Charles Evaldo Boller
A Maçonaria, como instituição iniciática, simbólica e
filosófica, distingue-se das tradições religiosas confessionais ao não oferecer
promessas soteriológicas[1]
baseadas em dogmas de fé. Ao contrário, propõe-se como um caminho de
autoesclarecimento; um processo de libertação intelectual e moral em que o
indivíduo, mediante o trabalho, a disciplina e o uso consciente da razão, se
emancipa das amarras da ignorância e da submissão a tutelas externas. Este
ideal aproxima-se de maneira notável dos princípios iluministas e, de modo
especial, da filosofia moral e política de Immanuel Kant, que definiu o
Esclarecimento (Aufklärung[2])
como a "saída do homem de sua
menoridade, da qual ele próprio é culpado" (Kant, 1784).
Tal convergência entre a filosofia kantiana e a proposta
maçônica não é mera coincidência histórica, mas fruto de um terreno intelectual
comum: a confiança na autonomia da razão, no primado da liberdade e na
responsabilidade moral do ser humano. Enquanto o filósofo de Königsberg
formulava a máxima sapere aude ("ousa
saber"), a Maçonaria já exercitava, em suas oficinas, o convite a que
cada iniciado "trabalhasse a pedra bruta",
lapidando-se por meio da reflexão, do estudo e da prática da virtude.
Este texto examina tal convergência em profundidade, articulando
os aspectos históricos, simbólicos, metafísicos, esotéricos e sociais desta
afinidade, bem como apresentando aplicações práticas para o maçom
contemporâneo.
Contexto Histórico e Filosófico
O Iluminismo e o Esclarecimento
O Iluminismo, movimento intelectual dos séculos XVII e XVIII,
promoveu uma reorientação radical do pensamento europeu, defendendo o uso livre
da razão como meio para libertar a humanidade das superstições e das opressões
políticas e religiosas. Nomes como Voltaire, Diderot, Rousseau e Kant
participaram deste esforço coletivo de emancipação intelectual.
No célebre ensaio "Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (1784)",
"Resposta à pergunta: O que é esclarecimento?", Kant estabelece que a
menoridade, isto é, a incapacidade de pensar por conta própria, não decorre de
uma deficiência natural, mas de preguiça e covardia. Por comodidade, muitos
preferem que outros pensem por eles, sejam sacerdotes, governantes ou líderes
culturais. O Esclarecimento é, pois, um ato de coragem: libertar-se dessa
tutela e fazer uso do próprio entendimento.
A Maçonaria no Século XVIII
O florescimento da Maçonaria Especulativa coincidiu com o apogeu
do Iluminismo. As lojas maçônicas do período tornaram-se espaços de
sociabilidade e debate, onde nobres, burgueses, artistas e cientistas discutiam
ciência, filosofia e política, muitas vezes sob a proteção da fraternidade e do
sigilo maçônico. A concepção de que todos os homens, independentemente de credo
ou origem social, poderiam reunir-se como iguais ecoava o ideal iluminista de
igualdade moral e tolerância religiosa.
A própria estrutura ritualística da Maçonaria, com seus
símbolos, graus e alegorias, oferecia uma forma de ensino moral e intelectual
que complementava o apelo kantiano à autonomia.
Simbolismo Maçônico e a Filosofia Kantiana
A Luz como Metáfora
Na iniciação, o neófito é conduzido das trevas à Luz. Em termos
simbólicos, trevas representam ignorância, preconceito e dependência
intelectual; luz é a clareza da razão, a consciência ética e a compreensão
espiritual. Kant, em sua metáfora, fala do "nascer do homem para o uso público da razão", uma transição
que se sobrepõe à vivência iniciática do maçom.
Contudo, a "Luz" não é imposta: é conquistada.
O mestre não "dá" a Verdade;
apenas indica caminhos e oferece ferramentas para que o aprendiz a descubra por
si. Este aspecto corresponde à concepção kantiana de que a liberdade é fruto de
uma autoemancipação racional, e não de uma revelação externa.
O Trabalho na Pedra Bruta
O trabalho na pedra bruta, símbolo usado na Maçonaria, é a
imagem da autotransformação contínua. Para Kant, o homem moral não nasce
pronto; forma-se pelo exercício constante da vontade segundo máximas universais;
princípio que ele denomina imperativo categórico[3].
Assim, talhar a pedra bruta é moldar o caráter para que ele se ajuste ao "esquadro" da moralidade.
O Grande Arquiteto do Universo
Kant não nega a possibilidade de Deus, mas recusa que a moral
dependa de dogmas religiosos. Para ele, a lei moral é inscrita na razão
prática, e Deus é um postulado dessa razão, não um objeto de conhecimento
teórico. Na Maçonaria, o Grande Arquiteto do Universo não é uma divindade
sectária, mas símbolo da ordem universal e da harmonia cósmica, acessível a
todos por meio da reflexão moral.
Dimensões Metafísicas e Esotéricas
Esclarecimento e Iniciação
Enquanto Kant descreve o Esclarecimento como um processo
intelectual e moral, a Maçonaria reveste esse processo de linguagem ritual e
simbólica, capaz de falar simultaneamente à razão e à imaginação. O uso de
símbolos como a régua, o compasso e o esquadro têm função análoga às "ideias reguladoras" da razão em
Kant: não são objetos empíricos, mas guias para orientar a conduta.
A Autonomia como Virtude Esotérica
A autonomia kantiana, autogoverno segundo leis racionais, é, no
plano esotérico, o estado em que o iniciado se torna "mestre" de si mesmo. No
simbolismo maçônico, isto se representa na capacidade de construir seu próprio
templo interior, ajustando cada pedra (virtude) à arquitetura moral universal.
