quarta-feira, 1 de outubro de 2025

O Bode Como Elemento de Reconhecimento dos Maçons, História, Mito e Propaganda

 Charles Evaldo Boller

Origem do Bode e a Maçonaria

A associação do bode à Maçonaria é um mito histórico, sem qualquer fundamento na prática ou filosofia da Ordem. Sua origem remonta ao processo inquisitorial contra os Templários no início do século XIV, quando a acusação de adoração a um ídolo chamado Baphomet foi utilizada como pretexto para dissolver a Ordem dos Templários e confiscar seus bens.

Posteriormente, a figura foi sendo assimilada ao imaginário medieval de demônios e bruxarias, especialmente à forma do bode, já ligado ao deus Pan, ao "Bode de Mendes" e às representações satânicas nos sabás.

No século XIX, com Éliphas Lévi e as farsas de Léo Taxil, a imagem se consolidou como emblema anticlerical e antimaçônico.

No Brasil, o tema ganhou caráter de brincadeira popular, sem seriedade. Cabe ao maçom conhecer esta história apenas como cultura geral, distinguindo mito e realidade, e lembrando que a Arte Real é edificada na Luz, no aperfeiçoamento humano e na verdade.

O símbolo do bode, constantemente associado à Maçonaria por parte de setores populares ou por correntes adversárias à Ordem, é uma construção histórica e cultural cuja origem se encontra muito distante do ambiente maçônico. Para compreender esta vinculação indevida, é necessário percorrer a história das acusações inquisitoriais contra os Cavaleiros Templários, o imaginário medieval que personificava o mal através de figuras híbridas, e, posteriormente, a instrumentalização da imagem do Baphomet como arma de propaganda.

O Processo Contra os Templários e o Nascimento do Baphomet

Em 1307, sob ordem do rei Filipe IV, da França, e com a colaboração do Papa Clemente V, os Cavaleiros Templários foram presos e acusados de heresia. Entre os diversos crimes imputados, sodomia, blasfêmia, idolatria e adoração de ídolos, destaca-se a acusação de venerarem uma entidade chamada Baphomet. O termo, enigmático e polissêmico, talvez derivasse de "Mahomet" (Maomé), interpretado pelos inquisidores como culto herético ao Islã, ou ainda de construções esotéricas posteriores, que o vinculavam a figuras simbólicas de sabedoria.

A acusação carecia de provas consistentes. Contudo, como lembra Malcolm Barber, em The Trial of the Templars (2006), a Inquisição não buscava a verdade histórica, mas a construção de uma narrativa capaz de legitimar a dissolução da Ordem e a apropriação de seus bens. A imagem do ídolo templário foi gradualmente se moldando no imaginário europeu como uma entidade demoníaca, animalizada, vinculada ao bode. Assim, uma mentira originada por interesses políticos e econômicos converteu-se em um estigma duradouro.

O Imaginário Medieval e as Figuras Híbridas

A Idade Média produziu um vasto repertório de imagens que serviam tanto à catequese quanto à intimidação. Nas gárgulas góticas, bestas aladas, seres grotescos e animais fantásticos eram representados para simbolizar os pecados e os terrores infernais. O bode, animal ligado à fertilidade e à luxúria desde a antiguidade greco-romana (através do deus Pan), facilmente se converteu em emblema de forças obscuras.

A demonização do bode está também associada ao "Bode de Mendes", mencionado em relatos de ocultistas do século XIX, como Éliphas Lévi, que redesenhou a figura do Baphomet como um ser andrógino, alado, com cabeça de bode e corpo humano. Ainda que tal imagem tenha sido concebida séculos após a dissolução dos Templários, ela retroalimentou o mito de uma associação entre ordens secretas, heresia e satanismo.

Paganismo, Bruxaria e o Bode Satânico

Na cultura popular europeia, especialmente após os julgamentos de bruxas entre os séculos XV e XVII, consolidou-se a crença de que as feiticeiras realizavam sabás nos quais o diabo aparecia em forma de bode. O animal foi convertido em representação da inversão da ordem cristã: um ser que encarnava o pecado, o erotismo e a rebeldia.

O Malleus Maleficarum, manual inquisitorial publicado em 1486 por Heinrich Kramer, reforçou a visão de que o diabo se manifestava como bode nos rituais de bruxaria. A associação entre magia, bode e satanismo sedimentou-se na memória coletiva e atravessou os séculos.

A Falsa Vinculação à Maçonaria

A Maçonaria, surgida como ordem iniciática no início do século XVIII, não possui qualquer referência litúrgica, ritualística ou simbólica a Baphomet, ao bode ou a práticas de bruxaria. Entretanto, devido à sua natureza discreta e à aura de mistério que envolve seus rituais, tornou-se alvo de suspeitas e teorias conspiratórias.

