terça-feira, 12 de agosto de 2025

Prolegômenos: Versão Expandida e Anotada

 Charles Evaldo Boller

Preâmbulo de um Não-filósofo

Antes, os prolegômenos[1]: não sou filósofo, ou, pelo menos, não o sou no sentido estrito com que a tradição acadêmica reserva o termo para aqueles que, em labor paciente e sistemático, produzem pensamento original e estruturado nas molduras conceituais herdadas da Grécia clássica. Sou, antes, um engenheiro eletricista, homem de ofício técnico, acostumado ao cálculo, à precisão e ao determinismo dos circuitos. Minha formação se ancorou, durante décadas, naquilo que poderíamos chamar de paradigma cartesiano: raciocínio lógico, decomposição dos problemas em partes menores e mensuração rigorosa dos fenômenos observados.

Essa moldura mental, embora poderosa para resolver problemas de engenharia, impôs-me limitações quando tentei compreender a complexidade do Universo e da existência. Por muito tempo, julguei que medir e quantificar fosse não apenas o caminho mais seguro, mas o único legítimo para o conhecimento verdadeiro.

O grande Lord Kelvin ecoava em minha mente como um axioma fundador: "Quando se pode medir aquilo de que se está falando e exprimi-lo por números, sabe-se algo a respeito; mas quando não é possível exprimi-lo por número, o conhecimento é escasso e de natureza insatisfatória. Pode ser o início do conhecimento, mas não faz avançar senão muito pouco o espírito para o estágio da ciência"[2].

Na engenharia, essa máxima é quase um mandamento. Mas ao longo dos anos, e sobretudo a partir da minha vivência na Maçonaria, especialmente nos graus filosóficos do Rito Escocês Antigo e Aceito, atualmente no grau 33, percebi que a existência não cabe apenas no compasso das grandezas mensuráveis.

A Maçonaria não é um empreendimento solitário: é a obra de uma fraternidade que se constrói mutuamente, em diálogo e trabalho conjunto. Esse contato com irmãos, com suas experiências, saberes e perspectivas, abriu-me para caminhos que transcendem o físico, o mensurável e até mesmo o estritamente lógico.

A Luta Contra o Determinismo Cartesiano

A primeira batalha travada foi interna: desapegar-me, ainda que parcialmente, do condicionamento determinista. No ofício técnico, não se avança sem modelos matemáticos robustos, sem medições precisas, sem hipóteses testáveis. Mas no mundo do ser, naquilo que diz respeito à consciência, à ética, à transcendência, essa abordagem se mostra incompleta.

O engenheiro que fui durante décadas ainda está em mim, mas hoje o vejo como apenas uma faceta do meu modo de pensar. É necessário, e não apenas útil, abrir-se a outras dimensões do pensamento. Dimensões onde o ensaio controlado não é possível, onde não há repetibilidade laboratorial, onde o objeto de estudo é, ele mesmo, o sujeito que observa.

Neste sentido, compreendo agora que a experiência não se reduz ao que é sensível e mensurável. Ela pode ser interna, subjetiva, intuitiva. E aqui surge o segundo gigante em meus ombros: Willard Van Orman Quine.

Quine, embora empirista, advertia que "o tribunal de qualquer sistema teórico é a experiência"[3]. Essa sentença, aparentemente alinhada com Kelvin, guarda uma sutileza: a experiência não é apenas a verificação laboratorial, mas todo o campo de interações que põem à prova nossas ideias.

O Carvalho e o Cosmos

A imagem que melhor expressa meu amadurecimento intelectual é a da semente de carvalho. O conhecimento nasce como uma semente oculta, rompe a terra, lança o broto e cresce em complexidade até atingir a majestade de uma árvore adulta. No paradigma mecanicista, o carvalho seria visto como um sistema fechado: raiz, tronco, galhos e folhas em interação interna.

Mas, no meu atual estado de compreensão, percebo-o como parte de uma teia cósmica: interage com o solo, com o clima, com outros organismos, com fluxos energéticos e até, por mais "absurdo científico" que possa parecer, com realidades a anos-luz de distância. Não posso "provar" isso segundo os rigores de Kelvin, mas a minha intuição me diz que é assim.

