Charles Evaldo Boller
Origem do Bode e a Maçonaria
A associação do bode à Maçonaria é um mito histórico, sem
qualquer fundamento na prática ou filosofia da Ordem. Sua origem remonta ao
processo inquisitorial contra os Templários no início do século XIV, quando a
acusação de adoração a um ídolo chamado Baphomet foi utilizada como pretexto
para dissolver a Ordem dos Templários e confiscar seus bens.
Posteriormente, a figura foi sendo assimilada ao imaginário
medieval de demônios e bruxarias, especialmente à forma do bode, já ligado ao
deus Pan, ao "Bode de Mendes" e às representações satânicas nos
sabás.
No século XIX, com Éliphas Lévi e as farsas de Léo Taxil, a
imagem se consolidou como emblema anticlerical e antimaçônico.
No Brasil, o tema ganhou caráter de brincadeira popular, sem
seriedade. Cabe ao maçom conhecer esta história apenas como cultura geral,
distinguindo mito e realidade, e lembrando que a Arte Real é edificada na Luz,
no aperfeiçoamento humano e na verdade.
O símbolo do bode, constantemente associado à Maçonaria por
parte de setores populares ou por correntes adversárias à Ordem, é uma
construção histórica e cultural cuja origem se encontra muito distante do
ambiente maçônico. Para compreender esta vinculação indevida, é necessário
percorrer a história das acusações inquisitoriais contra os Cavaleiros
Templários, o imaginário medieval que personificava o mal através de figuras
híbridas, e, posteriormente, a instrumentalização da imagem do Baphomet como
arma de propaganda.
O Processo Contra os Templários e o Nascimento do Baphomet
Em 1307, sob ordem do rei Filipe IV, da França, e com a
colaboração do Papa Clemente V, os Cavaleiros Templários foram presos e
acusados de heresia. Entre os diversos crimes imputados, sodomia, blasfêmia,
idolatria e adoração de ídolos, destaca-se a acusação de venerarem uma entidade
chamada Baphomet. O termo, enigmático e polissêmico, talvez derivasse de
"Mahomet" (Maomé), interpretado pelos inquisidores como culto
herético ao Islã, ou ainda de construções esotéricas posteriores, que o
vinculavam a figuras simbólicas de sabedoria.
A acusação carecia de provas consistentes. Contudo, como lembra
Malcolm Barber, em The Trial of the Templars (2006), a Inquisição não buscava a
verdade histórica, mas a construção de uma narrativa capaz de legitimar a
dissolução da Ordem e a apropriação de seus bens. A imagem do ídolo templário
foi gradualmente se moldando no imaginário europeu como uma entidade demoníaca,
animalizada, vinculada ao bode. Assim, uma mentira originada por interesses
políticos e econômicos converteu-se em um estigma duradouro.
O Imaginário Medieval e as Figuras Híbridas
A Idade Média produziu um vasto repertório de imagens que
serviam tanto à catequese quanto à intimidação. Nas gárgulas góticas, bestas
aladas, seres grotescos e animais fantásticos eram representados para
simbolizar os pecados e os terrores infernais. O bode, animal ligado à
fertilidade e à luxúria desde a antiguidade greco-romana (através do deus Pan),
facilmente se converteu em emblema de forças obscuras.
A demonização do bode está também associada ao "Bode de
Mendes", mencionado em relatos de ocultistas do século XIX, como Éliphas
Lévi, que redesenhou a figura do Baphomet como um ser andrógino, alado, com
cabeça de bode e corpo humano. Ainda que tal imagem tenha sido concebida
séculos após a dissolução dos Templários, ela retroalimentou o mito de uma
associação entre ordens secretas, heresia e satanismo.
Paganismo, Bruxaria e o Bode Satânico
Na cultura popular europeia, especialmente após os julgamentos
de bruxas entre os séculos XV e XVII, consolidou-se a crença de que as
feiticeiras realizavam sabás nos quais o diabo aparecia em forma de bode. O
animal foi convertido em representação da inversão da ordem cristã: um ser que
encarnava o pecado, o erotismo e a rebeldia.
O Malleus Maleficarum, manual inquisitorial publicado em 1486
por Heinrich Kramer, reforçou a visão de que o diabo se manifestava como bode
nos rituais de bruxaria. A associação entre magia, bode e satanismo
sedimentou-se na memória coletiva e atravessou os séculos.
A Falsa Vinculação à Maçonaria
A Maçonaria, surgida como ordem iniciática no início do século
XVIII, não possui qualquer referência litúrgica, ritualística ou simbólica a
Baphomet, ao bode ou a práticas de bruxaria. Entretanto, devido à sua natureza
discreta e à aura de mistério que envolve seus rituais, tornou-se alvo de
suspeitas e teorias conspiratórias.
