sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Justiça, Consciência e a Imparcialidade como Virtude Iniciática

 Charles Evaldo Boller

No itinerário ascensional dos graus filosóficos do Rito Escocês Antigo e Aceito, o grau 7, Preboste e Juiz, ocupa lugar central na formação moral e intelectual do maçom. A transição do operariado simbólico para a jurisdição moral introduz o iniciado na delicada missão de julgar não apenas os outros, mas, antes de tudo, a si mesmo. Este grau representa a necessidade de que, no mundo humano e maçônico, o discernimento entre o justo e o injusto seja orientado por valores éticos universais, isento de paixões e de interesses mesquinhos. Ao mesmo tempo, exige uma sensibilidade que compreenda o perdão como face superior da Justiça.

A Lenda do Grau: o Tribunal de Salomão

Origem e Contexto Mítico

A lenda que embasa o grau 7 segue os desdobramentos da morte de Hiram Abif, mestre arquiteto do Templo de Salomão. O assassinato de Hiram mergulha o canteiro em desordem, exigindo a recomposição da harmonia por meio de uma instância superior: nasce, então, o tribunal dos sete Prebostes e Juízes, presidido por Tito, príncipe dos Heroditas. Os heroditas, de origem simbólica controversa, assumem o papel de julgadores dos operários, ao passo que os Prebostes se ocupam dos recursos e das reclamações, criando uma hierarquia que simboliza os diferentes níveis de julgamento e discernimento.

A Função dos Prebostes e Juízes

O colégio dos sete simboliza não apenas o número da perfeição mística, mas também a pluralidade de perspectivas que deve compor qualquer julgamento justo. A Justiça não pode ser monopólio de um único indivíduo; requer colegialidade, ponderação, escuta e consenso. Nesse sentido, o tribunal salomônico encarna o ideal da justiça deliberativa, onde cada voz importa e cada julgamento deve ser fruto de profunda reflexão.

Tito e os Heroditas

A figura de Tito, príncipe dos Heroditas, é envolta em simbolismo. O nome evoca ressonâncias com o general romano Tito, responsável pela destruição do Segundo Templo, o que gera uma tensão simbólica com o tema do julgamento. No contexto do grau, porém, Tito representa o poder judicial que não se dobra aos apelos sentimentais, mas também não ignora o apelo do coração. Os Heroditas, nesse caso, são metáforas dos aspectos mais severos da Justiça, contrapostos à sensibilidade dos Prebostes.

Simbolismo e Metafísica do Juízo

A Balança e a Espada

A iconografia clássica da Justiça, com a balança e a espada, é evocada neste grau. A balança representa o equilíbrio entre o rigor da lei e a misericórdia do juízo; a espada, a capacidade de aplicar a lei com firmeza. A ausência de vendas nos olhos da Justiça maçônica é proposital: o juiz maçom deve ver com clareza e consciência, não se deixar cegar por parcialidades ou favoritismos.

O Sete Como Número Sagrado

O número sete remete à Criação (sete dias), às virtudes (sete virtudes), aos céus (sete céus da tradição judaica), à música (sete notas), às cores do espectro (sete cores). É o número da totalidade. A composição do tribunal com sete juízes representa o esforço humano de replicar na Terra uma justiça que se aproxime da ordem cósmica. Em sentido esotérico, julgar com o espírito do sete é integrar corpo, mente e espírito à decisão, harmonizando razão e compaixão.

Julgar Como Ato Iniciático

No plano metafísico, o julgamento é símbolo do exame de consciência. A alma, no final de cada ciclo, passa pelo tribunal dos deuses, como na tradição egípcia de Osíris e Maat. No grau de Preboste e Juiz, o maçom é convidado a se antecipar a esse juízo final e tornar-se seu próprio juiz. Essa é uma das chaves esotéricas do grau: a instauração de um tribunal interno que submete cada ato, cada pensamento, cada intenção à luz da Verdade e do dever.

Filosofia do Grau: Justiça e Direito Natural

O Princípio Ético da Justiça

Aristóteles define a justiça como a virtude que consiste em "dar a cada um aquilo que lhe é devido" (Ética a Nicômaco, V). Esse princípio, que ressoa fortemente no conteúdo filosófico do grau, contrapõe-se ao utilitarismo e ao privilégio. A Justiça não é caprichosa, nem cega à realidade social; ao contrário, ela é atenta, ativa, prudente. É regida pelo valor da equidade.

Justiça Como Direito Natural

O maçom é ensinado, neste grau, a compreender a justiça não apenas como um sistema legal, mas como um direito natural que antecede e transcende as leis humanas. Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, ensina que o direito natural é aquele que decorre da própria razão humana, inscrito na natureza das coisas e dos homens. O maçom, ao julgar, deve estar atento a essa dimensão natural da justiça: um bem intrínseco, que clama por reconhecimento independentemente da codificação legal.

A Ética Como Fundamento da Lei

A tradição maçônica sustenta que nenhuma lei é justa se não se fundamenta em valores éticos. A letra da lei, quando desprovida de espírito, torna-se instrumento de opressão. Como ensinava Santo Agostinho, "uma lei injusta não é uma lei" (lex iniusta non est lex). Portanto, o maçom investido como juiz deve ser mais do que um aplicador frio da norma; ele deve ser seu intérprete moral, seu conciliador humanista, seu restaurador do equilíbrio perdido.

