segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O Iniciado: Filosofia, Psicologia e Espiritualidade na Jornada Maçônica

 Charles Evaldo Boller

A iniciação é um dos temas mais intrigantes e complexos da filosofia maçônica. Embora seja possível descrevê-la por símbolos, ritos e cerimônias, sua essência não se deixa capturar inteiramente por nenhum desses elementos. Ela transcende os gestos, as palavras, os ornamentos e mesmo os espaços sagrados onde se realizam os trabalhos. A iniciação é, antes de tudo, uma experiência existencial e transformadora, que se inscreve no íntimo do ser humano como uma espécie de renascimento espiritual.

A questão que se levanta, portanto, é se a cerimônia maçônica tem, em si mesma, o poder mágico de transformar um homem em iniciado, ou se ela apenas fornece condições, um terreno fértil, para que cada um, por seus próprios méritos e disposição interior, alcance tal estado. A reflexão que se segue pretende explorar essa problemática em múltiplas dimensões, filosófica, psicológica, ética e espiritual, sempre dentro da cosmovisão maçônica, mas também dialogando com a tradição filosófica ocidental, com a psicanálise e com perspectivas contemporâneas da espiritualidade.

O Significado Profundo da Iniciação

O Nascimento em Outra Dimensão

A iniciação não pode ser reduzida a um ato externo, mecânico, operado por terceiros sobre um indivíduo. Ela é, antes, um nascimento em "outra dimensão" do ser. Assim como a criança nasce do ventre materno para o mundo físico, o iniciado nasce para o mundo espiritual por meio de uma gestação interior. A cerimônia, com seus símbolos, não é senão a representação visível de um processo invisível, que depende da abertura e da disposição íntima de quem a vivencia.

A tradição maçônica sempre enfatizou esse caráter de renascimento. "Ver a luz" significa libertar-se das sombras da ignorância e da dependência, saindo da menoridade espiritual para a maioridade, conceito que Immanuel Kant desenvolveu ao definir o Esclarecimento como a coragem de servir-se da própria razão sem a tutela de outrem. O iniciado é, assim, alguém que nasce de novo em espírito, liberto de tutores externos que monopolizam a verdade.

Intuição e Vivência

A iniciação não é um conceito que se ensina em livros, nem um conhecimento que se transmite verbalmente. Ela é, como afirmam os místicos, algo que se vive, sente e intui. É um mergulho no mistério, uma abertura para a experiência direta do divino em si mesmo. Por isso, todo ser racional tem a potência de se iniciar, mas nem todos atualizam essa potência. É preciso que o indivíduo deseje, com sinceridade, nascer de novo e reconhecer-se como templo vivo da divindade.

O Trabalho da Pedra Bruta

A Simbologia do Primeiro Grau

No primeiro grau da Maçonaria, o de Aprendiz, o homem é comparado a uma pedra bruta, disforme, pesada e cheia de impurezas. A tarefa inicial consiste em desbastar essa pedra, retirando-lhe as deformidades superficiais que simbolizam vícios, paixões desordenadas e hábitos degradantes. Esse processo, representado pela coluna da Força, corresponde a um esforço de caráter ético e disciplinar: aprender a controlar impulsos, a corrigir condutas e a cultivar virtudes básicas como a retidão e a honestidade.

A Leveza Conquistada

Ao polir a pedra, o homem sente-se mais leve: a culpa que o paralisava cede lugar à liberdade interior, e o peso das imperfeições vai se dissolvendo. Essa leveza não é apenas psicológica, mas também espiritual: o indivíduo percebe que é possível viver sem os fardos impostos pela cobiça, pelo ódio e pela ignorância. Entretanto, mesmo tendo avançado até este ponto, ainda não se pode falar, propriamente, em iniciação. Trata-se apenas da preparação do terreno, da limpeza do instrumento para um trabalho mais profundo.

A Estagnação Confortável

O Comodismo Ritualístico

Existem aqueles que, infelizmente, permanecem nesse estágio inicial, contentando-se com a observância de rituais externos sem jamais penetrar no sentido interior. Seguem fórmulas sem entender sua origem, significado ou propósito, aceitam usos e costumes sem reflexão crítica e terceirizam seu pensamento. Esse é um dos grandes perigos da vida maçônica: confundir a vivência simbólica com a repetição mecânica.

