domingo, 19 de outubro de 2025

O Deísmo Maçônico e a Humildade Filosófica Diante do Princípio Criador

 Charles Evaldo Boller

Pensar sem Arrogância

A Maçonaria deísta é uma escola de humildade e razão. Ela ensina o homem a pensar sem arrogância, a crer sem fanatismo e a viver sem medo. Entre o céu da fé e a terra da razão, o maçom ergue a ponte da sabedoria, e é por essa ponte que o espírito humano se eleva, silenciosamente, até o Princípio Criador.

A Maçonaria, em sua vertente especulativa e filosófica, não se limita à construção simbólica do Templo de Salomão; ela ergue também o templo invisível do espírito humano, lapidando as arestas do intelecto e da moralidade. Essa lapidação se dá, entre outros caminhos, pela compreensão da relação do homem com o mistério do Princípio Criador. Ao fomentar o desenvolvimento de bons conceitos de vida em sociedade, a Maçonaria desperta a sensibilidade para a dimensão mística que eleva o homem de simples predador da natureza a guardião consciente do cosmos. Essa sensibilidade não é mero sentimentalismo; é racionalidade amadurecida que reconhece o limite da razão e a necessidade da reverência. Assim, o homem que adere ao Deísmo maçônico encontra um equilíbrio entre a fé e a razão, entre o mistério e a lucidez.

A Dimensão Mística e a Superação do Predador

O homem, na sua condição instintiva, tende a ver o mundo como campo de conquista. A natureza, em sua generosidade, torna-se vítima da voracidade humana, que busca nela não a harmonia, mas o domínio. A Maçonaria propõe um deslocamento dessa postura: a substituição do olhar predador por um olhar contemplativo. O iniciado não subjuga o mundo, compreende-o, e dessa compreensão nasce o respeito. É o mesmo movimento que levou Spinoza a afirmar que o amor intelectual por Deus é o amor pela ordem e pela necessidade do Universo. O maçom, ao contemplar as leis da natureza, percebe nelas o reflexo do Princípio Criador e reconhece que destruir a natureza é, em última instância, destruir a si mesmo.

Essa transformação é também ética: o homem passa a entender que a moral não é um conjunto de proibições, mas o exercício consciente de sua liberdade. O livre-arbítrio, dado pelo Criador, não é licença para o caos, mas responsabilidade diante da ordem universal. Como um escultor que molda o mármore com cuidado, o maçom molda seu caráter em consonância com a harmonia cósmica, consciente de que cada ato repercute no todo. Assim, ele deixa de ser predador para tornar-se co-criador, participando simbolicamente da própria obra divina.

O Deísmo como Filosofia da Liberdade Espiritual

Ao abraçar o Deísmo, a Maçonaria confere ao homem a liberdade de relacionar-se diretamente com o Criador, sem intermediários nem sacerdócios autoritários. O Deísmo não é ateísmo, mas uma fé racional; não é teísmo dogmático, mas espiritualidade livre. O Universo, com sua crescente complexidade, é, para o deísta, a maior revelação do Princípio Criador. Não há necessidade de milagres ou profecias, pois a própria estrutura das galáxias, a simetria das leis físicas e a consciência humana são manifestações eloquentes do Divino.

O maçom que compreende essa verdade aproxima-se do espírito socrático: "Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os deuses." A introspecção é a via pela qual ele alcança o Criador, não como entidade exterior, mas como princípio imanente. Esse entendimento é, de certo modo, metafísico, pois ultrapassa o plano sensível; mas é também epistemológico[1], pois se funda na experiência racional. Kant, em sua Crítica da Razão Pura, demonstrou que a razão humana tem limites intransponíveis quando tenta conhecer o absoluto. O maçom, ciente desses limites, não busca provar Deus, busca vivê-Lo.

O Princípio Criador e a Ordem Natural

O Deísmo maçônico concebe o Princípio Criador como inteligência suprema que instaurou as leis da natureza, mas não intervém nos acontecimentos particulares. Essa concepção lembra a imagem do "relógio cósmico" de Voltaire: Deus, o grande relojoeiro, construiu a máquina do universo, ajustou seus mecanismos e deixou que funcionasse por si. Essa ideia, longe de afastar o homem da espiritualidade, o convoca à maturidade. A liberdade humana é consequência dessa confiança divina. Deus não guia cada passo do homem; deu-lhe a bússola da consciência para que encontre seu próprio caminho.