O Perdão e a Justiça Superior

O Lugar do Perdão na Justiça Maçônica

Ao contrário da justiça retributiva que domina muitos sistemas legais, a justiça maçônica acolhe a noção de perdão como manifestação superior de consciência. A função do juiz, nesse sentido, aproxima-se da do mestre espiritual, que compreende as limitações humanas e, sem abolir a responsabilidade, oferece uma saída regenerativa ao infrator. Assim, justiça e misericórdia não são termos opostos, mas complementares.

Julgar com humanidade

O maçom juiz é advertido contra os extremos: o rigor inflexível e a leniência permissiva. O julgamento requer equilíbrio e sensibilidade, razão e emoção, lei e compaixão. Trata-se, como diria Pascal, de unir "o espírito de geometria" com "o espírito de fineza". Em linguagem esotérica, é a fusão do princípio solar (razão, luz, lei) com o princípio lunar (intuição, receptividade, misericórdia).

Justiça Como Caminho Iniciático

Ao tornar-se juiz, o maçom ingressa em uma etapa da jornada iniciática onde sua responsabilidade deixa de ser apenas consigo mesmo. Agora, ele deve agir em nome da ordem maçônica e da humanidade. Cada decisão sua impacta a harmonia do templo. Daí a exigência de prudência, discrição, e sobretudo, humildade.

Moral do Grau: Direitos, Deveres e Imparcialidade

Conhecer os Próprios Direitos e Deveres

A liberdade exige responsabilidade. O maçom é chamado a conhecer não apenas os direitos que lhe assistem, mas também os deveres que lhe competem. Esta dualidade é o fundamento da cidadania iniciática. Aquele que exige justiça deve ser também justo com os outros. Aquele que deseja ser compreendido deve também aprender a escutar.

A Virtude da Imparcialidade

Julgar com imparcialidade é o centro moral do grau 7. A imparcialidade exige a suspensão de pré-julgamentos, a superação de afetos pessoais e o compromisso com a verdade. No dizer de Confúcio, "o homem nobre é imparcial como o céu; o pequeno é parcial como as sombras da terra". No tribunal maçônico, não há espaço para favoritismos, recompensas ou temores. A integridade do juiz é sua autoridade.

A Igualdade Como Princípio Universal

A justiça maçônica é igual para todos porque reconhece em cada homem um reflexo da mesma centelha divina. O Venerável Juiz não se deixa seduzir pela posição social, pelo grau ou pelo prestígio. O julgamento é isento de máscaras, é um chamado à essência. Neste sentido, o grau 7 é uma escola de equidade, onde se aprende que o templo interior só pode ser edificado sobre a base da justiça.

Aplicações Práticas: o Juiz na Vida Profana e na Loja

Justiça no Cotidiano

Na vida civil, o maçom juiz aplica os princípios do grau ao mediar conflitos, ao ser justo no ambiente de trabalho, ao não se omitir diante de injustiças. Ele busca compreender antes de punir, escutar antes de acusar, acolher antes de condenar. Sua vida torna-se reflexo do tribunal simbólico de Salomão: lugar de sabedoria, equilíbrio e amor à verdade.

Justiça na Loja

No interior da loja, o maçom do grau 7 é referência de discernimento. Sua palavra deve ser sempre ponderada. Seu comportamento deve espelhar a lei moral superior. Nas deliberações, ele não toma partido por amizade ou por interesses, mas pelo bem da ordem maçônica. Ele é a consciência coletiva do grupo, o espelho em que os outros podem se ver com Verdade.

O Juiz Como Símbolo do Eu Superior

O juiz maçom é a imagem arquetípica do Eu Superior que habita em cada Iniciado. É a instância da consciência desperta, que examina intenções, avalia condutas, corrige erros e orienta decisões. Nesse sentido, o grau 7 é mais que um rito: é prática espiritual, uma forma de vida iluminada pela equidade.

Considerações Finais

O grau 7 do Rito Escocês Antigo e Aceito propõe profunda meditação sobre a justiça, convidando o maçom a tornar-se não apenas aplicador da lei, mas expressão viva de uma consciência reta. Ao adentrar o tribunal de Salomão, o iniciado confronta-se com suas próprias imperfeições e aprende que julgar o outro só é possível quando se aprendeu a julgar a si mesmo com verdade, sem desculpas, mas também sem autocomiseração.

A justiça maçônica, enraizada na ética do perdão e na firmeza do dever, projeta um modelo de sociedade mais equitativa, onde o bem comum prevalece sobre o interesse individual e onde a verdade é temperada pela misericórdia.

Bibliografia

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 2001.

2.      SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. São Paulo: Paulus, 1990.

3.      SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Tradução Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2000.

4.      PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

5.      CONFÚCIO. Os Analectos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

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8.      HALEVI, Z'ev ben Shimon. A Cabala e a Psicologia. São Paulo: Pensamento, 1995.

9.      LÉVI, Éliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Pensamento, 2004.

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