Charles Evaldo Boller
Um Ensaio Filosófico-maçônico
A questão da Justiça Divina é, talvez, uma das mais antigas
inquietações da humanidade. Ao lado do problema do mal, constitui eixo das
reflexões éticas, religiosas e filosóficas desde a Antiguidade até os dias
atuais. Falar em Justiça Divina é evocar a possibilidade de que o universo, além
de sua estrutura física e causal, seja governado por uma ordem moral invisível,
regida por uma inteligência superior, aquilo que na tradição maçônica se
denomina Grande Arquiteto do Universo. É postular que, para além das
imperfeições e limitações humanas, existe uma instância de julgamento perfeito,
imparcial e absoluto, capaz de assegurar que o bem seja recompensado e o mal,
corrigido ou punido.
Essa hipótese é fundamental porque toca diretamente na maneira
como o homem compreende sua existência, seu destino e a finalidade de suas
ações. Se existe uma justiça divina, a vida humana não se reduz a um jogo cego
de acasos, mas se integra a uma ordem universal, onde cada gesto encontra
ressonância, cada escolha tem peso e cada sofrimento pode ter sentido. Se, ao
contrário, a justiça divina é apenas uma projeção das esperanças humanas,
resta-nos a tarefa de construir sistemas éticos e sociais capazes de mitigar o
mal e a injustiça, assumindo plenamente a responsabilidade pelo destino comum.
A Justiça Divina nas Religiões
O Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo convergem na afirmação
de que Deus é justo e, como Juiz Supremo, conhece os corações dos homens. Para
o Cristianismo, o Juízo Final é a expressão máxima dessa justiça: todas as
almas comparecerão diante de Deus e serão avaliadas por suas obras e intenções.
O sofrimento presente pode ser compreendido como prova ou purificação, mas a
justiça última se dará no além.
O Islamismo reforça essa concepção: Alá é o Juiz absoluto, e o
Dia do Juízo é o momento em que cada ser humano prestará contas de suas ações.
A balança moral, símbolo corânico, mostra que nada escapa ao julgamento divino,
desde as grandes ações até as mais discretas intenções.
Nas religiões orientais, como o Hinduísmo e o Budismo, a justiça
divina assume a forma do carma. Aqui, não se trata de um Deus pessoal que
julga, mas de uma lei cósmica de causa e efeito, onde cada ação gera
consequências inevitáveis. O carma pode atravessar vidas sucessivas,
configurando a justiça como um processo educativo e retributivo que transcende
a existência presente.
Essas visões mostram que, embora variadas, todas as tradições
religiosas buscaram dar resposta à angústia fundamental: o que garante que o
bem não seja em vão, e o mal não fique impune?
A Justiça Divina na Filosofia
Os filósofos também enfrentaram o dilema. Platão, em sua
República, concebeu a ideia de um mundo das Formas, onde a justiça perfeita
existe como arquétipo. A vida terrena, com todas as suas distorções, deveria
aproximar-se desse ideal. Aristóteles, mais pragmático, falou da justiça como
virtude distributiva e corretiva, mas deixou espaço para a noção de uma ordem
natural que transcende o arbítrio humano.
No período medieval, Tomás de Aquino conciliou fé cristã
e razão aristotélica, defendendo que a justiça divina se manifestava tanto na
lei natural inscrita no coração humano quanto na lei eterna de Deus. Para ele,
ainda que o mal aparente triunfar, nada escapa à Providência.
O Iluminismo trouxe uma reviravolta. Leibniz, em sua
famosa tese de que vivemos no "melhor
dos mundos possíveis", acreditava que a justiça divina se realizava na
harmonia universal, ainda que invisível a olhos humanos. Voltaire, em sua
sátira Cândido, ridicularizou tal confiança, apontando as catástrofes naturais
e as guerras como refutações da ideia de ordem justa.
Kant, por sua vez, considerou que a justiça divina não
pode ser provada empiricamente, mas é necessária como postulado da razão
prática. Sem ela, a moralidade se enfraqueceria, pois faltaria a garantia de
que agir corretamente não é absurdo num mundo dominado pela injustiça.
No pensamento moderno e contemporâneo, a questão se
fragmentou. Para Nietzsche, a justiça divina é invenção destinada a
subjugar os homens, um artifício moral dos fracos contra os fortes. Já
filósofos existencialistas, como Camus, afirmam que o Universo é
indiferente, cabendo ao homem criar sentido e justiça por si mesmo.
Evidências e Experiências
As chamadas "evidências"
da justiça divina não podem ser compreendidas no mesmo sentido das provas
científicas. Elas são narrativas, vivências e interpretações:
·
Textos Sagrados: narram casos em que a
fidelidade é recompensada, como no livro de Jó, ou em que povos inteiros sofrem
castigos divinos por seus desvios morais.
·
Milagres: relatos de acontecimentos
extraordinários interpretados como intervenções de Deus para corrigir ou
recompensar.
·
Experiências pessoais: indivíduos que
percebem em sua trajetória sinais de justiça invisível, seja no alívio de uma
dor, seja na queda de um opressor.
·
Carma: no Oriente, a noção de justiça
cósmica opera sem a necessidade de um legislador divino, mas como lei
intrínseca à realidade.
Essas experiências são subjetivas, mas desempenham papel
decisivo: alimentam a esperança de que a vida possui um equilíbrio além da
injustiça humana.
