciática;

5.      SPINOZA, Baruch. Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica. Lisboa: Edições 70, 2009. Obra seminal sobre a unidade entre Deus e Natureza, cuja visão racional do divino influenciou o conceito maçônico do Grande Arquiteto do Universo como Princípio Criador imanente;

6.      VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Rio de Janeiro: L&PM, 2011. Voltaire defende a liberdade de pensamento e a tolerância religiosa, valores que inspiram o laicismo e a razão leiga da Maçonaria;

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