Charles Evaldo Boller
A iniciação é um dos temas mais intrigantes e complexos da
filosofia maçônica. Embora seja possível descrevê-la por símbolos, ritos e
cerimônias, sua essência não se deixa capturar inteiramente por nenhum desses
elementos. Ela transcende os gestos, as palavras, os ornamentos e mesmo os
espaços sagrados onde se realizam os trabalhos. A iniciação é, antes de tudo,
uma experiência existencial e transformadora, que se inscreve no íntimo do ser
humano como uma espécie de renascimento espiritual.
A questão que se levanta, portanto, é se a cerimônia maçônica
tem, em si mesma, o poder mágico de transformar um homem em iniciado, ou se ela
apenas fornece condições, um terreno fértil, para que cada um, por seus
próprios méritos e disposição interior, alcance tal estado. A reflexão que se
segue pretende explorar essa problemática em múltiplas dimensões, filosófica,
psicológica, ética e espiritual, sempre dentro da cosmovisão maçônica, mas
também dialogando com a tradição filosófica ocidental, com a psicanálise e com
perspectivas contemporâneas da espiritualidade.
O Significado Profundo da Iniciação
O Nascimento em Outra Dimensão
A iniciação não pode ser reduzida a um ato externo, mecânico,
operado por terceiros sobre um indivíduo. Ela é, antes, um nascimento em "outra
dimensão" do ser. Assim como a criança nasce do ventre materno para o
mundo físico, o iniciado nasce para o mundo espiritual por meio de uma
gestação interior. A cerimônia, com seus símbolos, não é senão a
representação visível de um processo invisível, que depende da abertura e da
disposição íntima de quem a vivencia.
A tradição maçônica sempre enfatizou esse caráter de
renascimento. "Ver a luz" significa libertar-se das sombras da
ignorância e da dependência, saindo da menoridade espiritual para a maioridade,
conceito que Immanuel Kant desenvolveu ao definir o Esclarecimento como a
coragem de servir-se da própria razão sem a tutela de outrem. O iniciado é,
assim, alguém que nasce de novo em espírito, liberto de tutores externos que
monopolizam a verdade.
Intuição e Vivência
A iniciação não é um conceito que se ensina em livros, nem um
conhecimento que se transmite verbalmente. Ela é, como afirmam os místicos, algo
que se vive, sente e intui. É um mergulho no mistério, uma abertura para a
experiência direta do divino em si mesmo. Por isso, todo ser racional tem a
potência de se iniciar, mas nem todos atualizam essa potência. É preciso
que o indivíduo deseje, com sinceridade, nascer de novo e reconhecer-se como
templo vivo da divindade.
O Trabalho da Pedra Bruta
A Simbologia do Primeiro Grau
No primeiro grau da Maçonaria, o de Aprendiz, o homem é
comparado a uma pedra bruta, disforme, pesada e cheia de impurezas. A tarefa
inicial consiste em desbastar essa pedra, retirando-lhe as deformidades
superficiais que simbolizam vícios, paixões desordenadas e hábitos degradantes.
Esse processo, representado pela coluna da Força, corresponde a um esforço de
caráter ético e disciplinar: aprender a controlar impulsos, a corrigir condutas
e a cultivar virtudes básicas como a retidão e a honestidade.
A Leveza Conquistada
Ao polir a pedra, o homem sente-se mais leve: a culpa que o
paralisava cede lugar à liberdade interior, e o peso das imperfeições vai se
dissolvendo. Essa leveza não é apenas psicológica, mas também espiritual: o
indivíduo percebe que é possível viver sem os fardos impostos pela cobiça, pelo
ódio e pela ignorância. Entretanto, mesmo tendo avançado até este ponto, ainda
não se pode falar, propriamente, em iniciação. Trata-se apenas da preparação do
terreno, da limpeza do instrumento para um trabalho mais profundo.
A Estagnação Confortável
O Comodismo Ritualístico
Existem aqueles que, infelizmente, permanecem nesse estágio
inicial, contentando-se com a observância de rituais externos sem jamais
penetrar no sentido interior. Seguem fórmulas sem entender sua origem,
significado ou propósito, aceitam usos e costumes sem reflexão crítica e
terceirizam seu pensamento. Esse é um dos grandes perigos da vida maçônica:
confundir a vivência simbólica com a repetição mecânica.
