Charles Evaldo Boller
O termo Conatus, embora de origem latina e antiga, encontra
ressonância profunda no espírito filosófico da modernidade e, em particular, na
tradição iniciática da Maçonaria. Não se trata de um conceito meramente
abstrato ou distante, mas de uma realidade existencial que atravessa cada ser
humano: o impulso vital que o impele a perseverar em sua existência, a
conservar-se e a evoluir.
Na Maçonaria, esse princípio ganha um relevo singular. O
iniciado, desde sua primeira experiência simbólica, é confrontado com a tensão
entre desejos que escravizam e desejos que libertam, entre paixões cegas e
virtudes luminosas. O Conatus é, assim, ao mesmo tempo desafio e possibilidade:
pode conduzir à servidão dos instintos, mas também à grandeza da liberdade
interior.
O presente ensaio busca explorar esse conceito em profundidade,
dialogando com os principais filósofos que o elaboraram — Espinosa, Hobbes — e
com teorias modernas de motivação humana, como a pirâmide de Maslow. Ao mesmo
tempo, pretende mostrar como a filosofia maçônica oferece ao homem um caminho
de disciplina e autoconstrução, onde o Conatus se transforma em motor de
iluminação e serviço fraterno.
Origem e Sentido Filosófico do Conatus
Raízes Latinas
O verbo latino conari significa "esforçar-se", "empreender",
"tentar". O substantivo
Conatus, por sua vez, remete ao impulso vital, ao esforço em direção à
continuidade do ser. Os romanos empregavam-no tanto em sentido físico quanto
moral, para designar desde a energia do corpo até a perseverança da vontade.
O Conatus Como Princípio Universal
A filosofia moderna absorveu essa noção para pensar a essência
da vida e da liberdade. Não se trata de uma lei externa, mas de uma força
imanente, interior ao ser. O Conatus é o fundamento da individualidade, mas
também o princípio da convivência: sem ele, não haveria nem perseverança
pessoal, nem desejo de comunidade.
Dicotomia Fundamental
O conceito, contudo, traz consigo uma ambiguidade: pode conduzir
à vida virtuosa ou à vida de paixões desordenadas. O maçom, ao refletir sobre
esse princípio, é levado a reconhecer sua própria natureza dividida entre razão
e instinto, entre altruísmo e egoísmo. Eis o cerne da instrução iniciática:
ensinar a governar o Conatus sem destruí-lo, orientando-o para a Luz.
Espinosa: Conatus como Essência da Vida
A Definição Clássica
Baruch Espinosa, no Ética Demonstrada Segundo a Ordem
Geométrica, definiu o Conatus como o esforço de cada coisa para perseverar em
seu ser (Ethica, III, proposição 6). Esse esforço não é uma escolha, mas a
própria essência do indivíduo: viver é querer viver.
Desejo e Liberdade
Para Espinosa, o desejo (cupiditas) não é uma fraqueza, mas a
expressão mesma da essência. O homem é um ser de desejos. Suprimi-los seria
negar sua própria vida. Mas o problema está em distinguir entre desejos que
escravizam e desejos que libertam. O homem ignorante é arrastado pelas paixões;
o homem sábio compreende as causas de seus afetos e age de modo racional.
Aplicação Maçônica
Na filosofia maçônica, essa distinção é crucial. O iniciado
aprende a não temer os desejos, mas a discipliná-los pela razão e pela
fraternidade. O Conatus, quando iluminado pela consciência, torna-se força de
perseverança na busca da Verdade e no serviço ao próximo. Sem desejo não há
vida; sem razão não há liberdade.
Desejo, Paixão e Escravidão
O Desejo Como Potência
Desejo é potência de agir, força de realização. Tudo o que o
homem faz, desde as atividades mais simples até as mais elevadas, é movido por
desejo.
