Charles Evaldo Boller
Razão, Fé e Maçonaria
A Maçonaria, como escola iniciática, propõe uma rara e
sofisticada síntese entre razão e fé. Pela razão, o homem define, organiza e
interpreta a fé; pela fé, o homem dá sentido último à razão e orienta a sua
ação moral. Embora não seja possível ver certas assertivas ditadas pela crença,
pois a fé é, essencialmente, a confiança no invisível, o maçom a adota como
princípio fundamental, segundo condição precípua para ser aceito na ordem maçônica,
a crença em uma vida futura após a morte física. Essa exigência não se vincula
a dogma confessional, mas a um entendimento espiritual que transcende
denominações religiosas.
Platão, ao registrar o diálogo final de Sócrates, pouco antes da
execução, preservou uma das mais coerentes reflexões sobre o tema: "Fugir à morte não é difícil. Bem mais
difícil é fugir à maldade, pois mais célere que a morte é a malvadez. Temer a
morte é acreditar ser sábio e não o ser, posto que é acreditar saber aquilo que
não se sabe. Ela só pode significar: ou aquele que morre é reduzido ao nada,
como uma longa noite de sono sem sonhos, ou é a passagem daqui para outro
lugar; e, se é verdade, como se diz, que todos os mortos aí se reúnem, pode-se
imaginar maior bem? Mas eis a hora de partirmos: eu para a morte, vós para a
vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém sabe, exceto Deus".
Esse pensamento sintetiza a postura que a Maçonaria adota: a
vida e a morte fazem parte de um mistério maior; e o desconhecimento sobre o
além não deve servir como combustível para o medo, mas como estímulo para viver
com dignidade e propósito.
Fé e Liberdade: a Lição da História
A história humana demonstra que, por séculos, a fé foi
instrumentalizada como ferramenta de dominação política e social. Na Europa
medieval e moderna, a Igreja Católica
Apostólica Romana, por meio da Inquisição instituiu tribunais para punir
divergências teológicas e suprimir heresias, muitas vezes confundindo fé com
imposição ideológica. Incontáveis vidas foram ceifadas, não pela prova objetiva
de crime, mas pela suspeita de pensamento divergente.
O maçom, sem pretender destruir religiões, reconhece nelas um
papel relevante na coesão social e no cultivo da moral. Entretanto, combate
firmemente qualquer radicalismo que atente contra a liberdade de consciência, a
fraternidade entre os homens e a igualdade de direitos. Como afirmou Voltaire,
Símbolo do Iluminismo e defensor incansável da tolerância: "Posso não concordar com nenhuma das palavras
que você disser, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las".
Assim, o juramento maçônico não é submissão a uma ortodoxia
religiosa, mas pacto de defesa da liberdade, inclusive a liberdade de crer ou
de não crer?
O Modelo Cavaleiresco: Virtude em Ação
A inspiração do maçom provém, em parte, dos vetustos cavaleiros
do Oriente Próximo, que buscavam a perfeição no combate ao mal e na prática do
bem. Tal como os templários, que protegiam os caminhos a Jerusalém e os
peregrinos que os percorriam, o maçom sabe que lutar pela liberdade pode
custar-lhe a própria vida.
O ideal cavaleiresco, ressignificado na Maçonaria, não é a
glória da guerra, mas a glória do serviço e da proteção dos mais fracos. Lutar
contra tiranias, políticas, econômicas ou ideológicas, exige coragem, mas
também preparo moral. Kant, em sua "Fundamentação
da Metafísica dos Costumes", ensina que o dever moral não depende de
expectativa de recompensa, mas do respeito à lei moral em si mesma. O maçom,
nesse sentido, age não para ser exaltado, mas porque é o que deve ser feito.
Cultura, Racionalidade e Espiritualidade
A Maçonaria estimula o maçom a conhecer os costumes e a história
dos povos, não para subjugá-los, mas para libertá-los da ignorância e da
servidão mental. A razão, cultivada como ferramenta de iluminação, é o único
caminho seguro para a liberdade interior, e esta, longe de negar a
espiritualidade, confirma-a em sua forma mais pura.
O maçom aceita a existência de um Princípio Criador, Grande
Arquiteto do Universo, como reconhecimento de que há uma ordem e um sentido
maiores. Essa fé, porém, não é cega: ela se enraíza na compreensão de que toda
ação orientada para o bem deve estar impregnada de espiritualidade genuína.
Virtudes e Combate ao Vício
O maçom é chamado a cultivar virtudes universais: fraternidade,
tolerância, prudência, discrição e fidelidade. Esses valores não são
abstrações; traduzem-se em condutas concretas, tanto no templo como na vida
profana.
O simbolismo do malho e do cinzel expressa a disciplina moral:
com força inteligente e abnegação, o maçom golpeia os vícios, discórdia,
indiscrição, orgulho, maledicência, perfídia, até lapidar-se como pedra polida,
apta a se integrar na construção simbólica do Templo da Humanidade.
O Juramento e a Missão Social
Cumprir o juramento maçônico é fortalecer a fé em um futuro de
progresso para a sociedade humana. Esse compromisso não se restringe ao
ambiente ritualístico: ele se expande à vida pública, à profissão, à família
etc.
O maçom sabe que não vive temporariamente neste planeta sem um
propósito justo. Assim, cada tarefa é iniciada exaltando a glória do Grande
Arquiteto do Universo. O trabalho maçônico é um laboratório ético, onde a
prática da caridade não busca resolver, sozinha, a miséria do mundo, mas
treinar o coração para o bem.
Maçonaria e Defesa Ativa da Liberdade
De orientação não pacifista, a Maçonaria entende que a paz não
pode ser confundida com passividade diante da injustiça. Cabe ao maçom "retirar a paz" dos que abusam do
poder e dos falsos irmãos, constrangendo-os à mudança ou isolando-os para
proteção da sociedade. Se perseguido por sua integridade, o maçom sabe que encontrará
asilo na loja, espaço de justiça e equidade.
Esse aspecto se relaciona com o pensamento de Cícero, que via a
justiça como "o mais elevado dever
do homem em sociedade", sendo injusto não apenas o que pratica o mal,
mas também o que, podendo impedir o mal, nada faz.
O Legado Maçônico na História
O progresso civilizatório moderno traz, direta ou indiretamente,
a marca de ações maçônicas. A defesa da liberdade de imprensa, a separação
entre Igreja e Estado, a promoção da educação universal e a luta contra a
escravidão contaram, em diferentes momentos, com maçons destacados entre seus
protagonistas.
Esse legado é também uma expressão da fé maçônica: não apenas na
vida futura, mas na possibilidade de aperfeiçoamento constante da humanidade,
pela razão e pela ação moral.
Fé Racional e Dever Perene
A fé do maçom não é superstição; é confiança lúcida em um
propósito universal. A razão lhe dá os instrumentos para discernir o justo, e a
espiritualidade lhe fornece a motivação para agir. Como guardião da liberdade
de consciência, ele combate o radicalismo e defende a dignidade humana. Como
discípulo da tradição cavaleiresca, assume riscos e não teme a luta pela
justiça. Como servidor da humanidade, busca a perfeição moral, golpeando
incessantemente os vícios que o afastam do ideal.
Razão e fé se entrelaçam na vida maçônica: a primeira ilumina o
caminho; a segunda dá coragem para trilhá-lo até o fim.
Bibliografia
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