O mecanicismo cartesiano me ensinou a dividir o "problemão" em probleminhas, na solução de problemas complexos. Essa estratégia é eficiente, mas muitas vezes nos faz perder de vista o todo. O Universo não se fragmenta para caber em nossas gavetas conceituais; nós é que o fragmentamos para tentar compreendê-lo porque nos parece caótico.

E, talvez, aquilo que para nós se apresenta como caos seja, para o Grande Arquiteto do Universo, a mais pura e simples lógica, escrita não em linhas retas, mas em curvas, elipses, assimetrias e formas orgânicas.

O Papel da Intuição

Foi na Maçonaria que melhor entendi o valor e a força da intuição. Intuição não como misticismo nebuloso, mas como um fenômeno cognitivo real: o súbito aparecimento de uma ideia ou solução sem que se tenha consciência dos passos intermediários.

Essa experiência é comum em debates filosóficos maçônicos: inicia-se uma reflexão, e, de repente, surge a resposta, num processo de maiêutica[4], como se viesse de um lugar pré-existente dentro de meu cérebro. A ciência cognitiva moderna sugere que esses "insights" resultam de processos inconscientes de associação e integração de informações, que emergem à consciência quando alcançam certo limiar de coerência interna.

Na Maçonaria, esses momentos são potencializados pela troca fraterna: as ideias dos outros servem de gatilho para novas conexões internas. É nesse sentido que afirmo: não sou filósofo, mas faço parte de um organismo vivo, a Arte Real, que me possibilita pensar filosoficamente.

Kant, Aufklärung e a Jornada Maçônica

Meu gosto por Immanuel Kant nasceu dessa vivência. Kant, em sua célebre definição de Aufklärung (Ilustração ou Esclarecimento[5]), conclama o homem a sair da menoridade intelectual, isto é, a ter a coragem de usar o próprio entendimento sem a tutela de outro[6].

A cerimônia de iniciação maçônica dramatiza exatamente essa passagem: o neófito, até então conduzido, aprende a caminhar com luz própria. No meu caso, o grau de companheiro maçom do Rito Escocês Antigo e Aceito foi especialmente revelador nesse sentido, pois ali compreendi que a razão é indispensável, mas que não basta: ela deve dialogar com a metafísica, entendida não como dogma, mas como reflexão sobre as condições últimas da realidade.

O Ponto, o Círculo e o Uno

Entre os símbolos maçônicos, poucos são tão ricos quanto o ponto no centro de um círculo. Ele representa simultaneamente a pluralidade contida na unidade e a unidade que se expressa na pluralidade. Essa é uma lição que atravessa desde a lógica aristotélica ("Todo A é B", "Algum A é B"[7]) até concepções espirituais como a do Uno neoplatônico[8].

No compasso desse símbolo, a Maçonaria me ensinou que cada indivíduo é um ponto, e todos juntos formam um círculo cujo centro é o Grande Arquiteto do Universo. A busca não é definir dogmaticamente a essência desse centro, tarefa que inevitavelmente degenera em sectarismo[9], mas manter viva a intenção de religar-se a Ele pela via do conhecimento e da virtude.

Número, Símbolo e Realidade

O número, para mim, deixou de ser apenas uma ferramenta técnica para tornar-se uma chave ontológica[10]. Pitágoras já afirmara: "O ser é o número"[11]. Em sua perspectiva, o número não apenas mede, mas é a estrutura íntima da realidade.

Essa ideia ressoa com a prática maçônica: nossos ritos, símbolos e alegorias estão impregnados de proporções, sequências e repetições que refletem uma ordem matemática subjacente. O número é, aqui, ponte entre o sensível e o inteligível.

E a Aventura Continua

Hoje sei que o conhecimento não é algo que simplesmente adquirimos; ele é algo que despertamos. Esse despertar não é ato solitário, mas social, construído no diálogo, no embate de ideias e no compartilhamento de experiências.

Se antes eu acreditava que todo saber deveria ser medido, hoje compreendo que há dimensões do real que se medem não em números, mas em profundidade de sentido. E é exatamente aí que a Maçonaria, com sua rica tapeçaria de símbolos, ritos e ensinamentos, se revela não apenas como uma escola de moral, mas como um laboratório vivo de conhecimento.