A Armadilha da Preguiça
Contudo, a preguiça do pensamento leva muitos a se deixar
governar apenas pelos desejos mais imediatos: fome, prazer, vaidade. Como
lembrou Maslow, a maioria permanece nos estágios mais baixos da pirâmide de
necessidades, raramente alcançando a autorrealização.
Escravidão Voluntária
O mais paradoxal é que essa escravidão é, muitas vezes, desejada.
O homem prefere ser escravo de suas paixões do que assumir a responsabilidade
da liberdade. O maçom, porém, é chamado a combater esse comodismo,
transformando o desejo em instrumento de elevação, não de degradação.
Fraternidade como Espaço de Libertação
A Fraternidade Autêntica
Fraternidade não é submissão nem complacência, mas convivência
sincera e alegre. A loja maçônica se apresenta como microcosmo de fraternidade
autêntica, onde os homens aprendem a dominar seus desejos destrutivos e a
cultivar paixões benéficas.
Banquetes Culturais
Os banquetes maçônicos, longe de serem meros encontros sociais,
possuem caráter cultural e pedagógico. Neles, o Conatus se expressa na partilha
de conhecimentos, na troca de experiências e no cultivo da amizade. É um exercício
de afetividade que fortalece a perseverança.
Escola e Família
A loja é simultaneamente escola de saberes e família espiritual.
Nela, o Conatus se converte em impulso de autoconstrução e em desejo de servir,
formando líderes que transformam a sociedade pelo exemplo e pela ação justa.
Teoria da Afetividade e Dimensão Social do Conatus
O Homem Como Ser Social
Os psicólogos afirmam que "o homem é, por natureza, um ser social". O Conatus, portanto,
não pode ser compreendido isoladamente. Ele se realiza na relação com os
outros.
A Amizade Como Força Estratégica
Na Maçonaria, a amizade fraterna é estratégia fundamental.
É ela que potencializa a perseverança, que sustenta o esforço coletivo e que
transforma desejos individuais em forças de progresso comum.
Conatus Como Produtividade Afetiva
A fraternidade permite que o Conatus seja produtivo: ao invés de
se gastar em conflitos, ele se transforma em energia de construção. Essa
dimensão afetiva é essencial à filosofia maçônica, que une razão e emoção,
saber e amor.
Hobbes e a Face Sombria do Conatus
Conatus Como Impulso de Poder
Para Thomas Hobbes, o Conatus é o movimento interno que leva o
homem a buscar prazer e evitar dor. Sem limites, ele conduz à "guerra de todos contra todos".
O Egoísmo Natural
A tendência ao egoísmo, ao acúmulo de poder e de bens, é vista
por Hobbes como natural ao homem. Daí a necessidade de um contrato social
que imponha ordem.
Moderação pela Maçonaria
A Maçonaria, contudo, oferece outro caminho: não o da coerção
externa, mas o da autodisciplina interna. O maçom aprende a moderar o Conatus
pelo exercício da fraternidade, transformando a energia de dominação em energia
de serviço.
Liberdade e Livre-Arbítrio
A Distinção Necessária
A filosofia maçônica ensina a distinguir liberdade de
livre-arbítrio: Livre-arbítrio é agir por impulsos, sem reflexão, fruto do
instinto; liberdade é agir por autodeterminação consciente, após análise
racional.
Espinosa e a Crítica ao Livre-arbítrio
Espinosa considerava o livre-arbítrio uma ilusão. A verdadeira
liberdade só existe quando compreendemos as causas que nos determinam e agimos
em conformidade com nossa essência.
Aplicação Maçônica
O maçom, ao compreender essa distinção, percebe que sua luta não
é pela liberdade ilusória dos instintos, mas pela liberdade autêntica da
autodeterminação. Isso se reflete em sua vida social, profissional e
espiritual.
Conatus e Autoconstrução Maçônica
A Jornada Iniciática
Cada grau maçônico representa uma etapa na transformação do
Conatus bruto em Conatus iluminado. O iniciado é chamado a reconhecer suas
paixões, discipliná-las e convertê-las em virtudes.
