sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Drama Moral, Alegoria Psicológica e Lição de Filosofia Política

 Charles Evaldo Boller

O Rito Escocês Antigo e Aceito, na sua vasta tessitura simbólica e iniciática, apresenta no grau 9, Cavaleiro Eleito dos Nove, um momento decisivo da narrativa mítica que acompanha a trajetória do maçom pelos chamados graus de vingança e justiça. É um grau profundamente dramático, em que a tensão entre a emoção humana da vingança e a racionalidade da justiça emerge como dilema central.

Este grau transporta o iniciado para o momento em que o rei Salomão, diante da impunidade dos assassinos de Hiram Abif, decide designar nove mestres, por sorteio, para caçá-los e trazê-los à presença da justiça. Entre estes, o mestre Johaben assume papel de protagonista ao encontrar um dos culpados, Abiram, adormecido numa caverna. Movido por um ímpeto de justiça, mas também por impulso emocional, Johaben o mata, lhe decepa a cabeça e a leva a Salomão.

Essa narrativa, embora impregnada de imagens fortes, não se esgota em um episódio de violência ritual. Ela é metáfora densa que atravessa o campo histórico, simbólico, metafísico, esotérico e social, oferecendo ao maçom a oportunidade de compreender que a justiça não se confunde com vingança, e que a luta contra a ignorância, a vaidade e a ambição é tão urgente quanto o combate a crimes concretos.

Aspectos Históricos do Grau 9

Historicamente, o grau 9 situa-se dentro do ciclo de graus que desenvolvem a narrativa iniciada na lenda do Templo de Salomão e do assassinato de seu arquiteto, Hiram Abif.

Nos registros mais antigos do Rito Escocês Antigo e Aceito e de ritos predecessores, como o Rito de Perfeição do século XVIII, este grau já estava associado ao tema da "eleição" de um grupo reduzido de mestres para executar uma missão especial.

O cenário histórico de referência é o reinado de Salomão, século X a. C., com seu projeto grandioso de construção do Templo de Jerusalém, símbolo de união entre religião, arte e ciência. A lenda dos assassinos de Hiram remonta às tradições orais que circulavam no meio operário e iniciático medieval, misturando elementos bíblicos, apócrifos e alegóricos.

O momento da escolha dos nove mestres tem paralelo em práticas militares e jurídicas da Antiguidade, nas quais grupos restritos eram designados para executar tarefas de alto risco ou importância moral. A figura de Johaben, possivelmente de origem não-bíblica, foi incorporada à tradição maçônica como tipo arquetípico do executor da justiça direta, que, por vezes, transborda para a vingança pessoal.

Aspectos Simbólicos

O grau 9 é saturado de simbolismo. A eleição dos nove simboliza que nem todos estão preparados para as missões de maior responsabilidade moral; é necessária seleção espiritual e maturidade para lidar com situações extremas.

O número nove, por si só, evoca conclusão e plenitude de um ciclo antes da passagem para um novo estágio; na cabala maçônica, é o triplo ternário, a perfeição no mundo manifestado, mas ainda dentro dos limites humanos.

A caverna onde Abiram é encontrado representa o inconsciente humano, o local onde se escondem os impulsos mais obscuros, as culpas e os temores. A penetração nessa caverna é símbolo do confronto com a sombra, nos termos da psicologia junguiana: Johaben entra na zona escura da psique para enfrentar diretamente o mal, mas o faz de maneira NÃO plenamente iluminada pela razão.

A decapitação é um dos símbolos mais poderosos e ambíguos do grau. No plano moral, representa a separação da razão, cabeça, de seu suporte vital, corpo; imagem do destino de quem se afasta da lei moral e do dever. No plano esotérico, remete à purificação pela ruptura com a ignorância. No plano social, é advertência de que todo excesso, mesmo no zelo pela justiça, pode tornar-se violência ilegítima.

Aspectos Metafísicos

Metafisicamente, o grau 9 reflete o eterno conflito entre Justiça Divina e Justiça Humana.

Na perspectiva iniciática, a justiça divina é perfeita, imparcial e atua segundo leis que transcendem o tempo e o espaço. A justiça humana, por outro lado, é limitada, sujeita às paixões e às imperfeições das instituições. Johaben, ao matar Abiram, personifica a tensão entre estas duas dimensões: ele realiza um ato que, no plano humano, pode parecer justo ou mesmo necessário, mas que, no plano metafísico, carece de legitimidade se não for autorizado pela lei superior.

