Maçons Atuando em Lados Opostos de um Mesmo Conflito
A Maçonaria, ao longo de sua trajetória histórica e filosófica,
tem se caracterizado como uma escola de pensamento e ação que transcende as divisões
superficiais da política, da religião e dos conflitos humanos. Sua essência
repousa sobre os pilares da liberdade, igualdade e fraternidade, que não são
apenas lemas, mas princípios ontológicos que refletem uma compreensão profunda
do ser e da sociedade. Assim, não causa surpresa o fato de que, em muitos
episódios da história, se encontrem maçons atuando em lados opostos de um mesmo
conflito, mas sempre movidos por um mesmo ideal de construção do bem comum. A
aparente contradição é, na verdade, a demonstração mais elevada da pluralidade
da consciência livre e do compromisso ético que a Maçonaria propõe ao homem.
A Maçonaria e os Conflitos Históricos
A Revolução Farroupilha, ocorrida entre 1835 e 1845 no Sul do
Brasil, é um exemplo emblemático da presença maçônica em ambos os lados da
disputa. De um lado, o Império do Brasil, representando a unidade e a ordem; de
outro, os Farrapos, simbolizando a autonomia e a liberdade regional. Homens de
pensamento e ação, forjados nos templos maçônicos, encontravam-se em lados
distintos, não por divergirem nos valores, mas por interpretarem de forma
diferente o caminho para concretizá-los.
Os maçons imperiais viam na manutenção da integridade
territorial e institucional do Império a melhor via para a preservação da ordem
e do progresso. Já os maçons farroupilhas acreditavam que a verdadeira
liberdade só seria alcançada pela emancipação política e econômica das
províncias. Ambos, contudo, reconheciam o Grande Arquiteto do Universo como o
princípio ordenador e amoroso da criação, e ambos buscavam, cada qual a seu
modo, a concretização da justiça e da dignidade humana.
Esse fenômeno histórico revela que a Maçonaria não é uma
instituição partidária, mas uma escola moral e filosófica. O maçom não é
doutrinado para seguir uma ideologia política ou religiosa, mas educado para
agir conforme a razão iluminada pela ética e pelo amor universal. Tal formação
faz com que, mesmo em contextos de guerra, o maçom permaneça comprometido com a
paz e com o respeito à dignidade humana, valores que se sobrepõem a qualquer
bandeira ou fronteira.
O Contraste com as Religiões nos Conflitos
Em contrapartida, as religiões institucionalizadas nem sempre
conseguiram manter-se fiéis ao espírito de amor e fraternidade que professam.
Nas grandes guerras do século XX, padres, pastores e líderes religiosos de
ambos os lados abençoavam as armas e incitavam os soldados à violência "em nome de Deus" ou "pela pátria". Assim, irmãos de fé,
partilhando as mesmas crenças, matavam-se mutuamente sob o aval dos mesmos
símbolos sagrados.
A história testemunha, nas duas guerras mundiais, um espetáculo
de contradição espiritual: crucifixos e rosários pendiam do pescoço de soldados
alemães, franceses e ingleses, enquanto cada exército proclamava possuir o
favor divino. Deus, o Uno e Amoroso, era fragmentado em mil faces por uma
humanidade incapaz de reconhecê-Lo como princípio comum. Em ambos os lados das
trincheiras, o mesmo Cristo era invocado, mas com armas nas mãos e ódio nos
corações.
A crítica maçônica a esse estado de coisas não é uma condenação
das religiões em si, mas da incoerência moral que se manifesta quando o sagrado
é instrumentalizado para legitimar a violência. A Maçonaria entende o Princípio
Criador, o Grande Arquiteto do Universo, como a manifestação pura do Amor, e
por isso não o confunde com o deus tribal das guerras antigas, nem com o ídolo
político das modernas. O maçom vê no Criador uma força
viva de harmonia e compaixão, não um árbitro de batalhas humanas.
O Princípio Criador e o Livre-arbítrio
O Princípio Criador, tal como compreendido na filosofia
maçônica, não é uma entidade antropomórfica que interfere arbitrariamente no
destino dos homens. Ele é o fundamento da ordem cósmica e moral, a inteligência
suprema que estrutura o Universo segundo leis imutáveis e justas. O homem, como
ser dotado de razão e consciência, é chamado a participar dessa ordem por meio
do livre-arbítrio, não como um privilégio, mas como uma responsabilidade.