Equilíbrio e Igualdade
A ação do Conatus positivo evita a vaidade congênita e conduz ao
equilíbrio das virtudes maçônicas: liberdade, igualdade e fraternidade. Não há
liberdade sem igualdade, nem igualdade sem fraternidade.
Servir sem Esperar
O ápice da autoconstrução é o serviço altruísta. Servir sem
esperar nada em troca é o grau mais elevado do exercício do Conatus. O
maçom, ao alcançar esse nível, torna-se construtor de templos vivos em uma
sociedade corrompida pela usura e pela escravidão moderna.
A Dimensão Espiritual do Conatus
Iniciação Interior
O iniciado não é apenas aquele que conhece sinais e palavras,
mas aquele que compreende que o Conatus deve ser orientado para o serviço e
para a virtude. Isso é o que significa ser "maçom no espírito".
Escada Dupla
A jornada é comparável a uma escada dupla: enquanto sobe, recebe
conhecimentos; enquanto desce, oferece serviço. Assim se realiza a
reciprocidade fraterna que equilibra a tendência egoísta natural do Conatus.
Luz e Virtude
A Luz que brilha no iniciado não é ornamento externo, mas
resultado interno da disciplina do desejo. É o Conatus transformado em virtude,
perseverança e serviço ao Grande Arquiteto do Universo.
Conatus, Ciência e Liberdade Moderna
Ciência Como Aliada
A liberdade maçônica não teme o progresso científico. Pelo
contrário, vê na ciência uma aliada para a emancipação humana. O maçom
iluminado utiliza o conhecimento científico como instrumento de serviço, não de
dominação.
Crítica ao Sistema de Usura
A sociedade contemporânea, marcada pela usura e pela escravidão
do consumo, desvirtua o Conatus, transformando-o em máquina de desejos
artificiais. A Maçonaria, ao contrário, propõe um retorno à liberdade interior,
capaz de resistir à manipulação externa.
Perseverança Ética
O Conatus positivo é, assim, essencial para enfrentar os
desafios da modernidade: manter a perseverança ética diante da tentação da
vaidade e da escravidão ao sistema.
Conclusão
O conceito de Conatus revela-se, dentro da filosofia maçônica,
não apenas como uma noção abstrata, mas como um princípio existencial de
profunda atualidade. Ele mostra que o homem é movido por desejos e paixões,
mas também que pode transformar essa energia em virtude e fraternidade.
A Maçonaria não pede que o homem negue sua essência desejante,
mas que a discipline e a eleve. O Conatus, iluminado pela razão e pela
fraternidade, torna-se motor da autoconstrução, da liberdade e do serviço ao
próximo. É, em última análise, a chama vital que, bem orientada, conduz o
maçom a ser construtor de si mesmo e colaborador do progresso humano.
Bibliografia
1.
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das
grandes virtudes. Explora a necessidade de disciplinar desejos e paixões para
cultivar virtudes. Dialoga com a prática maçônica de equilíbrio e fraternidade;
2.
ESPINOSA, Baruch. Ética. Texto clássico onde o
Conatus é definido como essência do ser. Fundamental para compreender a
filosofia da liberdade que inspira a reflexão maçônica;
3.
HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e
filosofia antiga. Mostra como a filosofia é prática de vida. Relaciona-se
diretamente à instrução maçônica de autoconstrução pelo domínio do desejo;
4.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Apresenta o Conatus
como impulso natural de poder e autoconservação, oferecendo contraponto à visão
mais harmoniosa de Espinosa. Útil para pensar a face sombria do desejo humano;
5.
JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia. Apresenta
síntese clara das grandes correntes filosóficas. Contextualiza o debate sobre
desejo, liberdade e paixões;
6.
MASLOW, Abraham. Motivation and Personality.
Teoria das necessidades humanas que ajuda a compreender como o desejo pode
permanecer em níveis primários ou ascender à autorrealização. Relevante para a instrução
maçônica;
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