Charles Evaldo Boller
Preâmbulo de um Não-filósofo
Antes, os prolegômenos[1]:
não sou filósofo, ou, pelo menos, não o sou no sentido estrito com que a
tradição acadêmica reserva o termo para aqueles que, em labor paciente e
sistemático, produzem pensamento original e estruturado nas molduras
conceituais herdadas da Grécia clássica. Sou, antes, um engenheiro eletricista,
homem de ofício técnico, acostumado ao cálculo, à precisão e ao determinismo
dos circuitos. Minha formação se ancorou, durante décadas, naquilo que
poderíamos chamar de paradigma cartesiano: raciocínio lógico, decomposição dos
problemas em partes menores e mensuração rigorosa dos fenômenos observados.
Essa moldura mental, embora poderosa para resolver problemas de
engenharia, impôs-me limitações quando tentei compreender a complexidade do
Universo e da existência. Por muito tempo, julguei que medir e quantificar
fosse não apenas o caminho mais seguro, mas o único legítimo para o
conhecimento verdadeiro.
O grande Lord Kelvin ecoava em minha mente como um axioma
fundador: "Quando se pode medir
aquilo de que se está falando e exprimi-lo por números, sabe-se algo a
respeito; mas quando não é possível exprimi-lo por número, o conhecimento é
escasso e de natureza insatisfatória. Pode ser o início do conhecimento, mas
não faz avançar senão muito pouco o espírito para o estágio da ciência"[2].
Na engenharia, essa máxima é quase um mandamento. Mas ao longo
dos anos, e sobretudo a partir da minha vivência na Maçonaria, especialmente
nos graus filosóficos do Rito Escocês Antigo e Aceito, atualmente no grau 33,
percebi que a existência não cabe apenas no compasso das grandezas
mensuráveis.
A Maçonaria não é um empreendimento solitário: é a obra de uma
fraternidade que se constrói mutuamente, em diálogo e trabalho conjunto. Esse
contato com irmãos, com suas experiências, saberes e perspectivas, abriu-me
para caminhos que transcendem o físico, o mensurável e até mesmo o estritamente
lógico.
A Luta Contra o Determinismo Cartesiano
A primeira batalha travada foi interna: desapegar-me, ainda que
parcialmente, do condicionamento determinista. No ofício técnico, não se avança
sem modelos matemáticos robustos, sem medições precisas, sem hipóteses
testáveis. Mas no mundo do ser, naquilo que diz respeito à consciência, à
ética, à transcendência, essa abordagem se mostra incompleta.
O engenheiro que fui durante décadas ainda está em mim, mas hoje
o vejo como apenas uma faceta do meu modo de pensar. É necessário, e não apenas
útil, abrir-se a outras dimensões do pensamento. Dimensões onde o ensaio
controlado não é possível, onde não há repetibilidade laboratorial, onde o
objeto de estudo é, ele mesmo, o sujeito que observa.
Neste sentido, compreendo agora que a experiência não se reduz
ao que é sensível e mensurável. Ela pode ser interna, subjetiva, intuitiva. E
aqui surge o segundo gigante em meus ombros: Willard Van Orman Quine.
Quine, embora empirista, advertia que "o tribunal de qualquer sistema teórico é a experiência"[3].
Essa sentença, aparentemente alinhada com Kelvin, guarda uma sutileza: a
experiência não é apenas a verificação laboratorial, mas todo o campo de
interações que põem à prova nossas ideias.
O Carvalho e o Cosmos
A imagem que melhor expressa meu amadurecimento intelectual é a
da semente de carvalho. O conhecimento nasce como uma semente oculta, rompe a
terra, lança o broto e cresce em complexidade até atingir a majestade de uma
árvore adulta. No paradigma mecanicista, o carvalho seria visto como um sistema
fechado: raiz, tronco, galhos e folhas em interação interna.
Mas, no meu atual estado de compreensão, percebo-o como parte de
uma teia cósmica: interage com o solo, com o clima, com outros organismos, com
fluxos energéticos e até, por mais "absurdo
científico" que possa parecer, com realidades a anos-luz de distância.
Não posso "provar" isso
segundo os rigores de Kelvin, mas a minha intuição me diz que é assim.
