terça-feira, 7 de outubro de 2025

O Conceito de Justiça do Maçom

 Charles Evaldo Boller

A justiça é uma das virtudes cardeais mais antigas e universais, mas também uma das mais difíceis de compreender em sua essência plena. Desde as civilizações mais remotas, a humanidade busca definir o que é "dar a cada um o que é seu", expressão que, herdada do direito romano, resume uma das mais belas aspirações do espírito humano. O maçom, em sua senda filosófica e moral, não se limita a conceber a justiça como aplicação mecânica da lei, mas como expressão viva do equilíbrio entre ética, razão e fraternidade. Seu conceito de justiça transcende o âmbito jurídico e mergulha no terreno da moral e da consciência individual, onde cada ato, cada juízo e cada decisão é um espelho do seu próprio grau de iluminação interior.

A Justiça Como Fundamento Moral

O maçom é um ser em busca de harmonia. Sua justiça não nasce do medo da punição, mas da compreensão do dever. No símbolo do esquadro, instrumento que mede a retidão das ações humanas, ele aprende que a equidade provém do alinhamento entre pensamento, palavra e ação. O justo, para o maçom, não é aquele que segue as leis cegamente, mas aquele que as transcende pela virtude, que faz da lei um instrumento do bem e não um fim em si mesma.

No plano ético, a justiça maçônica repousa sobre o princípio do julgamento interior. Antes de julgar o outro, o maçom julga a si próprio; pesa suas intenções, investiga seus sentimentos e confronta suas motivações. Esse autoexame contínuo, que lembra o "conhece-te a ti mesmo" socrático, é a base sobre a qual se constrói a justiça que liberta, e não aquela que condena.

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, distingue entre a justiça distributiva e a corretiva: a primeira busca repartir os bens e encargos conforme o mérito; a segunda, corrigir desequilíbrios. O maçom, porém, vai além dessas categorias. Sua justiça é essencialmente simbólica e espiritual: ela se realiza na capacidade de ver no outro a si mesmo, princípio que o leva a agir com empatia, prudência e compaixão.

O Direito Natural e a Ética Maçônica

A Maçonaria, herdeira das tradições iluministas e humanistas, baseia sua concepção de justiça no direito natural, aquele que emana da razão e da consciência moral, e não apenas das convenções humanas. Para o maçom, a lei positiva deve ser a tradução prática desse direito natural, e não um instrumento de dominação ou privilégio.

Quando a lei se distancia da moral, ela perde sua legitimidade espiritual. Assim, o maçom busca a coerência entre o legal e o justo, defendendo a supremacia da dignidade humana sobre qualquer forma de poder arbitrário. Essa visão encontra eco nas ideias de Cícero, para quem "a verdadeira lei é a reta razão, conforme a natureza, universal, imutável e eterna". O maçom, ao estudar os fenômenos sociais, reconhece que a coerção, o medo da sanção, é um meio inferior de manter a ordem. A justiça social só se alcança quando cada indivíduo age por convicção interior, e não por temor.

Por isso, a Maçonaria enfatiza a educação moral e a formação do caráter como pilares de uma sociedade justa. A liberdade interior é o primeiro passo para a justiça exterior. O maçom sabe que nenhuma lei será justa se o homem que a aplica for injusto; nenhuma sentença será correta se o coração que a pronuncia estiver corrompido pela vaidade ou pelo interesse.

O Perdão e a Superação do Rigor

Um dos aspectos mais nobres da justiça maçônica é sua abertura ao perdão. O perdão não é, aqui, sinal de fraqueza, mas expressão da força interior de quem transcende a vingança e compreende a falibilidade humana. "Perdoar é libertar-se de um prisioneiro e descobrir que o prisioneiro era você", diz um adágio moral que poderia ser perfeitamente maçônico.

A justiça rígida, desprovida de compaixão, converte-se em tirania. A Maçonaria ensina que o equilíbrio deve prevalecer: o rigor da lei deve ser temperado pela sabedoria da compreensão. A balança simbólica da justiça, um dos ícones mais antigos da humanidade, não representa apenas o equilíbrio entre culpa e inocência, mas também entre razão e emoção, entre a frieza do julgamento e o calor da fraternidade.