Essa noção traz uma profunda implicação moral: cada indivíduo é responsável por seus atos. Não há lugar para a desculpa de um destino imposto ou de um demônio tentador. O homem é senhor de seu caráter e artífice de seu futuro. O erro, portanto, não é punição divina, mas consequência natural da desarmonia com as leis universais. O aprendizado, por sua vez, é a correção progressiva dessa desarmonia. A Maçonaria ensina, por símbolos e alegorias, que a Luz não vem de fora, mas do exercício constante da consciência moral e do autodomínio.

A Humildade Cósmica e o Fim do Antropocentrismo

A filosofia maçônica conduz o iniciado a abandonar a arrogância antropocêntrica que marcou os períodos teológicos da história. Durante séculos, o homem acreditou ser o centro da criação, o favorito dos deuses. Mas o avanço da ciência e da reflexão filosófica revelou que o Universo não gira ao redor do homem. Essa descoberta, longe de diminuir a dignidade humana, a engrandece: o homem torna-se consciente de sua pequenez diante do infinito e de sua grandeza por ser capaz de compreendê-lo. Como dizia Pascal, "o homem é uma cana pensante": frágil pela matéria, mas sublime pelo espírito.

Essa humildade cósmica é o primeiro passo para a sabedoria. O maçom aprende a situar-se no cosmos como parte de uma totalidade viva. Ele NÃO se julga predileto nem eleito, mas participante. Tal postura anula o egoísmo religioso e político, promovendo a fraternidade universal. O amor fraternal maçônico é, nesse sentido, o reflexo da harmonia cósmica percebida em escala humana.

O Maçom e a Teologia Natural

A posição do maçom diante da prova científica da existência de Deus é de prudente silêncio. Ele não é teólogo, mas filósofo. A Teologia Natural, que busca provar racionalmente a existência divina, interessa à filosofia da religião, não à filosofia maçônica. O maçom reconhece que o divino não é objeto de demonstração, mas de experiência interior. Assim, ele não se qualifica como ateu, pois não nega o Criador; apenas se abstém de reduzi-lo à lógica humana.

Há, nesse silêncio, uma profunda lição de humildade epistemológica. A razão, como dizia Kant, é como uma ave que, ao tentar voar acima da atmosfera que a sustenta, perde o ar e cai. A Maçonaria ensina o equilíbrio entre a luz da razão e a sombra do mistério. O maçom não discute com o teísta nem com o ateu, pois compreende que ambos se movem em torno do mesmo centro, o problema do absoluto, apenas com diferentes linguagens. Sua atitude é de tolerância e respeito, virtudes que nascem da consciência de que ninguém possui o monopólio da Verdade.

O Rejeito à Teologia da Revelação e à Teologia Transcendental

A Maçonaria também se distancia da Teologia da Revelação, que atribui à divindade a comunicação direta de verdades dogmáticas. O maçom, ao contrário, entende que a revelação é contínua e se dá pela razão iluminada e pela consciência moral. Cada descoberta científica, cada avanço ético, cada gesto de compaixão é, para ele, uma nova página do Livro da Revelação Natural. Essa visão faz do conhecimento um ato sagrado e da educação um culto.

Da mesma forma, a ordem maçônica não adota a Teologia Transcendental kantiana[2], que tenta deduzir racionalmente a necessidade de Deus como postulado moral. Para o maçom, Deus não é postulado nem dedução; é presença imanente percebida na ordem e na beleza do mundo. Também não segue a Filosofia Vedanta[3], que busca provar a divindade por meio da introspecção. O maçom é deísta porque crê na razão natural como caminho e na liberdade como método. Sua fé é racional sem ser fria; é espiritual sem ser mística no sentido dogmático.