A Terceirização da Consciência

A crítica é contundente: o homem contemporâneo, assim como muitos maçons, prefere entregar sua liberdade de pensamento a especialistas e autoridades. A saúde é terceirizada ao médico, o direito ao tribunal, a fé ao sacerdote. O iniciado, porém, deve romper com esse padrão. A iniciação exige responsabilidade radical por si mesmo, autonomia intelectual e coragem de assumir a própria vida como obra em construção.

O Segundo Grau e a Jornada Interior

O Despertar da Razão

No segundo grau, simbolizado pela coluna da Beleza, o maçom é chamado a penetrar no interior da pedra, ou seja, a trabalhar seu mundo interno. Aqui a razão desempenha papel crucial: ela dá direção, fornece critérios, permite organizar os pensamentos. Mas, sozinha, não desperta a espiritualidade. A razão é bússola, não é energia vital. A iniciação, portanto, é um processo que a razão pode orientar, mas não produzir.

A Impossibilidade de Comprar a Iniciação

A iniciação não pode ser comprada, nem outorgada por um rito. Não existe fórmula secreta, palavra mágica ou sacramento capaz de conferir iluminação espiritual. A Maçonaria, enquanto escola simbólica, oferece apenas o espaço, a companhia dos irmãos, os instrumentos instrucionais e os símbolos que apontam o caminho. A travessia, contudo, é solitária. Cada um deve acender sua própria Luz interior.

A Psicologia da Iniciação: Freud e Maslow

Freud e a Luta Entre Id, Ego e Superego

Sigmund Freud, ao dividir a psique em Id, Ego e Superego, forneceu uma chave útil para compreender o drama da iniciação. O Id representa os impulsos primitivos e desejos imediatos, alinhados com as necessidades básicas descritas por Maslow em sua pirâmide. O Superego simboliza a instância moral e normativa, que exige disciplina, responsabilidade e conduta ética. O Ego, situado entre ambos, busca equilíbrio.

A iniciação maçônica pode ser lida como o fortalecimento do Superego, que se ergue contra a tirania do Id e modera o Ego. O iniciado aprende a controlar impulsos, superar a preguiça mental e assumir responsabilidade ética por seus atos. Esse processo, porém, é acompanhado de angústia, vergonha e culpa, pois a consciência moral, como um chicote, fere o homem que se percebe em desacordo com seu ideal.

Maslow e a Autorrealização

A caminhada iniciática também pode ser interpretada à luz de Maslow: parte das necessidades básicas de sobrevivência, avança pela busca de segurança, afeto e reconhecimento, até culminar na autorrealização. Iniciar-se é, justamente, alcançar esse patamar superior: viver de modo pleno, em harmonia consigo e com o universo. É uma explosão de energia vital que se manifesta em amor e serviço.

A Dor e o Mistério da Transformação

A Angústia Como Parto Espiritual

A iniciação não é indolor. Como todo nascimento, envolve sofrimento. A angústia surge quando o Ego é confrontado pelo Superego, quando os impulsos primitivos são colocados sob julgamento da consciência. É nesse confronto interno que o homem se transforma. A dor, portanto, não é sinal de fracasso, mas de gestação espiritual.

O Encontro com o Divino em Si

No ápice da angústia, o iniciado descobre que o divino não está fora, em templos de pedra ou nas palavras de líderes religiosos, mas dentro de si mesmo. O medo de Deus se dissipa, porque se percebe que Ele nunca condenou, nunca castigou, nunca exigiu penitências. A divindade se manifesta no mais puro amor. Essa descoberta é libertadora: o homem deixa de buscar fora aquilo que sempre esteve no íntimo.

A Liberdade do Iniciado

Fim da Lei Escrita, Início do Amor

O iniciado liberta-se das "leis divinas" impostas por instituições humanas para manipular e escravizar. Descobre que não há tribunal pós-morte nem castigos eternos: há apenas a vida, com seus dons e desafios, e um mistério além da morte que não precisa ser preenchido por fantasias de céu ou inferno. No lugar da lei, reina o amor. No lugar da obediência cega, floresce a liberdade.

A Adoração no Templo da Natureza

Ao perceber Deus dentro de si, o iniciado deixa de buscá-Lo em templos artificiais e passa a venerá-Lo nas praias, montanhas e estrelas. Reconhece que a verdadeira escritura está gravada no cosmos e na consciência, não em livros sagrados que limitam a divindade à linguagem humana. Já não pede coisas materiais nem perdão por falhas inevitáveis: vive em gratidão e plenitude.