O mecanicismo cartesiano me ensinou a dividir o "problemão" em probleminhas, na
solução de problemas complexos. Essa estratégia é eficiente, mas muitas vezes
nos faz perder de vista o todo. O Universo não se fragmenta para caber em nossas
gavetas conceituais; nós é que o fragmentamos para tentar compreendê-lo porque
nos parece caótico.
E, talvez, aquilo que para nós se apresenta como caos seja, para
o Grande Arquiteto do Universo, a mais pura e simples lógica, escrita não em
linhas retas, mas em curvas, elipses, assimetrias e formas orgânicas.
O Papel da Intuição
Foi na Maçonaria que melhor entendi o valor e a força da
intuição. Intuição não como misticismo nebuloso, mas como um fenômeno cognitivo
real: o súbito aparecimento de uma ideia ou solução sem que se tenha
consciência dos passos intermediários.
Essa experiência é comum em debates filosóficos maçônicos:
inicia-se uma reflexão, e, de repente, surge a resposta, num processo de
maiêutica[4], como
se viesse de um lugar pré-existente dentro de meu cérebro. A ciência cognitiva
moderna sugere que esses "insights"
resultam de processos inconscientes de associação e integração de informações,
que emergem à consciência quando alcançam certo limiar de coerência interna.
Na Maçonaria, esses momentos são potencializados pela troca
fraterna: as ideias dos outros servem de gatilho para novas conexões internas.
É nesse sentido que afirmo: não sou filósofo, mas faço parte de um organismo
vivo, a Arte Real, que me possibilita pensar filosoficamente.
Kant, Aufklärung e a Jornada Maçônica
Meu gosto por Immanuel Kant nasceu dessa vivência. Kant, em sua
célebre definição de Aufklärung (Ilustração ou Esclarecimento[5]),
conclama o homem a sair da menoridade intelectual, isto é, a ter a coragem de
usar o próprio entendimento sem a tutela de outro[6].
A cerimônia de iniciação maçônica dramatiza exatamente essa
passagem: o neófito, até então conduzido, aprende a caminhar com luz própria.
No meu caso, o grau de companheiro
maçom do Rito
Escocês Antigo e Aceito foi especialmente revelador nesse sentido, pois
ali compreendi que a razão é indispensável, mas que não basta: ela deve
dialogar com a metafísica, entendida não como dogma, mas como reflexão sobre as
condições últimas da realidade.
O Ponto, o Círculo e o Uno
Entre os símbolos maçônicos, poucos são tão ricos quanto o ponto
no centro de um círculo. Ele representa simultaneamente a pluralidade contida
na unidade e a unidade que se expressa na pluralidade. Essa é uma lição que
atravessa desde a lógica aristotélica ("Todo A é B", "Algum
A é B"[7]) até concepções
espirituais como a do Uno neoplatônico[8].
No compasso desse símbolo, a Maçonaria me ensinou que cada
indivíduo é um ponto, e todos juntos formam um círculo cujo centro é o Grande
Arquiteto do Universo. A busca não é definir dogmaticamente a essência desse
centro, tarefa que inevitavelmente degenera em sectarismo[9],
mas manter viva a intenção de religar-se a Ele pela via do conhecimento e da
virtude.
Número, Símbolo e Realidade
O número, para mim, deixou de ser apenas uma ferramenta técnica
para tornar-se uma chave ontológica[10].
Pitágoras já afirmara: "O ser é o
número"[11]. Em sua perspectiva, o
número não apenas mede, mas é a estrutura íntima da realidade.
Essa ideia ressoa com a prática maçônica: nossos ritos, símbolos
e alegorias estão impregnados de proporções, sequências e repetições que
refletem uma ordem matemática subjacente. O número é, aqui, ponte entre o
sensível e o inteligível.
E a Aventura Continua
Hoje sei que o conhecimento não é algo que simplesmente
adquirimos; ele é algo que despertamos. Esse despertar não é ato solitário, mas
social, construído no diálogo, no embate de ideias e no compartilhamento de
experiências.
Se antes eu acreditava que todo saber deveria ser medido, hoje
compreendo que há dimensões do real que se medem não em números, mas em
profundidade de sentido. E é exatamente aí que a Maçonaria, com sua rica
tapeçaria de símbolos, ritos e ensinamentos, se revela não apenas como uma
escola de moral, mas como um laboratório vivo de conhecimento.