Autores anticlericais e antimaçônicos, como Léo Taxil no século
XIX, exploraram a fantasia popular para associar a Maçonaria ao satanismo. Em
sua célebre fraude, Taxil descreveu falsos rituais maçônicos com adoração
explícita a Baphomet. Décadas mais tarde, confessou a farsa, mas o estrago
simbólico já estava feito.
No Brasil, o tema adquiriu contornos caricatos. O senso de
humor nacional, aliado à tradição de brincar com o oculto, acabou por
naturalizar a expressão "o maçom adora o bode" em tom de chiste,
desprovido de seriedade, mas reforçando uma ideia equivocada no imaginário
popular.
A Perspectiva Filosófica Maçônica
Do ponto de vista maçônico, a associação do bode ao satanismo é
não apenas incorreta, mas antagônica ao espírito da Ordem. A Maçonaria trabalha
sobre valores como liberdade, igualdade, fraternidade, tolerância e
aperfeiçoamento moral. A presença de símbolos é rica, mas está sempre vinculada
a ideais éticos, filosóficos e espirituais elevados, jamais à idolatria ou à
demonologia.
O bode, quando aparece no contexto maçônico brasileiro, é
somente em forma de piada ou ironia, mas nunca como elemento ritualístico. O
animal simbólico da Maçonaria é o homem, comparado à pedra bruta que precisa
ser talhada, e não qualquer criatura demoníaca.
Conhecer a história do Baphomet é importante para o maçom, não
porque este faça parte de sua prática, mas porque ajuda a desconstruir
preconceitos, desfazer calúnias históricas e oferecer respostas lúcidas diante
das acusações que, ainda hoje, circulam em ambientes de desinformação.
O Maçom e a Cultura Geral
Cabe ao maçom, portanto, cultivar a lucidez histórica. A
Maçonaria, enquanto escola de pensamento, não deve ignorar a força dos símbolos
no imaginário coletivo. Ainda que o bode nada tenha a ver com sua filosofia, o
tema é culturalmente relevante e merece estudo, para que cada maçom saiba
responder com serenidade e clareza às acusações infundadas.
No contexto brasileiro, onde a irreverência é traço cultural, a
brincadeira em torno do bode precisa ser entendida como folclore popular, e não
como verdade histórica. A educação maçônica exige a distinção entre mito e
realidade, entre propaganda inquisitorial e prática iniciática.
Um Mito sem Fundamento
O bode associado à Maçonaria é fruto de um processo histórico
de difamação iniciado na Idade Média contra os Templários, amplificado por
imagens de bruxaria e, posteriormente, explorado por campanhas antimaçônicas.
Trata-se de um mito sem fundamento, mas de grande poder simbólico.
O maçom, como homem esclarecido, deve conhecer esta história
não para reproduzi-la, mas para neutralizá-la. Reconhecer que o Baphomet foi
originalmente concebido como uma invenção inquisitorial é parte do exercício da
busca pela Verdade, pedra fundamental da Arte Real.
Bibliografia Comentada
1.
BARBER, Malcolm. The Trial of the Templars.
Cambridge University Press, 2006. Obra fundamental para compreender o processo
movido contra os Templários, contextualizando as acusações de heresia e a
invenção do Baphomet;
2.
GOODMAN, Richard. The Brotherhood: Inside the
Secret World of the Freemasons. HarperCollins, 1993. Estudo contemporâneo sobre
a Maçonaria, que mostra a ausência de qualquer referência a práticas
ocultistas, desfazendo mitos;
3.
KRAMER, Heinrich. Malleus Maleficarum. 1486.
Manual inquisitorial que associou bruxaria à figura do bode e reforçou a
iconografia do diabo como animal híbrido;
4.
LÉVI, Éliphas. Dogme et Rituel de la Haute
Magie. Paris, 1854. Livro responsável por cristalizar a imagem moderna do
Baphomet como figura andrógina com cabeça de bode. Ainda que tardio,
influenciou o imaginário ocultista e antimaçônico;
5.
TAXIL, Léo. Les Mystères de la Franc-Maçonnerie.
Paris, 1897. Obra fraudulenta que inventou narrativas anticlericais contra a
Maçonaria, relacionando-a falsamente a cultos satânicos. Importante como
exemplo de propaganda;
6.
WAITE, Arthur Edward. A New Encyclopedia of
Freemasonry. London, 1921. Compêndio clássico que reúne símbolos, rituais e
tradições maçônicas, demonstrando que não existe vínculo entre Maçonaria e
Baphomet;
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