O Amor como Princípio Supremo

Amar a Deus, a Si Mesmo e ao Próximo

O iniciado compreende que o amor é a lei suprema. Primeiro, amar a Deus, ou seja, reconhecer a divindade em si e em tudo. Segundo, amar a si mesmo, pois ninguém pode doar o que não possui. Terceiro, amar ao próximo como a si mesmo, estabelecendo fraternidade universal. A moral nasce, assim, de dentro para fora, como fruto espontâneo de uma espiritualidade viva.

O Poder Transformador do Amor

O amor não é um sentimento passivo, mas força ativa que resolve problemas humanos. Ele é o cimento que une a humanidade, a energia que move o iniciado a trabalhar pelo bem comum. Nesse sentido, a iniciação não é mero evento individual, mas tem alcance social e político: muda o mundo porque muda o homem.

Aplicações Práticas da Iniciação

Na Vida Pessoal

O iniciado aprende a viver com autenticidade, sem máscaras nem dependências. Assume responsabilidade por sua saúde, seu conhecimento, sua espiritualidade. Vive em liberdade interior, desfrutando cada instante como dádiva. Isso gera equilíbrio emocional, resiliência diante das crises e serenidade nas relações.

Na Vida Profissional

No trabalho, o iniciado aplica valores de honestidade, disciplina e criatividade. Deixa de buscar apenas lucro ou reconhecimento e passa a ver o labor como serviço. Desenvolve liderança ética, respeitando a dignidade dos colegas. A iniciação, nesse aspecto, é fonte de excelência profissional.

Na Vida Social

Como cidadão, o iniciado combate injustiças, recusa-se a seguir cegamente a massa e promove diálogo fraterno. É intolerante apenas com a intolerância, mas aberto ao pluralismo. Busca contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e livre. Sua ação política não é de fanatismo, mas de responsabilidade.

Na Vida Maçônica

Dentro da loja, o iniciado inspira os irmãos com exemplo de vivência real, não apenas formal. Participa dos debates filosóficos com profundidade, pratica a fraternidade sem discriminação, busca sempre a Luz. Sua presença torna a oficina viva e significativa. Ele não é mero repetidor de ritos, mas coautor de uma tradição dinâmica.

Conclusão

A iniciação maçônica não é mágica nem automática. Não reside na cerimônia, mas na disposição interior do homem que se abre para nascer de novo em espírito. Ela é dolorosa, porque exige ruptura com dependências, vícios e medos. Mas é também libertadora, porque conduz à descoberta do divino em si e da força suprema do amor. O iniciado, ao afirmar "Eu e o Pai somos um", não declara arrogância, mas celebra a comunhão íntima com a Fonte da vida. Esse é o renascimento, a essência da jornada maçônica, e a esperança de transformação da humanidade.

Bibliografia

1.      ANDERSON, James. Constituições de Anderson. Londres, 1723. Documento fundador da Maçonaria moderna, que inspira o ideal de liberdade, fraternidade e busca da verdade;

2.      ELIADE, Mircea. Ritos de Iniciação. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Contextualiza a iniciação maçônica dentro da tradição universal dos ritos de passagem, mostrando sua função antropológica;

3.      FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Oferece o modelo psicanalítico usado para interpretar a luta entre impulsos e consciência moral no processo iniciático;

4.      HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2012. Ajuda a refletir sobre o "nascer de novo" como abertura existencial ao ser, em chave fenomenológica;

5.      JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. Apresenta a dimensão arquetípica e simbólica da iniciação, como mergulho no inconsciente em busca do Self;

6.      KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é o Esclarecimento? Lisboa: Edições 70, 1985. Fundamenta a ideia de sair da menoridade e assumir a autonomia da razão, central para compreender a iniciação como libertação interior;

7.      MASLOW, Abraham. Motivação e Personalidade. Rio de Janeiro: LTC, 1970. Sua pirâmide de necessidades fornece um mapa psicológico para a caminhada do iniciado rumo à autorrealização;

8.      PIKE, Albert. Morals and Dogma. Charleston: Supreme Council, 1871. Obra clássica da Maçonaria, fornece reflexões simbólicas e filosóficas sobre os graus, úteis para compreender o papel da iniciação;

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