A aventura, portanto, não se encerra: como o carvalho, continuo
crescendo em direção à Luz, mas com raízes que buscam sempre mais fundo. E,
nesse caminho, a matemática e a metafísica, Kelvin e Kant, Quine e Pitágoras,
ciência e intuição, todos se encontram na mesma oficina: a oficina do espírito humano.
Bibliografia
1.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução
Valerio Rohden. São Paulo: Nova Cultural, 2001. Obra fundamental para
compreender a dedução transcendental e o papel da razão no conhecimento.
2.
QUINE, W. V. O. A Palavra e o Objeto. São Paulo:
Editora da USP, 2011. Desenvolve a ideia da experiência como tribunal das
teorias, relativizando a separação analítico/sintético.
3.
KELVIN,
Lord (William Thomson). Popular Lectures and Addresses. Londres:
Macmillan, 1891. Reunião de palestras onde o autor reforça a importância da
mensuração para a ciência.
4.
PITÁGORAS e a tradição pitagórica. Os Versos de
Ouro. Vários editores. Fonte clássica sobre a concepção pitagórica de número e
harmonia universal.
5.
HALL,
Manly P. The Secret Teachings of All Ages. Los Angeles: Philosophical
Research Society, 1928. Exploração abrangente dos símbolos maçônicos e suas
raízes esotéricas.
[1] Prolegômeno,
em termos gerais, refere-se a uma introdução ou conjunto de comentários
preliminares que preparam o leitor para o conteúdo principal de uma obra.
Originado do grego "prolegómena" (coisas ditas antes), o termo é
usado em contextos filosóficos, acadêmicos e teológicos para descrever uma
seção inicial que apresenta os princípios ou proposições fundamentais de um
tema;
[2]
LORD KELVIN (William Thomson). Discurso na Instituição Real, Londres, 1883;
[3] QUINE, Willard Van Orman. Word and
Object. Cambridge: MIT Press, 1960;
[4] Maiêutica,
no contexto filosófico de Sócrates, é a arte de "dar à luz" o
conhecimento, ou seja, ajudar uma pessoa a descobrir e formular seus próprios
conceitos e ideias através de um diálogo que envolve perguntas e reflexões. O
termo, derivado do grego "maieutiké", significa "arte de
partejar". Sócrates se comparava a uma parteira, não no sentido de dar à
luz crianças, mas de auxiliar no "nascimento" de ideias e pensamentos
na mente de seus interlocutores. Ele acreditava que o conhecimento já reside em
cada indivíduo, e que o papel do filósofo é facilitar esse processo de
descoberta através de perguntas que levam à reflexão e ao questionamento;
[5] Em
Kant, o Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do ser humano da sua menoridade,
ou seja, da incapacidade de usar o próprio entendimento sem a direção de
outrem. Kant associa o Esclarecimento à liberdade, mas não à liberdade
arbitrária, e sim à liberdade de usar a própria razão, tanto em público quanto
em privado, para tomar decisões e agir de forma autônoma;
[6]
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento? (1784);
[7] Em
lógica, "Todo A é B" e "Algum A é B" são duas
proposições categóricas com significados distintos. "Todo A é B"
afirma que a totalidade do conjunto A está contida no conjunto B, enquanto
"Algum A é B" afirma que pelo menos um elemento do conjunto A também
pertence ao conjunto B;
[8] O Uno
neoplatônico é um conceito central no Neoplatonismo, referindo-se a um
princípio supremo e incognoscível, fonte de toda a realidade e unidade
absoluta. É visto como a origem de tudo e a meta final de todos os seres,
transcendendo o ser e a própria noção de existência;
[9] O
termo sectarismo (usado geralmente com conotação negativa e pejorativa)
vem do latim sectariu, que em sentido estrito se aplica ao seguidor de uma
seita, mas pode também denotar zelo ou apego exagerado a um ponto de vista;
visão estreita, intolerante ou intransigente;
[10] Ontológico
é um termo relacionado à ontologia, um ramo da filosofia que estuda a natureza
do ser, a existência e a realidade. Em termos mais simples, ontologia busca
entender o que existe e como as coisas existem;
[11]
PITÁGORAS. Fragmentos atribuídos na tradição pitagórica;
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