Interpretações Filosóficas da Justiça Divina
Podemos distinguir algumas concepções centrais:
·
Justiça Retributiva: recompensa o bem e
pune o mal. Paradigma clássico do paraíso e inferno.
·
Justiça Restaurativa: busca a cura, a
reconciliação e a restauração do equilíbrio moral.
·
Justiça de Provação: interpreta o
sofrimento como teste que fortalece a virtude e a fé.
·
Justiça Imparcial: afirma que Deus ou a
ordem cósmica julga sem favoritismos, transcendendo os preconceitos humanos.
Cada uma dessas visões molda a forma como comunidades religiosas
e indivíduos enfrentam o problema do mal, da dor e do destino.
Justiça Divina e Ciência
A ciência moderna, por sua natureza empírica, não pode comprovar
ou refutar a existência da justiça divina. No entanto, psicologia e
neurociências demonstram que o ser humano possui uma predisposição à crença na
justiça, denominada just world hypothesis: a tendência a acreditar que o
mundo é justo e que as pessoas recebem o que merecem. Isso revela que a ideia
de justiça divina não é apenas dogma religioso, mas necessidade psicológica
para conferir sentido à vida.
A Justiça Divina e a Maçonaria
Na Maçonaria, o conceito de Justiça Divina ocupa lugar especial.
Desde os primeiros graus, o maçom é ensinado a reconhecer a existência de uma
ordem moral superior, simbolizada pelo Grande Arquiteto do Universo. Essa ordem
transcende dogmas particulares, sendo apresentada como princípio universal.
A figura do Rei Salomão, paradigma da sabedoria e da equidade,
inspira a conduta maçônica: julgar com equilíbrio, agir com integridade,
decidir com discernimento. Na filosofia maçônica, a justiça divina não é um
tribunal distante, mas um ideal de vida. Cada maçom deve ser, em sua esfera,
reflexo dessa justiça perfeita.
Assim, a Justiça Divina, na ótica maçônica, traduz-se em valores
práticos:
·
Igualdade: tratar todos os homens com
dignidade e respeito.
·
Retidão: agir com honestidade e
fidelidade à palavra empenhada.
·
Harmonia: cultivar a paz social,
combatendo a tirania, a opressão e a intolerância.
A prática maçônica orienta o iniciado a alinhar sua conduta com
os princípios universais da justiça, de modo a ser instrumento de equilíbrio no
mundo profano.
Aplicações Práticas na Vida Contemporânea
A crença, ou mesmo a simples contemplação, da Justiça Divina
pode ser aplicada de modo concreto:
·
Na vida pessoal: cultivar uma consciência
reta, independentemente de recompensas externas. O maçom deve agir de modo
íntegro, ainda que ninguém o veja.
·
Na vida social: assumir a luta por
sistemas mais justos, combatendo corrupção, desigualdade e exclusões.
·
Na vida espiritual: compreender que cada
ato tem peso moral e ressonância cósmica, buscando harmonia interior.
·
Na vida maçônica: nos debates em loja,
aplicar a imparcialidade e a equidade, estimulando que todos possam falar e ser
ouvidos.
·
Na educação maçônica: através da
andragogia, promover reflexões filosóficas que não sejam meramente dogmáticas,
mas que ajudem o irmão a discernir por si mesmo o que é justo e a alinhar-se
com a lei superior.
Considerações Finais
A existência da Justiça Divina permanece questão de fé,
filosofia e experiência íntima. Não se prova, mas se vive. Para os que nela
acreditam, é fonte de esperança, consolo e estímulo à virtude. Para os que a
negam, é metáfora útil que inspira a busca da justiça humana.
Na Maçonaria, mais importante do que especular sobre sua
realidade Metafísica é praticar seus princípios éticos no mundo: ser justo,
íntegro e equânime, tornando-se reflexo da harmonia universal. Assim, o maçom
realiza no microcosmo de sua vida a Justiça que, no macrocosmo, é atribuída ao
Grande Arquiteto do Universo.
Bibliografia
1.
ANDERSON, James. Constituições de Anderson
(1723). Texto fundamental da Maçonaria moderna, que invoca o Grande Arquiteto
como fundamento da ordem e da justiça;
2.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Obra clássica
da filosofia cristã medieval. Fundamenta a relação entre lei natural, lei
eterna e justiça divina;
3.
BÍBLIA SAGRADA. Fonte primária de narrativas
sobre a justiça divina, especialmente nos livros de Jó, Salmos e nos
Evangelhos;
4.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Reflexão
existencialista sobre a ausência de sentido e a necessidade de criar justiça
humana;
5.
CORÃO. Texto central do Islamismo, que apresenta
Allah como juiz supremo;
6.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática.
Essencial para compreender os postulados morais da razão, incluindo a
necessidade de justiça divina como garantia da moralidade;
7.
LEIBNIZ, G. W. Teodiceia. Defesa da harmonia
universal e da justiça divina no melhor dos mundos possíveis;
8.
PLATÃO. A República. Texto fundador da filosofia
política e ética ocidental, onde a justiça aparece como ideia transcendente;
9.
UPANIXADES. Escrituras hinduístas que desenvolvem
o conceito de carma como lei cósmica;
10. VOLTAIRE.
Cândido ou o Otimismo. Crítica irônica à ideia de justiça divina como ordem
racional do universo;
Um comentário:
A complexidade humana está exposta nessa teia de pontos de vista de celebridades filosóficas por si só se resume: não é possível simplificar a obra do G.'.A.'.D.'.U.'.
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