Contra o Eruditismo e o Orgulho Intelectual

A especulação maçônica não se confunde com eruditismo. O eruditismo é a vaidade do saber; a especulação, o exercício humilde da razão. Aquele que ostenta o conhecimento, escondendo a verdade sob camadas de palavras e citações, ainda é escravo do ego. O saber maçônico é simples, claro, acessível, como a luz do Sol que ilumina a todos. Quando o maçom fala de sabedoria, não se refere ao acúmulo de informações, mas à capacidade de aplicar o conhecimento em prol do bem comum.

Essa crítica ao eruditismo é também uma lição moral. Nas lojas, muitas vezes, o intelectualismo excessivo cria barreiras entre os irmãos, transformando o debate em competição. O sábio, porém, fala com humildade, porque sabe que a sabedoria não é posse, mas caminho. A simplicidade de linguagem é virtude filosófica; ela reflete a clareza interior. Aristóteles já advertia que a eloquência não deve servir ao orgulho, mas à Verdade. O maçom que busca impressionar não ilumina, ofusca. O que busca compreender, este sim, acende luzes.

A Especulação Filosófica Maçônica

A palavra "especulação", no contexto maçônico, não significa devaneio vazio, mas reflexão profunda sobre o ser, o dever e o destino. A especulação é o exercício da inteligência moral, um pensar que transforma. Por meio dela, o maçom aprende a ler os símbolos como janelas para o invisível. Cada ferramenta do ofício, o esquadro, o compasso, o nível, o prumo, é, para o espírito reflexivo, uma chave de acesso às leis universais. O compasso, por exemplo, ensina a medir os próprios limites; o esquadro, a agir com retidão; o nível, a lembrar a igualdade essencial entre os homens.

Essa simbologia é epistemológica: é uma forma de conhecimento por analogia. O maçom não busca verdades absolutas, mas correspondências, entre o microcosmo e o macrocosmo, entre o homem e o universo, entre a razão e o mistério. Nesse sentido, o conhecimento maçônico é uma hermenêutica da realidade: interpretar o visível à luz do invisível. E aqui se revela o caráter profundamente filosófico da Ordem: ela não impõe dogmas, mas convida à interpretação contínua, à dúvida criadora, à busca infinita.

Aplicações Práticas à Vida Maçônica e Profana

No cotidiano, o Deísmo maçônico convida o homem à responsabilidade e à serenidade. Ele aprende que nada acontece por capricho divino ou fatalidade, mas segundo leis naturais e morais. Assim, diante das adversidades, em vez de reclamar ou culpar, o maçom busca compreender a causa e agir com sabedoria. Essa atitude tem valor terapêutico: transforma o sofrimento em aprendizado e a dúvida em iluminação.

No campo social, o Deísmo inspira tolerância. Ao compreender que cada homem é livre para conceber o divino à sua maneira, o maçom abandona o proselitismo e o sectarismo. Ele não busca converter, mas compreender. Nas relações profissionais, essa postura se traduz em liderança ética e justa. No seio da família, em paciência e compreensão. Em todos os âmbitos, o deísta é um construtor de pontes, não de muros.

Na vida interior, essa filosofia leva ao autodomínio. O maçom aprende a governar suas paixões, pois reconhece que o templo de Deus é a consciência pura. "O reino de Deus está dentro de vós", dizia Jesus; e essa é também a essência da Maçonaria. A religião externa é substituída pela religião interior: a do dever cumprido, da palavra justa, da compaixão silenciosa.

A Luz da Razão e a Luz do Espírito

A Maçonaria é escola de Luz. Mas essa luz não é unicamente a da razão analítica; é também a da intuição espiritual. O maçom, como o filósofo de Platão, sai da caverna das aparências e contempla o Sol da Verdade. Contudo, ao retornar à caverna, não despreza os que ainda veem sombras: oferece-lhes a mão da fraternidade. Essa imagem platônica resume o método de ensino maçônico: iluminar pela convivência, ensinar pelo exemplo, conduzir sem impor.

O Deísmo, nesse contexto, é a forma mais elevada de espiritualidade racional: reconhece um Princípio sem idolatrar uma imagem; cultiva o sagrado sem negar a ciência; exalta a liberdade sem dissolver a moral. O maçom deísta é, portanto, o cidadão do cosmos, aquele que vive em harmonia com as leis universais e vê em cada ser vivo uma centelha do Criador. Sua fé é silenciosa, mas profunda; sua religião, sem templos, mas repleta de reverência.