O livre-arbítrio é a pedra angular da ética maçônica. Ele define
o homem livre, aquele que não se deixa conduzir por paixões cegas nem por
dogmas impostos, mas que age de acordo com o discernimento e a consciência
iluminada. O maçom compreende que cada ato humano é uma semente lançada no
campo da existência, e que a colheita será proporcional à qualidade da semente
plantada. "A cada um segundo suas
obras", ensinava o Cristo, e a filosofia maçônica transforma essa
máxima em regra de conduta moral.
A liberdade sem responsabilidade é licenciosidade; a
responsabilidade sem liberdade é servidão. Entre esses extremos, o maçom busca
o equilíbrio, o ponto médio aristotélico, onde reside a virtude. Assim, o bem que ele pratica é fruto da
escolha consciente, e o mal que evita é resultado do domínio de si mesmo. Não há céu nem inferno como recompensa
ou castigo externos, mas há, sim, a colheita moral dos próprios atos, que o
homem experimenta aqui mesmo, no convívio com seus semelhantes e no tribunal de sua própria consciência.
A Moral Maçônica e o Bem Viver
Ser "bom maçom"
significa viver segundo a melhor moral, isto é, agir com retidão, justiça e
compaixão em todos os momentos. O maçom não busca recompensas celestes nem teme
punições infernais; sua felicidade é imanente, nasce do equilíbrio interior e
da harmonia com os outros seres. Ele sabe que a fraternidade é o solo onde
florescem as virtudes e que a recompensa da vida está na alegria
compartilhada com as demais criaturas que habitam o mesmo bioma espiritual e
material.
Na prática, isso se traduz em atitudes concretas: o respeito ao
próximo, o amor à verdade, a tolerância às diferenças e a solidariedade nas
adversidades. O maçom sabe que toda vez que alimenta o ódio, ele destrói uma
pedra do templo interior; e toda vez que pratica a caridade, ele acrescenta uma
pedra de luz à construção do edifício humano.
A moral maçônica não é dogmática, mas racional; não se impõe,
mas se conquista pelo exercício da virtude. Ela é uma ética de aperfeiçoamento
contínuo, onde cada erro é oportunidade de crescimento e cada acerto é um
degrau na escada da sabedoria. Segundo Immanuel Kant, a moral deve
ser autônoma, isto é, derivar da razão prática e não de mandamentos
externos. O homem virtuoso não age bem por medo da punição, mas por respeito à
lei moral que habita em si.
A Filosofia Maçônica e a Superação do Egoísmo
O egoísmo é a raiz de todos os litígios humanos. Quando o homem
coloca seus interesses acima do bem comum, ele rompe a harmonia da criação e
gera sofrimento. A filosofia maçônica ensina que o combate não se trava
contra os outros, mas contra si mesmo. O "inimigo interno", o orgulho, a cobiça, a ignorância, é mais
perigoso do que qualquer adversário externo.
A iniciação maçônica simboliza precisamente esse processo de
purificação interior. A descida às "trevas"
do próprio ser seguida pela busca da Luz é a metáfora do autoconhecimento
que liberta. Quando o homem vence a si mesmo, ele torna-se capaz de amar o
outro. O amor, nesse sentido, não é mero sentimento, mas força ontológica[1] que restabelece a
unidade perdida.
Na vida prática, essa lição se traduz em pequenas atitudes:
ouvir antes de julgar, perdoar em vez de retaliar, cooperar em vez de competir.
O maçom sabe que a fraternidade é construção diária, feita de gestos simples e
constantes. A paz universal começa na paz interior, e esta se conquista pelo domínio de si mesmo.
Ética, Metafísica e Epistemologia Maçônicas
Na metafísica, a Maçonaria reconhece o Universo como obra de
uma inteligência suprema, mas não especula sobre sua essência, pois o inefável
não se define, apenas se contempla. O símbolo do Grande Arquiteto do Universo é
a síntese desse mistério: um conceito que expressa o princípio de ordem sem
aprisioná-lo em formas dogmáticas. Assim, a metafísica maçônica é uma metafísica
da humildade: reconhece o limite da razão e a infinitude do Ser.
Na epistemologia[2], a Maçonaria propõe
que o conhecimento humano é progressivo e simbólico. O homem não possui a
verdade absoluta, mas a busca por ela o transforma. Cada rito, cada
símbolo, cada palavra ritualística é um degrau na escada do saber. O maçom
aprende a ver o invisível por trás do visível, a compreender o sentido oculto
das coisas, a interpretar o mundo como um texto sagrado escrito em linguagem
simbólica.