A Terceirização da Consciência
A crítica é contundente: o homem contemporâneo, assim como
muitos maçons, prefere entregar sua liberdade de pensamento a especialistas e
autoridades. A saúde é terceirizada ao médico, o direito ao tribunal, a fé ao
sacerdote. O iniciado, porém, deve romper com esse padrão. A iniciação exige
responsabilidade radical por si mesmo, autonomia intelectual e coragem de assumir a própria vida como obra em construção.
O Segundo Grau e a Jornada Interior
O Despertar da Razão
No segundo grau, simbolizado pela coluna da Beleza, o maçom é
chamado a penetrar no interior da pedra, ou seja, a trabalhar seu mundo
interno. Aqui a razão desempenha papel crucial: ela dá direção, fornece
critérios, permite organizar os pensamentos. Mas, sozinha, não desperta a
espiritualidade. A razão é bússola, não é energia vital. A iniciação,
portanto, é um processo que a razão pode orientar, mas não produzir.
A Impossibilidade de Comprar a Iniciação
A iniciação não pode ser comprada, nem outorgada por um rito. Não
existe fórmula secreta, palavra mágica ou sacramento capaz de conferir
iluminação espiritual. A Maçonaria, enquanto escola simbólica, oferece
apenas o espaço, a companhia dos irmãos, os instrumentos instrucionais e os
símbolos que apontam o caminho. A travessia, contudo, é solitária. Cada um
deve acender sua própria Luz interior.
A Psicologia da Iniciação: Freud e Maslow
Freud e a Luta Entre Id, Ego e Superego
Sigmund Freud, ao dividir a psique em Id, Ego e Superego, forneceu
uma chave útil para compreender o drama da iniciação. O Id representa os
impulsos primitivos e desejos imediatos, alinhados com as necessidades básicas
descritas por Maslow em sua pirâmide. O Superego simboliza a instância moral e
normativa, que exige disciplina, responsabilidade e conduta ética. O Ego,
situado entre ambos, busca equilíbrio.
A iniciação maçônica pode ser lida como o fortalecimento do
Superego, que se ergue contra a tirania do Id e modera o Ego. O iniciado
aprende a controlar impulsos, superar a preguiça mental e assumir
responsabilidade ética por seus atos. Esse processo, porém, é acompanhado de
angústia, vergonha e culpa, pois a consciência moral, como um chicote, fere o
homem que se percebe em desacordo com seu ideal.
Maslow e a Autorrealização
A caminhada iniciática também pode ser interpretada à luz de
Maslow: parte das necessidades básicas de sobrevivência, avança pela busca de
segurança, afeto e reconhecimento, até culminar na autorrealização. Iniciar-se
é, justamente, alcançar esse patamar superior: viver de modo pleno, em harmonia
consigo e com o universo. É uma explosão de energia vital que se manifesta em
amor e serviço.
A Dor e o Mistério da Transformação
A Angústia Como Parto Espiritual
A iniciação não é indolor. Como todo nascimento, envolve
sofrimento. A angústia surge quando o Ego é confrontado pelo Superego, quando
os impulsos primitivos são colocados sob julgamento da consciência. É nesse
confronto interno que o homem se transforma. A dor, portanto, não é sinal de
fracasso, mas de gestação espiritual.
O Encontro com o Divino em Si
No ápice da angústia, o iniciado descobre que o divino não está
fora, em templos de pedra ou nas palavras de líderes religiosos, mas dentro
de si mesmo. O medo de Deus se dissipa, porque se percebe que Ele nunca
condenou, nunca castigou, nunca exigiu penitências. A divindade se manifesta no
mais puro amor. Essa descoberta é libertadora: o homem deixa de buscar fora
aquilo que sempre esteve no íntimo.
A Liberdade do Iniciado
Fim da Lei Escrita, Início do Amor
O iniciado liberta-se das "leis divinas" impostas por
instituições humanas para manipular e escravizar. Descobre que não há tribunal
pós-morte nem castigos eternos: há apenas a vida, com seus dons e desafios, e
um mistério além da morte que não precisa ser preenchido por fantasias de céu
ou inferno. No lugar da lei, reina o amor. No lugar da obediência cega, floresce a liberdade.
A Adoração no Templo da Natureza
Ao perceber Deus dentro de si, o iniciado deixa de buscá-Lo em
templos artificiais e passa a venerá-Lo nas praias, montanhas e estrelas.
Reconhece que a verdadeira escritura está gravada no cosmos e na consciência,
não em livros sagrados que limitam a divindade à linguagem humana. Já não pede
coisas materiais nem perdão por falhas inevitáveis: vive em gratidão e
plenitude.