Dimensões Sociais e Políticas
Uso Público e Privado da Razão
Kant distingue entre o uso público da razão, quando se fala como
cidadão ou estudioso a toda a comunidade, e o uso privado, quando se cumpre um
papel institucional. O maçom, como cidadão, é chamado a promover a Verdade e a
justiça no espaço público, mas também a respeitar as regras internas de sua
"oficina" enquanto membro
dela. Esta distinção, aplicada corretamente, evita confundir liberdade
intelectual com anarquia.
Tolerância e Pluralismo
A Maçonaria reúne homens de diferentes credos, culturas e
ideologias sob um mesmo ideal fraterno. Isto concretiza o princípio iluminista
de que a diversidade de opiniões não é ameaça, mas riqueza. Kant, ao defender a
liberdade religiosa e de expressão, encontra no ethos maçônico[4] um
aliado natural.
Aplicações Práticas no Cotidiano Maçônico
Rituais como Exercícios de Autonomia
Cada cerimônia, quando compreendida filosoficamente, é um treino
na autodisciplina, na atenção e na interiorização de valores. Repetir
juramentos, rever símbolos e meditar sobre alegorias são práticas que reforçam
a capacidade de agir segundo princípios e não por impulso.
Oficinas como Espaços de Esclarecimento
As sessões maçônicas, quando usadas para estudo e debate,
funcionam como autênticos "laboratórios
de esclarecimento", incentivando o uso público da razão, o pensamento
crítico e a exposição respeitosa de divergências, algo escasso em muitos
espaços sociais contemporâneos.
Formação de Lideranças Éticas
Ao alinhar-se com o ideal kantiano de agir apenas segundo
máximas que possam valer como lei universal, a Maçonaria pode formar líderes
comprometidos com a justiça e a dignidade humana, evitando o risco de
instrumentalizar a fraternidade para interesses particulares.
Desafios Contemporâneos
Apesar de sua afinidade com o Esclarecimento kantiano, a
Maçonaria enfrenta riscos de acomodação e formalismo vazio, quando o rito se
desconecta de sua função andragógica. O desafio é resgatar a dimensão viva do
sapere aude[5], incentivando que cada
irmão não apenas participe de cerimônias, mas se engaje ativamente no próprio
aperfeiçoamento e no bem comum.
Conclusão
A Maçonaria e o Esclarecimento kantiano compartilham um núcleo
comum: a emancipação pela razão, a autonomia moral e a busca de uma vida digna
e fraterna. O lema "sapere aude" e o símbolo da pedra bruta convergem
para a mesma finalidade: fazer do homem um arquiteto consciente de si e do
mundo. Na medida em que mantém vivo esse ideal, a Maçonaria realiza sua
vocação histórica de ser escola de homens livres e de bons costumes.
Bibliografia
1.
ANDERSON,
James. The Constitutions of the Free-Masons (1723). Documento
fundacional que expressa o espírito tolerante e racionalista da Maçonaria,
alinhado ao pluralismo iluminista.
2.
CASSIRER, Ernst. Filosofia do Iluminismo. São
Paulo: Unesp, 1997. Apresenta uma visão panorâmica do movimento iluminista,
incluindo o contexto histórico que moldou tanto Kant quanto a Maçonaria
Especulativa.
3.
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da
Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Contextualiza a herança kantiana no
debate contemporâneo sobre racionalidade, autonomia e espaço público, com
aplicações para o pensamento maçônico.
4.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é o
Esclarecimento? (1784). Texto fundamental para compreender a definição kantiana
de Aufklärung. Essencial para a correlação conceitual com a iniciação maçônica
e o trabalho sobre a pedra bruta.
5.
YATES, Frances A. The Rosicrucian Enlightenment.
London: Routledge, 1972. Analisa as raízes esotéricas e humanistas que
influenciaram a cultura intelectual do século XVII e, por extensão, a
simbologia maçônica.
[1] Soteriologia
é o estudo teológico da salvação, ou seja, como e por que a salvação é
alcançada, especialmente no contexto religioso. A palavra deriva do grego
"soteria" (salvação) e "logos" (estudo). A soteriologia
explora as diferentes doutrinas e concepções sobre a salvação presentes em
várias religiões e sistemas filosóficos;
[2] Aufklärung
é um termo filosófico alemão que remete Esclarecimento ou Iluminismo, do qual
não há uma tradução exata, pois não significa simplesmente uma palavra, mas um
processo ativo de saída da menoridade à maioridade. A maioridade representa
uma postura autônoma e crítica por fazer uso público de sua razão;
[3] O imperativo
categórico, conceito central na ética de Immanuel Kant, é um princípio
moral fundamental que exige que as ações sejam realizadas por dever,
independentemente de quaisquer desejos ou inclinações pessoais. Ele nos diz
para agir de acordo com uma máxima que possa ser universalizada, ou seja, que
possa se tornar uma lei para todos. Em essência, o imperativo categórico
nos convida a tratar a humanidade, em nós mesmos e nos outros, sempre como um
fim em si mesmo, e nunca apenas como um meio;
[4] O ethos
maçônico refere-se ao conjunto de valores, princípios e ideais que norteiam
a conduta e o comportamento dos membros da Maçonaria. É um sistema ético e
moral que busca o desenvolvimento pessoal e a construção de um mundo melhor
através da prática da virtude, da fraternidade e do aperfeiçoamento moral;
[5] "Sapere
aude" é uma expressão latina que significa "ouse saber" ou
"atreva-se a conhecer". É um convite à coragem de usar a própria
razão, de questionar dogmas e crenças estabelecidas, e de buscar o conhecimento
por meio do pensamento crítico e da investigação;
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