Na ética, a Maçonaria propõe a ação moral fundada na razão e no
amor. O bem é o que constrói, une e ilumina; o mal é o que destrói, separa e
obscurece. O maçom não se guia por conveniências sociais, mas por princípios
universais. Ele age segundo a máxima que poderia desejar como lei universal, repetindo
o imperativo categórico kantiano, e reconhece na fraternidade o fundamento de
toda moral.
O Maçom como Construtor da Paz
Enquanto o mundo exalta guerreiros, a Maçonaria reverencia
construtores. O herói maçônico não é aquele que destrói, mas o que edifica, não
o que impõe a sua vontade, mas o que harmoniza vontades diversas em torno de um
ideal comum. O templo simbólico que o maçom ergue é o retrato de uma humanidade
reconciliada com a lei do amor.
Essa postura é revolucionária, pois subverte as lógicas do
poder e da dominação. Em um tempo em que o ódio se disfarça de patriotismo e a
ganância de progresso, o maçom é chamado a ser o sal da terra e a luz do mundo,
mantendo acesa a chama da razão e da compaixão. Sua arma é o esquadro da
justiça, seu escudo é o compasso da sabedoria, e seu campo de batalha é a própria consciência.
A Felicidade Fraterna e a Colheita Moral
O destino do maçom é construir, dentro e fora de si, um
mundo onde a paz não seja apenas ausência de guerra, mas presença de harmonia.
Ele sabe que cada gesto de bondade é uma pedra assentada na obra do Grande
Arquiteto do Universo, e que cada pensamento justo é um raio de luz que dissipa
as trevas da ignorância. A felicidade que o maçom busca não é utopia futura,
mas realidade presente, fruto do viver fraterno e consciente.
Enquanto o mundo ainda se divide em guerras políticas e
religiosas, o maçom prossegue edificando silenciosamente a civilização do
amor, ciente de que "a
verdadeira vitória não é vencer o outro, mas vencer o próprio ego". O
Princípio Criador, manifestação de amor universal, continua a convidar o homem
à reconstrução de si e do mundo, tarefa infinita, mas sublime, de todos os que
trabalham na Grande Obra da Humanidade.
Bibliografia Comentada
1.
ALBERT
PIKE. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of
Freemasonry. Charleston: Supreme Council, 1871. Texto clássico da filosofia
maçônica escocesa, propondo a unidade entre razão, moral e espiritualidade;
2.
ANDERSON, James. Constituições de Anderson
(1723). Tradução José Castellani. São Paulo: Madras, 2002. Documento fundador
da Maçonaria Especulativa moderna, base filosófica dos ideais de fraternidade e
liberdade;
3.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo:
Martins Fontes, 2009. A ideia do "justo meio" e da virtude como
hábito de equilíbrio fundamenta a moral prática da Maçonaria;
4.
BAILEY, Alice A. A Luz da Alma: Os Aforismos de
Patanjali. Nova York: Lucis Trust, 1954. Aproxima o pensamento esotérico
oriental da disciplina interior que o maçom deve cultivar em busca da
iluminação;
5.
CHOPRA, Deepak. Você é o Universo. Rio de Janeiro:
HarperCollins, 2018. Reflexão contemporânea sobre a unidade entre consciência e
cosmos, aproximando ciência moderna e espiritualidade maçônica;
6.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005. Obra fundamental
para compreender a moral autônoma e racional que inspira a ética maçônica;
7.
PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena da
Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. O ideal platônico de
harmonia e justiça reflete a busca maçônica por uma sociedade de sábios e
justos;
8.
POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus
Inimigos. São Paulo: Itatiaia, 1987. O pensamento liberal e humanista de Popper
ecoa o ideal maçônico de liberdade e responsabilidade individual;
9.
RIZZARDO DA CAMINO. História da Maçonaria no
Brasil. São Paulo: Madras, 2001. Análise histórica que contextualiza o papel
dos maçons nos conflitos políticos e sociais do país;
10. SPINOZA,
Baruch. Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica. São Paulo: Martins
Fontes, 1992. Spinoza oferece uma visão do divino como substância única e
imanente, próxima da concepção maçônica do Princípio Criador;
[1]
Ontologia é o ramo da filosofia que estuda conceitos como existência,
ser, devir e realidade. Inclui as questões de como as entidades são agrupadas
em categorias básicas e quais dessas entidades existem no nível mais
fundamental;
[2]
Epistemologia, em sentido estrito, refere-se ao ramo da filosofia que se
ocupa do conhecimento científico; é o estudo crítico dos princípios, das
hipóteses e dos resultados das diversas ciências, com a finalidade de
determinar seus fundamentos lógicos, seu valor e sua importância objetiva;
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