Charles Evaldo Boller
O Rito Escocês Antigo e Aceito, na sua vasta tessitura simbólica
e iniciática, apresenta no grau 9, Cavaleiro Eleito dos Nove, um momento
decisivo da narrativa mítica que acompanha a trajetória do maçom pelos chamados
graus de vingança e justiça. É um grau profundamente dramático, em que a tensão
entre a emoção humana da vingança e a racionalidade da justiça emerge como
dilema central.
Este grau transporta o iniciado para o momento em que o rei
Salomão, diante da impunidade dos assassinos de Hiram Abif, decide designar
nove mestres, por sorteio, para caçá-los e trazê-los à presença da justiça.
Entre estes, o mestre Johaben assume papel de protagonista ao encontrar um dos
culpados, Abiram, adormecido numa caverna. Movido por um ímpeto de justiça, mas
também por impulso emocional, Johaben o mata, lhe decepa a cabeça e a leva a
Salomão.
Essa narrativa, embora impregnada de imagens fortes, não se
esgota em um episódio de violência ritual. Ela é metáfora densa que
atravessa o campo histórico, simbólico, metafísico, esotérico e social,
oferecendo ao maçom a oportunidade de compreender que a justiça não se confunde
com vingança, e que a luta contra a ignorância, a vaidade e a ambição é tão
urgente quanto o combate a crimes concretos.
Aspectos Históricos do Grau 9
Historicamente, o grau 9 situa-se dentro do ciclo de graus que
desenvolvem a narrativa iniciada na lenda do Templo de Salomão e do assassinato
de seu arquiteto, Hiram Abif.
Nos registros mais antigos do Rito Escocês Antigo e Aceito e de ritos
predecessores, como o Rito de Perfeição do século XVIII, este grau já estava
associado ao tema da "eleição" de um grupo reduzido de mestres para
executar uma missão especial.
O cenário histórico de referência é o reinado de Salomão, século
X a. C., com seu projeto grandioso de construção do Templo de Jerusalém,
símbolo de união entre religião, arte e ciência. A lenda dos assassinos de
Hiram remonta às tradições orais que circulavam no meio operário e iniciático
medieval, misturando elementos bíblicos, apócrifos e alegóricos.
O momento da escolha dos nove mestres tem paralelo em práticas
militares e jurídicas da Antiguidade, nas quais grupos restritos eram
designados para executar tarefas de alto risco ou importância moral. A figura
de Johaben, possivelmente de origem não-bíblica, foi incorporada à tradição
maçônica como tipo arquetípico do executor da justiça direta, que, por vezes,
transborda para a vingança pessoal.
Aspectos Simbólicos
O grau 9 é saturado de simbolismo. A eleição dos nove simboliza
que nem todos estão preparados para as missões de maior responsabilidade moral;
é necessária seleção espiritual e maturidade para lidar com situações extremas.
O número nove, por si só, evoca conclusão e plenitude de um
ciclo antes da passagem para um novo estágio; na cabala maçônica, é o triplo
ternário, a perfeição no mundo manifestado, mas ainda dentro dos limites
humanos.
A caverna onde Abiram é encontrado representa o inconsciente
humano, o local onde se escondem os impulsos mais obscuros, as culpas e os
temores. A penetração nessa caverna é símbolo do confronto com a sombra, nos
termos da psicologia junguiana: Johaben entra na zona escura da psique para
enfrentar diretamente o mal, mas o faz de maneira NÃO plenamente iluminada pela
razão.
A decapitação é um dos símbolos mais poderosos e ambíguos
do grau. No plano moral, representa a separação da razão, cabeça, de seu
suporte vital, corpo; imagem do destino de quem se afasta da lei moral e do
dever. No plano esotérico, remete à purificação pela ruptura com a ignorância.
No plano social, é advertência de que todo excesso, mesmo no zelo pela justiça,
pode tornar-se violência ilegítima.
Aspectos Metafísicos
Metafisicamente, o grau 9 reflete o eterno conflito entre
Justiça Divina e Justiça Humana.
Na perspectiva iniciática, a justiça divina é perfeita,
imparcial e atua segundo leis que transcendem o tempo e o espaço. A justiça
humana, por outro lado, é limitada, sujeita às paixões e às imperfeições das
instituições. Johaben, ao matar Abiram, personifica a tensão entre estas duas
dimensões: ele realiza um ato que, no plano humano, pode parecer justo ou mesmo
necessário, mas que, no plano metafísico, carece de legitimidade se não for
autorizado pela lei superior.