A Religião da Razão e o Silêncio da Sabedoria

A filosofia deísta da Maçonaria é um convite à maturidade espiritual. Ela não nega as religiões, mas as transcende; não despreza os dogmas, mas os interpreta; não combate a fé, mas a purifica. Sua grande lição é que o homem deve religar-se ao Criador por meio da razão iluminada e da moral elevada. O Princípio Criador, em sua sabedoria, concedeu liberdade — e a liberdade exige responsabilidade.

O maçom é, portanto, o homem que caminha entre a razão e o mistério, entre a ciência e a fé, entre o visível e o invisível. Ele sabe que o Universo não gira em torno dele, mas ele gira em torno do bem. Sua oração é o trabalho, seu altar é a consciência, seu templo é o Universo. E, nesse silêncio cósmico, ele ouve a voz do Princípio Criador, não como som, mas como harmonia.

Bibliografia Comentada

1.      ANDERSON, James. Constituições dos Maçons Livres. Texto fundador da Maçonaria Especulativa, que estabelece o Deísmo como filosofia oficial das Grandes lojas;

2.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Fundamenta o conceito de virtude como meio-termo e orienta a moral maçônica baseada na razão prática;

3.      CHOPRA, Deepak. Você é o Universo. Interpreta o cosmos como manifestação consciente, ampliando a visão deísta para o diálogo com a ciência contemporânea;

4.      DELORS, Jacques. Educação: Um Tesouro a Descobrir. A educação como instrumento de transformação e religação interior, coerente com o método de ensino da Maçonaria;

5.      GREENLEAF, Robert K. Servant Leadership. Moderno paralelo da ética maçônica aplicada à liderança, enfatizando o serviço e a humildade como virtudes;

6.      KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Obra fundamental que delimita o alcance da razão humana na tentativa de compreender o absoluto. Essencial para entender a posição maçônica de respeito ao mistério;

7.      PASCAL, Blaise. Pensées. A reflexão sobre a pequenez e a grandeza do homem diante do cosmos ilustra a humildade cósmica buscada pelo maçom;

8.      PLATÃO. A República. A alegoria da caverna e a ideia do Bem como Sol inspiram o ideal maçônico da busca pela Luz e da libertação das sombras da ignorância;

9.      SPINOZA, Baruch. Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica. Apresenta a ideia de Deus como natureza (Deus sive Natura), base para compreender o divino como imanente às leis universais;

10.  VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. O espírito iluminista de Voltaire inspira a liberdade de pensamento e a rejeição dos dogmas, fundamentos da filosofia deísta;



[1] A epistemologia é o ramo da filosofia que estuda o conhecimento, sendo sinônimo de "teoria do conhecimento". Ela se dedica a investigar a origem, natureza, limites, validade e métodos do conhecimento, buscando entender como sabemos o que sabemos e quais são os critérios para que um saber seja considerado verdadeiro ou justificado;

[2] A teologia transcendental kantiana, derivada de sua filosofia transcendental, é a tentativa de conhecer a existência de um ser supremo através de conceitos puros da razão, como nas provas ontológica e cosmológica. No entanto, a Dialética Transcendental de Kant critica essas tentativas, mostrando que elas são ilusões porque a razão pura, ao tentar ultrapassar os limites do conhecimento empírico, entra em contradições. A teologia transcendental busca responder a questões metafísicas usando apenas a razão, mas, para Kant, essas questões estão além do que a ciência pode provar;

[3] A filosofia Vedanta é uma tradição espiritual indiana que se baseia nos textos sagrados hindus mais antigos, os Upanishads, e busca o autoconhecimento para a realização da divindade interior e a compreensão da unidade da existência. Seus pilares incluem a unidade de toda a existência, a divindade inerente em cada ser humano (Atman) e a universalidade de todas as religiões como caminhos válidos para a mesma verdade. O objetivo final é a libertação do ciclo de morte e renascimento (samsara) e a união com a consciência divina universal (Brahman);

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