A Justiça Como Ideal Coletivo

A justiça maçônica, portanto, não se reduz a um código, mas se expressa como ideal coletivo. Trata-se de um "dever-ser" que norteia a vida comunitária e espiritual do templo. O maçom aprende que a verdadeira lei é a lei do amor fraternal, e que a ordem jurídica deve estar a serviço do bem comum, não do privilégio individual.

Neste ponto, a Maçonaria se aproxima da filosofia política de Rousseau, que concebe o contrato social como um pacto moral entre homens livres e iguais. Mas a diferença está na dimensão interior: o maçom não busca apenas a justiça exterior das instituições, mas a justiça interior que se manifesta na retidão de caráter.

O Templo simbólico representa a construção dessa justiça. Cada pedra ajustada e polida é um ato justo, uma decisão correta, um gesto de benevolência. Quando o maçom ergue seu Templo interior, está, na verdade, edificando a cidade justa de Platão, não no espaço físico, mas na esfera do espírito.

A Crítica à Injustiça e ao Formalismo

O mundo fora da Maçonaria oferece inúmeros exemplos de leis que servem aos poderosos, de tribunais que julgam com parcialidade, de sociedades em que o privilégio suplanta o mérito. A justiça maçônica ergue-se em oposição a esse estado de coisas. Ela é resistência ética contra a corrupção, o favoritismo e a desigualdade.

O maçom não pode aceitar o formalismo cego do "dura lex, sed lex" quando a lei oprime o inocente ou absolve o perverso. Sua consciência é o tribunal supremo. Por isso, o compromisso do maçom com a justiça não é apenas teórico, mas prático: deve refletir-se em sua vida familiar, profissional e cívica. Ao agir com equidade e bom senso, ele transforma a sociedade ao seu redor, ainda que de forma silenciosa.

Essa postura é um chamado à coragem moral. "A injustiça num lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares", advertia Martin Luther King. A indiferença diante da injustiça é, para o maçom, uma forma de cumplicidade. O iniciado não se cala diante do mal, mesmo quando isso lhe custa o conforto ou a aprovação.

Justiça, Símbolo do Equilíbrio Universal

No simbolismo maçônico, a justiça é a síntese das três grandes colunas do Templo: Sabedoria, Força e Beleza. A Sabedoria permite discernir o justo; a Força, sustentar a decisão justa; e a Beleza, fazer da justiça um instrumento de harmonia.

Assim, a justiça do maçom é o reflexo da ordem universal instituída pelo Grande Arquiteto do Universo. Ela é o equilíbrio entre os opostos, luz e trevas, bem e mal, liberdade e dever. Julgar com justiça é participar do plano divino da harmonia cósmica.

O maçom justo é aquele que, tendo aprendido a medir com o esquadro, a pesar com a balança e a decidir com o compasso da razão, se torna construtor de paz e defensor do bem. Sua justiça é silenciosa, porém profunda; visível não nas sentenças que pronuncia, mas nos exemplos que dá.

Em última análise, o conceito de justiça maçônica é uma técnica de formação da alma: ensina que o julgamento não é o que condena o outro, mas o que ilumina a si mesmo.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução António C. Monteiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. Obra fundamental da filosofia moral, apresenta as categorias de justiça distributiva e corretiva, oferecendo base teórica para a compreensão ética da justiça maçônica;

2.      CASTELLANI, José. Maçonaria: Símbolos e Interpretações. São Paulo: Madras, 2005. Explora o simbolismo da justiça dentro dos rituais e ferramentas maçônicas, relacionando o esquadro e o compasso às virtudes morais;

3.      CÍCERO. De Legibus. In: As Obras de Cícero. São Paulo: Edipro, 2012. Fonte clássica sobre o direito natural e a ideia de lei como expressão da razão universal, conceito essencial à ética maçônica;

4.      KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Apresenta a justiça como dever moral universal e autônomo, sustentando o conceito maçônico de julgamento ético interior;

5.      PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Gulbenkian, 2007. Discorre sobre a cidade justa e a harmonia entre as virtudes, ideia que inspira o ideal coletivo e simbólico da justiça maçônica;

6.      ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Fundamenta a noção de pacto moral entre iguais, paralela ao princípio de fraternidade e equidade maçônica;

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