A narrativa também se conecta ao princípio hermético de causa
e efeito: toda ação humana desencadeia consequências que retornam ao
agente, e a violência; ainda que motivada pelo desejo de reparar um mal, pode
gerar novos ciclos de violência, a menos que seja sublimada pela consciência.
Aspectos Esotéricos
No plano esotérico, o grau 9 é rito de passagem para o
entendimento de que o mal não é apenas uma força exterior, mas também interna.
Os assassinos de Hiram, antes de serem figuras históricas ou lendárias, são arquétipos
dos vícios humanos: a ignorância, a vaidade e a ambição. Enfrentar Abiram
é, simbolicamente, enfrentar a própria parte obscura que conspira contra a luz
da razão e da virtude.
O ato de cortar a cabeça é esotericamente lido como rompimento
com o pensamento corrompido, extirpando a raiz intelectual do mal. A caveira,
símbolo recorrente em graus maçônicos, aqui é troféu e advertência, lembrando
ao iniciado que todo pensamento destrutivo gera sua própria destruição.
O esoterismo do grau também utiliza o número nove como cifra de
iniciação. No simbolismo pitagórico, nove é o limite máximo antes do retorno ao
um (10 = 1 + 0), sugerindo que, antes de alcançar a plenitude, é necessário
atravessar a prova final: enfrentar e vencer o mal em si e no mundo.
Aspectos Sociais
O grau 9 aborda diretamente a relação entre justiça popular e
justiça institucional. Na história das sociedades, a vingança privada muitas
vezes precedeu a criação de sistemas judiciais. Clãs, famílias e comunidades
reagiam a crimes com represálias diretas, o que alimentava ciclos de violência.
A evolução civilizatória trouxe a necessidade de centralizar a aplicação da
justiça em instituições, para que ela fosse impessoal e equitativa.
A filosofia do grau reconhece que a vontade popular de punir o
mal é legítima, mas deve ser disciplinada pelo Estado e pelos poderes
constituídos. A figura de Salomão, na lenda, encarna o governante que
compreende esse equilíbrio: ele aceita a captura dos culpados, mas desaprova
atos que ultrapassem a legalidade da missão.
Assim, o grau funciona como advertência a líderes, legisladores
e cidadãos: o combate ao crime e à corrupção é dever de todos, mas só se torna
construtivo quando realizado dentro dos marcos da justiça legítima.
Aspectos Práticos e Morais
A lição prática do grau 9 é clara: evitar os vícios,
preconceitos e erros que conduzem ao mal, sob pena de arcar com as
consequências inevitáveis. A tríade ignorância-vaidade-ambição é apresentada
como raiz de inúmeros males sociais e pessoais.
A ignorância mantém o homem afastado da Verdade e torna-o presa
fácil da manipulação; a vaidade cega-o quanto às suas próprias limitações; e a
ambição, quando desmedida, leva-o a violar leis morais e civis.
O maçom, como Cavaleiro Eleito dos Nove, compromete-se a
combater esses inimigos internos e externos. Na vida prática, isso
significa cultivar educação contínua, humildade ativa e serviço desinteressado
à comunidade. No campo profissional, significa agir com integridade,
evitando atalhos antiéticos. Na família, significa orientar os mais
jovens com exemplo de disciplina e honestidade.
Integração Filosófica: Justiça e Vingança
A filosofia central do grau, portanto, é o discernimento entre
vingança e justiça. A vingança nasce da emoção e busca retribuir o mal com o
mal, enquanto a justiça nasce da razão e busca restaurar a harmonia violada. No
entanto, em certos contextos históricos, a vingança foi percebida como única
via possível de defesa social, e é isso que a lenda reconhece: há homens
dispostos a executar a vontade popular quando as instituições falham.
O ensinamento maçônico, contudo, é que o progresso da
civilização requer que essa energia de indignação seja canalizada para
processos legítimos, evitando que o zelo se transforme em tirania.
Conclusão
O grau 9 do Rito Escocês Antigo e Aceito é, ao mesmo tempo,
drama moral, alegoria psicológica e lição de filosofia política. Sua lenda, com
a figura de Johaben e a morte de Abiram, NÃO deve ser lida como apologia à
vingança, mas como advertência sobre o
seu perigo e sobre a necessidade de subordinar a força à lei.
No caminho iniciático, o Cavaleiro Eleito dos Nove aprende que a
vitória sobre o mal não está apenas em eliminá-lo fisicamente, mas em educar,
prevenir e purificar, a si mesmo e à sociedade. É no equilíbrio entre
coragem e sabedoria, firmeza e misericórdia, que se constrói a justiça
duradoura.
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