A aventura, portanto, não se encerra: como o carvalho, continuo crescendo em direção à Luz, mas com raízes que buscam sempre mais fundo. E, nesse caminho, a matemática e a metafísica, Kelvin e Kant, Quine e Pitágoras, ciência e intuição, todos se encontram na mesma oficina: a oficina do espírito humano.

Bibliografia

1.      KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução Valerio Rohden. São Paulo: Nova Cultural, 2001. Obra fundamental para compreender a dedução transcendental e o papel da razão no conhecimento.

2.      QUINE, W. V. O. A Palavra e o Objeto. São Paulo: Editora da USP, 2011. Desenvolve a ideia da experiência como tribunal das teorias, relativizando a separação analítico/sintético.

3.      KELVIN, Lord (William Thomson). Popular Lectures and Addresses. Londres: Macmillan, 1891. Reunião de palestras onde o autor reforça a importância da mensuração para a ciência.

4.      PITÁGORAS e a tradição pitagórica. Os Versos de Ouro. Vários editores. Fonte clássica sobre a concepção pitagórica de número e harmonia universal.

5.      HALL, Manly P. The Secret Teachings of All Ages. Los Angeles: Philosophical Research Society, 1928. Exploração abrangente dos símbolos maçônicos e suas raízes esotéricas.



[1] Prolegômeno, em termos gerais, refere-se a uma introdução ou conjunto de comentários preliminares que preparam o leitor para o conteúdo principal de uma obra. Originado do grego "prolegómena" (coisas ditas antes), o termo é usado em contextos filosóficos, acadêmicos e teológicos para descrever uma seção inicial que apresenta os princípios ou proposições fundamentais de um tema;

[2] LORD KELVIN (William Thomson). Discurso na Instituição Real, Londres, 1883;

[3] QUINE, Willard Van Orman. Word and Object. Cambridge: MIT Press, 1960;

[4] Maiêutica, no contexto filosófico de Sócrates, é a arte de "dar à luz" o conhecimento, ou seja, ajudar uma pessoa a descobrir e formular seus próprios conceitos e ideias através de um diálogo que envolve perguntas e reflexões. O termo, derivado do grego "maieutiké", significa "arte de partejar". Sócrates se comparava a uma parteira, não no sentido de dar à luz crianças, mas de auxiliar no "nascimento" de ideias e pensamentos na mente de seus interlocutores. Ele acreditava que o conhecimento já reside em cada indivíduo, e que o papel do filósofo é facilitar esse processo de descoberta através de perguntas que levam à reflexão e ao questionamento;

[5] Em Kant, o Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do ser humano da sua menoridade, ou seja, da incapacidade de usar o próprio entendimento sem a direção de outrem. Kant associa o Esclarecimento à liberdade, mas não à liberdade arbitrária, e sim à liberdade de usar a própria razão, tanto em público quanto em privado, para tomar decisões e agir de forma autônoma;

[6] KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento? (1784);

[7] Em lógica, "Todo A é B" e "Algum A é B" são duas proposições categóricas com significados distintos. "Todo A é B" afirma que a totalidade do conjunto A está contida no conjunto B, enquanto "Algum A é B" afirma que pelo menos um elemento do conjunto A também pertence ao conjunto B;

[8] O Uno neoplatônico é um conceito central no Neoplatonismo, referindo-se a um princípio supremo e incognoscível, fonte de toda a realidade e unidade absoluta. É visto como a origem de tudo e a meta final de todos os seres, transcendendo o ser e a própria noção de existência;

[9] O termo sectarismo (usado geralmente com conotação negativa e pejorativa) vem do latim sectariu, que em sentido estrito se aplica ao seguidor de uma seita, mas pode também denotar zelo ou apego exagerado a um ponto de vista; visão estreita, intolerante ou intransigente;

[10] Ontológico é um termo relacionado à ontologia, um ramo da filosofia que estuda a natureza do ser, a existência e a realidade. Em termos mais simples, ontologia busca entender o que existe e como as coisas existem;

[11] PITÁGORAS. Fragmentos atribuídos na tradição pitagórica;

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