quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A Maçonaria e o Esclarecimento Kantiano: Razão, Liberdade e a Jornada Iniciática

 Charles Evaldo Boller

A Maçonaria, como instituição iniciática, simbólica e filosófica, distingue-se das tradições religiosas confessionais ao não oferecer promessas soteriológicas[1] baseadas em dogmas de fé. Ao contrário, propõe-se como um caminho de autoesclarecimento; um processo de libertação intelectual e moral em que o indivíduo, mediante o trabalho, a disciplina e o uso consciente da razão, se emancipa das amarras da ignorância e da submissão a tutelas externas. Este ideal aproxima-se de maneira notável dos princípios iluministas e, de modo especial, da filosofia moral e política de Immanuel Kant, que definiu o Esclarecimento (Aufklärung[2]) como a "saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado" (Kant, 1784).

Tal convergência entre a filosofia kantiana e a proposta maçônica não é mera coincidência histórica, mas fruto de um terreno intelectual comum: a confiança na autonomia da razão, no primado da liberdade e na responsabilidade moral do ser humano. Enquanto o filósofo de Königsberg formulava a máxima sapere aude ("ousa saber"), a Maçonaria já exercitava, em suas oficinas, o convite a que cada iniciado "trabalhasse a pedra bruta", lapidando-se por meio da reflexão, do estudo e da prática da virtude.

Este texto examina tal convergência em profundidade, articulando os aspectos históricos, simbólicos, metafísicos, esotéricos e sociais desta afinidade, bem como apresentando aplicações práticas para o maçom contemporâneo.

Contexto Histórico e Filosófico

O Iluminismo e o Esclarecimento

O Iluminismo, movimento intelectual dos séculos XVII e XVIII, promoveu uma reorientação radical do pensamento europeu, defendendo o uso livre da razão como meio para libertar a humanidade das superstições e das opressões políticas e religiosas. Nomes como Voltaire, Diderot, Rousseau e Kant participaram deste esforço coletivo de emancipação intelectual.

No célebre ensaio "Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (1784)", "Resposta à pergunta: O que é esclarecimento?", Kant estabelece que a menoridade, isto é, a incapacidade de pensar por conta própria, não decorre de uma deficiência natural, mas de preguiça e covardia. Por comodidade, muitos preferem que outros pensem por eles, sejam sacerdotes, governantes ou líderes culturais. O Esclarecimento é, pois, um ato de coragem: libertar-se dessa tutela e fazer uso do próprio entendimento.

A Maçonaria no Século XVIII

O florescimento da Maçonaria Especulativa coincidiu com o apogeu do Iluminismo. As lojas maçônicas do período tornaram-se espaços de sociabilidade e debate, onde nobres, burgueses, artistas e cientistas discutiam ciência, filosofia e política, muitas vezes sob a proteção da fraternidade e do sigilo maçônico. A concepção de que todos os homens, independentemente de credo ou origem social, poderiam reunir-se como iguais ecoava o ideal iluminista de igualdade moral e tolerância religiosa.

A própria estrutura ritualística da Maçonaria, com seus símbolos, graus e alegorias, oferecia uma forma de ensino moral e intelectual que complementava o apelo kantiano à autonomia.

Simbolismo Maçônico e a Filosofia Kantiana

A Luz como Metáfora

Na iniciação, o neófito é conduzido das trevas à Luz. Em termos simbólicos, trevas representam ignorância, preconceito e dependência intelectual; luz é a clareza da razão, a consciência ética e a compreensão espiritual. Kant, em sua metáfora, fala do "nascer do homem para o uso público da razão", uma transição que se sobrepõe à vivência iniciática do maçom.

Contudo, a "Luz" não é imposta: é conquistada. O mestre não "" a Verdade; apenas indica caminhos e oferece ferramentas para que o aprendiz a descubra por si. Este aspecto corresponde à concepção kantiana de que a liberdade é fruto de uma autoemancipação racional, e não de uma revelação externa.

O Trabalho na Pedra Bruta

O trabalho na pedra bruta, símbolo usado na Maçonaria, é a imagem da autotransformação contínua. Para Kant, o homem moral não nasce pronto; forma-se pelo exercício constante da vontade segundo máximas universais; princípio que ele denomina imperativo categórico[3]. Assim, talhar a pedra bruta é moldar o caráter para que ele se ajuste ao "esquadro" da moralidade.

O Grande Arquiteto do Universo

Kant não nega a possibilidade de Deus, mas recusa que a moral dependa de dogmas religiosos. Para ele, a lei moral é inscrita na razão prática, e Deus é um postulado dessa razão, não um objeto de conhecimento teórico. Na Maçonaria, o Grande Arquiteto do Universo não é uma divindade sectária, mas símbolo da ordem universal e da harmonia cósmica, acessível a todos por meio da reflexão moral.

Dimensões Metafísicas e Esotéricas

Esclarecimento e Iniciação

Enquanto Kant descreve o Esclarecimento como um processo intelectual e moral, a Maçonaria reveste esse processo de linguagem ritual e simbólica, capaz de falar simultaneamente à razão e à imaginação. O uso de símbolos como a régua, o compasso e o esquadro têm função análoga às "ideias reguladoras" da razão em Kant: não são objetos empíricos, mas guias para orientar a conduta.

A Autonomia como Virtude Esotérica

A autonomia kantiana, autogoverno segundo leis racionais, é, no plano esotérico, o estado em que o iniciado se torna "mestre" de si mesmo. No simbolismo maçônico, isto se representa na capacidade de construir seu próprio templo interior, ajustando cada pedra (virtude) à arquitetura moral universal.

