sábado, 9 de agosto de 2025

Deveres do Maçom e Fé

 Charles Evaldo Boller

Razão, Fé e Maçonaria

A Maçonaria, como escola iniciática, propõe uma rara e sofisticada síntese entre razão e fé. Pela razão, o homem define, organiza e interpreta a fé; pela fé, o homem dá sentido último à razão e orienta a sua ação moral. Embora não seja possível ver certas assertivas ditadas pela crença, pois a fé é, essencialmente, a confiança no invisível, o maçom a adota como princípio fundamental, segundo condição precípua para ser aceito na ordem maçônica, a crença em uma vida futura após a morte física. Essa exigência não se vincula a dogma confessional, mas a um entendimento espiritual que transcende denominações religiosas.

Platão, ao registrar o diálogo final de Sócrates, pouco antes da execução, preservou uma das mais coerentes reflexões sobre o tema: "Fugir à morte não é difícil. Bem mais difícil é fugir à maldade, pois mais célere que a morte é a malvadez. Temer a morte é acreditar ser sábio e não o ser, posto que é acreditar saber aquilo que não se sabe. Ela só pode significar: ou aquele que morre é reduzido ao nada, como uma longa noite de sono sem sonhos, ou é a passagem daqui para outro lugar; e, se é verdade, como se diz, que todos os mortos aí se reúnem, pode-se imaginar maior bem? Mas eis a hora de partirmos: eu para a morte, vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém sabe, exceto Deus".

Esse pensamento sintetiza a postura que a Maçonaria adota: a vida e a morte fazem parte de um mistério maior; e o desconhecimento sobre o além não deve servir como combustível para o medo, mas como estímulo para viver com dignidade e propósito.

Fé e Liberdade: a Lição da História

A história humana demonstra que, por séculos, a fé foi instrumentalizada como ferramenta de dominação política e social. Na Europa medieval e moderna, a Igreja Católica Apostólica Romana, por meio da Inquisição instituiu tribunais para punir divergências teológicas e suprimir heresias, muitas vezes confundindo fé com imposição ideológica. Incontáveis vidas foram ceifadas, não pela prova objetiva de crime, mas pela suspeita de pensamento divergente.

O maçom, sem pretender destruir religiões, reconhece nelas um papel relevante na coesão social e no cultivo da moral. Entretanto, combate firmemente qualquer radicalismo que atente contra a liberdade de consciência, a fraternidade entre os homens e a igualdade de direitos. Como afirmou Voltaire, Símbolo do Iluminismo e defensor incansável da tolerância: "Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las".

Assim, o juramento maçônico não é submissão a uma ortodoxia religiosa, mas pacto de defesa da liberdade, inclusive a liberdade de crer ou de não crer?

O Modelo Cavaleiresco: Virtude em Ação

A inspiração do maçom provém, em parte, dos vetustos cavaleiros do Oriente Próximo, que buscavam a perfeição no combate ao mal e na prática do bem. Tal como os templários, que protegiam os caminhos a Jerusalém e os peregrinos que os percorriam, o maçom sabe que lutar pela liberdade pode custar-lhe a própria vida.

O ideal cavaleiresco, ressignificado na Maçonaria, não é a glória da guerra, mas a glória do serviço e da proteção dos mais fracos. Lutar contra tiranias, políticas, econômicas ou ideológicas, exige coragem, mas também preparo moral. Kant, em sua "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", ensina que o dever moral não depende de expectativa de recompensa, mas do respeito à lei moral em si mesma. O maçom, nesse sentido, age não para ser exaltado, mas porque é o que deve ser feito.

Cultura, Racionalidade e Espiritualidade

A Maçonaria estimula o maçom a conhecer os costumes e a história dos povos, não para subjugá-los, mas para libertá-los da ignorância e da servidão mental. A razão, cultivada como ferramenta de iluminação, é o único caminho seguro para a liberdade interior, e esta, longe de negar a espiritualidade, confirma-a em sua forma mais pura.

O maçom aceita a existência de um Princípio Criador, Grande Arquiteto do Universo, como reconhecimento de que há uma ordem e um sentido maiores. Essa fé, porém, não é cega: ela se enraíza na compreensão de que toda ação orientada para o bem deve estar impregnada de espiritualidade genuína.

Virtudes e Combate ao Vício

O maçom é chamado a cultivar virtudes universais: fraternidade, tolerância, prudência, discrição e fidelidade. Esses valores não são abstrações; traduzem-se em condutas concretas, tanto no templo como na vida profana.

O simbolismo do malho e do cinzel expressa a disciplina moral: com força inteligente e abnegação, o maçom golpeia os vícios, discórdia, indiscrição, orgulho, maledicência, perfídia, até lapidar-se como pedra polida, apta a se integrar na construção simbólica do Templo da Humanidade.

O Juramento e a Missão Social

Cumprir o juramento maçônico é fortalecer a fé em um futuro de progresso para a sociedade humana. Esse compromisso não se restringe ao ambiente ritualístico: ele se expande à vida pública, à profissão, à família etc.

O maçom sabe que não vive temporariamente neste planeta sem um propósito justo. Assim, cada tarefa é iniciada exaltando a glória do Grande Arquiteto do Universo. O trabalho maçônico é um laboratório ético, onde a prática da caridade não busca resolver, sozinha, a miséria do mundo, mas treinar o coração para o bem.

Maçonaria e Defesa Ativa da Liberdade

De orientação não pacifista, a Maçonaria entende que a paz não pode ser confundida com passividade diante da injustiça. Cabe ao maçom "retirar a paz" dos que abusam do poder e dos falsos irmãos, constrangendo-os à mudança ou isolando-os para proteção da sociedade. Se perseguido por sua integridade, o maçom sabe que encontrará asilo na loja, espaço de justiça e equidade.

Esse aspecto se relaciona com o pensamento de Cícero, que via a justiça como "o mais elevado dever do homem em sociedade", sendo injusto não apenas o que pratica o mal, mas também o que, podendo impedir o mal, nada faz.

O Legado Maçônico na História

O progresso civilizatório moderno traz, direta ou indiretamente, a marca de ações maçônicas. A defesa da liberdade de imprensa, a separação entre Igreja e Estado, a promoção da educação universal e a luta contra a escravidão contaram, em diferentes momentos, com maçons destacados entre seus protagonistas.

Esse legado é também uma expressão da fé maçônica: não apenas na vida futura, mas na possibilidade de aperfeiçoamento constante da humanidade, pela razão e pela ação moral.

Fé Racional e Dever Perene

A fé do maçom não é superstição; é confiança lúcida em um propósito universal. A razão lhe dá os instrumentos para discernir o justo, e a espiritualidade lhe fornece a motivação para agir. Como guardião da liberdade de consciência, ele combate o radicalismo e defende a dignidade humana. Como discípulo da tradição cavaleiresca, assume riscos e não teme a luta pela justiça. Como servidor da humanidade, busca a perfeição moral, golpeando incessantemente os vícios que o afastam do ideal.

Razão e fé se entrelaçam na vida maçônica: a primeira ilumina o caminho; a segunda dá coragem para trilhá-lo até o fim.

Bibliografia

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