O Amor como Princípio Supremo
Amar a Deus, a Si Mesmo e ao Próximo
O iniciado compreende que o amor é a lei suprema.
Primeiro, amar a Deus, ou seja,
reconhecer a divindade em si e em tudo. Segundo, amar
a si mesmo, pois ninguém pode doar o que não possui. Terceiro, amar ao próximo como a si mesmo, estabelecendo
fraternidade universal. A moral nasce, assim, de dentro para fora, como fruto
espontâneo de uma espiritualidade viva.
O Poder Transformador do Amor
O amor não é um sentimento passivo, mas força ativa que
resolve problemas humanos. Ele é o cimento que une a humanidade, a energia que
move o iniciado a trabalhar pelo bem comum. Nesse sentido, a iniciação não é
mero evento individual, mas tem alcance social e político: muda o mundo porque
muda o homem.
Aplicações Práticas da Iniciação
Na Vida Pessoal
O iniciado aprende a viver com autenticidade, sem máscaras nem
dependências. Assume responsabilidade por sua saúde, seu conhecimento, sua
espiritualidade. Vive em liberdade interior, desfrutando cada instante como
dádiva. Isso gera equilíbrio emocional, resiliência diante das crises e
serenidade nas relações.
Na Vida Profissional
No trabalho, o iniciado aplica valores de honestidade,
disciplina e criatividade. Deixa de buscar apenas lucro ou reconhecimento e
passa a ver o labor como serviço. Desenvolve liderança ética, respeitando a
dignidade dos colegas. A iniciação, nesse aspecto, é fonte de excelência
profissional.
Na Vida Social
Como cidadão, o iniciado combate injustiças, recusa-se a seguir
cegamente a massa e promove diálogo fraterno. É intolerante apenas com a
intolerância, mas aberto ao pluralismo. Busca contribuir para a construção de
uma sociedade mais justa e livre. Sua ação política não é de fanatismo, mas de
responsabilidade.
Na Vida Maçônica
Dentro da loja, o iniciado inspira os irmãos com exemplo de
vivência real, não apenas formal. Participa dos debates filosóficos com
profundidade, pratica a fraternidade sem discriminação, busca sempre a Luz. Sua
presença torna a oficina viva e significativa. Ele não é mero repetidor de
ritos, mas coautor de uma tradição dinâmica.
Conclusão
A iniciação maçônica não é mágica nem automática. Não reside na
cerimônia, mas na disposição interior do homem que se abre para nascer de
novo em espírito. Ela é dolorosa, porque exige ruptura com dependências,
vícios e medos. Mas é também libertadora, porque conduz à descoberta do
divino em si e da força suprema do amor. O iniciado, ao afirmar "Eu e
o Pai somos um", não declara arrogância, mas celebra a comunhão íntima com
a Fonte da vida. Esse é o renascimento, a
essência da jornada maçônica, e a esperança de transformação da humanidade.
Bibliografia
1.
ANDERSON, James. Constituições de Anderson.
Londres, 1723. Documento fundador da Maçonaria moderna, que inspira o ideal de
liberdade, fraternidade e busca da verdade;
2.
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Martins Fontes, 1992. Contextualiza a iniciação maçônica dentro da tradição
universal dos ritos de passagem, mostrando sua função antropológica;
3.
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. Rio de Janeiro:
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impulsos e consciência moral no processo iniciático;
4.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis:
Vozes, 2012. Ajuda a refletir sobre o "nascer de novo" como abertura
existencial ao ser, em chave fenomenológica;
5.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. Apresenta a dimensão arquetípica e
simbólica da iniciação, como mergulho no inconsciente em busca do Self;
6.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é o
Esclarecimento? Lisboa: Edições 70, 1985. Fundamenta a ideia de sair da
menoridade e assumir a autonomia da razão, central para compreender a iniciação
como libertação interior;
7.
MASLOW, Abraham. Motivação e Personalidade. Rio
de Janeiro: LTC, 1970. Sua pirâmide de necessidades fornece um mapa psicológico
para a caminhada do iniciado rumo à autorrealização;
8.
PIKE,
Albert. Morals and Dogma. Charleston: Supreme Council, 1871. Obra
clássica da Maçonaria, fornece reflexões simbólicas e filosóficas sobre os
graus, úteis para compreender o papel da iniciação;
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