Dimensões Sociais e Políticas

Uso Público e Privado da Razão

Kant distingue entre o uso público da razão, quando se fala como cidadão ou estudioso a toda a comunidade, e o uso privado, quando se cumpre um papel institucional. O maçom, como cidadão, é chamado a promover a Verdade e a justiça no espaço público, mas também a respeitar as regras internas de sua "oficina" enquanto membro dela. Esta distinção, aplicada corretamente, evita confundir liberdade intelectual com anarquia.

Tolerância e Pluralismo

A Maçonaria reúne homens de diferentes credos, culturas e ideologias sob um mesmo ideal fraterno. Isto concretiza o princípio iluminista de que a diversidade de opiniões não é ameaça, mas riqueza. Kant, ao defender a liberdade religiosa e de expressão, encontra no ethos maçônico[4] um aliado natural.

Aplicações Práticas no Cotidiano Maçônico

Rituais como Exercícios de Autonomia

Cada cerimônia, quando compreendida filosoficamente, é um treino na autodisciplina, na atenção e na interiorização de valores. Repetir juramentos, rever símbolos e meditar sobre alegorias são práticas que reforçam a capacidade de agir segundo princípios e não por impulso.

Oficinas como Espaços de Esclarecimento

As sessões maçônicas, quando usadas para estudo e debate, funcionam como autênticos "laboratórios de esclarecimento", incentivando o uso público da razão, o pensamento crítico e a exposição respeitosa de divergências, algo escasso em muitos espaços sociais contemporâneos.

Formação de Lideranças Éticas

Ao alinhar-se com o ideal kantiano de agir apenas segundo máximas que possam valer como lei universal, a Maçonaria pode formar líderes comprometidos com a justiça e a dignidade humana, evitando o risco de instrumentalizar a fraternidade para interesses particulares.

Desafios Contemporâneos

Apesar de sua afinidade com o Esclarecimento kantiano, a Maçonaria enfrenta riscos de acomodação e formalismo vazio, quando o rito se desconecta de sua função andragógica. O desafio é resgatar a dimensão viva do sapere aude[5], incentivando que cada irmão não apenas participe de cerimônias, mas se engaje ativamente no próprio aperfeiçoamento e no bem comum.

Conclusão

A Maçonaria e o Esclarecimento kantiano compartilham um núcleo comum: a emancipação pela razão, a autonomia moral e a busca de uma vida digna e fraterna. O lema "sapere aude" e o símbolo da pedra bruta convergem para a mesma finalidade: fazer do homem um arquiteto consciente de si e do mundo. Na medida em que mantém vivo esse ideal, a Maçonaria realiza sua vocação histórica de ser escola de homens livres e de bons costumes.

Bibliografia

1.      ANDERSON, James. The Constitutions of the Free-Masons (1723). Documento fundacional que expressa o espírito tolerante e racionalista da Maçonaria, alinhado ao pluralismo iluminista.

2.      CASSIRER, Ernst. Filosofia do Iluminismo. São Paulo: Unesp, 1997. Apresenta uma visão panorâmica do movimento iluminista, incluindo o contexto histórico que moldou tanto Kant quanto a Maçonaria Especulativa.

3.      HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Contextualiza a herança kantiana no debate contemporâneo sobre racionalidade, autonomia e espaço público, com aplicações para o pensamento maçônico.

4.      KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é o Esclarecimento? (1784). Texto fundamental para compreender a definição kantiana de Aufklärung. Essencial para a correlação conceitual com a iniciação maçônica e o trabalho sobre a pedra bruta.

5.      YATES, Frances A. The Rosicrucian Enlightenment. London: Routledge, 1972. Analisa as raízes esotéricas e humanistas que influenciaram a cultura intelectual do século XVII e, por extensão, a simbologia maçônica.



[1] Soteriologia é o estudo teológico da salvação, ou seja, como e por que a salvação é alcançada, especialmente no contexto religioso. A palavra deriva do grego "soteria" (salvação) e "logos" (estudo). A soteriologia explora as diferentes doutrinas e concepções sobre a salvação presentes em várias religiões e sistemas filosóficos;

[2] Aufklärung é um termo filosófico alemão que remete Esclarecimento ou Iluminismo, do qual não há uma tradução exata, pois não significa simplesmente uma palavra, mas um processo ativo de saída da menoridade à maioridade. A maioridade representa uma postura autônoma e crítica por fazer uso público de sua razão;

[3] O imperativo categórico, conceito central na ética de Immanuel Kant, é um princípio moral fundamental que exige que as ações sejam realizadas por dever, independentemente de quaisquer desejos ou inclinações pessoais. Ele nos diz para agir de acordo com uma máxima que possa ser universalizada, ou seja, que possa se tornar uma lei para todos. Em essência, o imperativo categórico nos convida a tratar a humanidade, em nós mesmos e nos outros, sempre como um fim em si mesmo, e nunca apenas como um meio;

[4] O ethos maçônico refere-se ao conjunto de valores, princípios e ideais que norteiam a conduta e o comportamento dos membros da Maçonaria. É um sistema ético e moral que busca o desenvolvimento pessoal e a construção de um mundo melhor através da prática da virtude, da fraternidade e do aperfeiçoamento moral;

[5] "Sapere aude" é uma expressão latina que significa "ouse saber" ou "atreva-se a conhecer". É um convite à coragem de usar a própria razão, de questionar dogmas e crenças estabelecidas, e de buscar o conhecimento por meio do pensamento crítico e da investigação;

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