Autores anticlericais e antimaçônicos, como Léo Taxil no século XIX, exploraram a fantasia popular para associar a Maçonaria ao satanismo. Em sua célebre fraude, Taxil descreveu falsos rituais maçônicos com adoração explícita a Baphomet. Décadas mais tarde, confessou a farsa, mas o estrago simbólico já estava feito.

No Brasil, o tema adquiriu contornos caricatos. O senso de humor nacional, aliado à tradição de brincar com o oculto, acabou por naturalizar a expressão "o maçom adora o bode" em tom de chiste, desprovido de seriedade, mas reforçando uma ideia equivocada no imaginário popular.

A Perspectiva Filosófica Maçônica

Do ponto de vista maçônico, a associação do bode ao satanismo é não apenas incorreta, mas antagônica ao espírito da Ordem. A Maçonaria trabalha sobre valores como liberdade, igualdade, fraternidade, tolerância e aperfeiçoamento moral. A presença de símbolos é rica, mas está sempre vinculada a ideais éticos, filosóficos e espirituais elevados, jamais à idolatria ou à demonologia.

O bode, quando aparece no contexto maçônico brasileiro, é somente em forma de piada ou ironia, mas nunca como elemento ritualístico. O animal simbólico da Maçonaria é o homem, comparado à pedra bruta que precisa ser talhada, e não qualquer criatura demoníaca.

Conhecer a história do Baphomet é importante para o maçom, não porque este faça parte de sua prática, mas porque ajuda a desconstruir preconceitos, desfazer calúnias históricas e oferecer respostas lúcidas diante das acusações que, ainda hoje, circulam em ambientes de desinformação.

O Maçom e a Cultura Geral

Cabe ao maçom, portanto, cultivar a lucidez histórica. A Maçonaria, enquanto escola de pensamento, não deve ignorar a força dos símbolos no imaginário coletivo. Ainda que o bode nada tenha a ver com sua filosofia, o tema é culturalmente relevante e merece estudo, para que cada maçom saiba responder com serenidade e clareza às acusações infundadas.

No contexto brasileiro, onde a irreverência é traço cultural, a brincadeira em torno do bode precisa ser entendida como folclore popular, e não como verdade histórica. A educação maçônica exige a distinção entre mito e realidade, entre propaganda inquisitorial e prática iniciática.

Um Mito sem Fundamento

O bode associado à Maçonaria é fruto de um processo histórico de difamação iniciado na Idade Média contra os Templários, amplificado por imagens de bruxaria e, posteriormente, explorado por campanhas antimaçônicas. Trata-se de um mito sem fundamento, mas de grande poder simbólico.

O maçom, como homem esclarecido, deve conhecer esta história não para reproduzi-la, mas para neutralizá-la. Reconhecer que o Baphomet foi originalmente concebido como uma invenção inquisitorial é parte do exercício da busca pela Verdade, pedra fundamental da Arte Real.

Bibliografia Comentada

1.      BARBER, Malcolm. The Trial of the Templars. Cambridge University Press, 2006. Obra fundamental para compreender o processo movido contra os Templários, contextualizando as acusações de heresia e a invenção do Baphomet;

2.      GOODMAN, Richard. The Brotherhood: Inside the Secret World of the Freemasons. HarperCollins, 1993. Estudo contemporâneo sobre a Maçonaria, que mostra a ausência de qualquer referência a práticas ocultistas, desfazendo mitos;

3.      KRAMER, Heinrich. Malleus Maleficarum. 1486. Manual inquisitorial que associou bruxaria à figura do bode e reforçou a iconografia do diabo como animal híbrido;

4.      LÉVI, Éliphas. Dogme et Rituel de la Haute Magie. Paris, 1854. Livro responsável por cristalizar a imagem moderna do Baphomet como figura andrógina com cabeça de bode. Ainda que tardio, influenciou o imaginário ocultista e antimaçônico;

5.      TAXIL, Léo. Les Mystères de la Franc-Maçonnerie. Paris, 1897. Obra fraudulenta que inventou narrativas anticlericais contra a Maçonaria, relacionando-a falsamente a cultos satânicos. Importante como exemplo de propaganda;

6.      WAITE, Arthur Edward. A New Encyclopedia of Freemasonry. London, 1921. Compêndio clássico que reúne símbolos, rituais e tradições maçônicas, demonstrando que não existe vínculo entre Maçonaria e Baphomet;

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