A narrativa também se conecta ao princípio hermético de causa e efeito: toda ação humana desencadeia consequências que retornam ao agente, e a violência; ainda que motivada pelo desejo de reparar um mal, pode gerar novos ciclos de violência, a menos que seja sublimada pela consciência.

Aspectos Esotéricos

No plano esotérico, o grau 9 é rito de passagem para o entendimento de que o mal não é apenas uma força exterior, mas também interna. Os assassinos de Hiram, antes de serem figuras históricas ou lendárias, são arquétipos dos vícios humanos: a ignorância, a vaidade e a ambição. Enfrentar Abiram é, simbolicamente, enfrentar a própria parte obscura que conspira contra a luz da razão e da virtude.

O ato de cortar a cabeça é esotericamente lido como rompimento com o pensamento corrompido, extirpando a raiz intelectual do mal. A caveira, símbolo recorrente em graus maçônicos, aqui é troféu e advertência, lembrando ao iniciado que todo pensamento destrutivo gera sua própria destruição.

O esoterismo do grau também utiliza o número nove como cifra de iniciação. No simbolismo pitagórico, nove é o limite máximo antes do retorno ao um (10 = 1 + 0), sugerindo que, antes de alcançar a plenitude, é necessário atravessar a prova final: enfrentar e vencer o mal em si e no mundo.

Aspectos Sociais

O grau 9 aborda diretamente a relação entre justiça popular e justiça institucional. Na história das sociedades, a vingança privada muitas vezes precedeu a criação de sistemas judiciais. Clãs, famílias e comunidades reagiam a crimes com represálias diretas, o que alimentava ciclos de violência. A evolução civilizatória trouxe a necessidade de centralizar a aplicação da justiça em instituições, para que ela fosse impessoal e equitativa.

A filosofia do grau reconhece que a vontade popular de punir o mal é legítima, mas deve ser disciplinada pelo Estado e pelos poderes constituídos. A figura de Salomão, na lenda, encarna o governante que compreende esse equilíbrio: ele aceita a captura dos culpados, mas desaprova atos que ultrapassem a legalidade da missão.

Assim, o grau funciona como advertência a líderes, legisladores e cidadãos: o combate ao crime e à corrupção é dever de todos, mas só se torna construtivo quando realizado dentro dos marcos da justiça legítima.

Aspectos Práticos e Morais

A lição prática do grau 9 é clara: evitar os vícios, preconceitos e erros que conduzem ao mal, sob pena de arcar com as consequências inevitáveis. A tríade ignorância-vaidade-ambição é apresentada como raiz de inúmeros males sociais e pessoais.

A ignorância mantém o homem afastado da Verdade e torna-o presa fácil da manipulação; a vaidade cega-o quanto às suas próprias limitações; e a ambição, quando desmedida, leva-o a violar leis morais e civis.

O maçom, como Cavaleiro Eleito dos Nove, compromete-se a combater esses inimigos internos e externos. Na vida prática, isso significa cultivar educação contínua, humildade ativa e serviço desinteressado à comunidade. No campo profissional, significa agir com integridade, evitando atalhos antiéticos. Na família, significa orientar os mais jovens com exemplo de disciplina e honestidade.

Integração Filosófica: Justiça e Vingança

A filosofia central do grau, portanto, é o discernimento entre vingança e justiça. A vingança nasce da emoção e busca retribuir o mal com o mal, enquanto a justiça nasce da razão e busca restaurar a harmonia violada. No entanto, em certos contextos históricos, a vingança foi percebida como única via possível de defesa social, e é isso que a lenda reconhece: há homens dispostos a executar a vontade popular quando as instituições falham.

O ensinamento maçônico, contudo, é que o progresso da civilização requer que essa energia de indignação seja canalizada para processos legítimos, evitando que o zelo se transforme em tirania.

Conclusão

O grau 9 do Rito Escocês Antigo e Aceito é, ao mesmo tempo, drama moral, alegoria psicológica e lição de filosofia política. Sua lenda, com a figura de Johaben e a morte de Abiram, NÃO deve ser lida como apologia à vingança, mas como advertência sobre o seu perigo e sobre a necessidade de subordinar a força à lei.

No caminho iniciático, o Cavaleiro Eleito dos Nove aprende que a vitória sobre o mal não está apenas em eliminá-lo fisicamente, mas em educar, prevenir e purificar, a si mesmo e à sociedade. É no equilíbrio entre coragem e sabedoria, firmeza e misericórdia, que se constrói a justiça duradoura.

Bibliografia

1.      ALMEIDA, Mário. Os Graus Filosóficos do Rito Escocês Antigo e Aceito. São Paulo: Madras, 2010.

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