terça-feira, 19 de agosto de 2025

Existe Justiça Divina?

 Charles Evaldo Boller

Um Ensaio Filosófico-maçônico

A questão da Justiça Divina é, talvez, uma das mais antigas inquietações da humanidade. Ao lado do problema do mal, constitui eixo das reflexões éticas, religiosas e filosóficas desde a Antiguidade até os dias atuais. Falar em Justiça Divina é evocar a possibilidade de que o universo, além de sua estrutura física e causal, seja governado por uma ordem moral invisível, regida por uma inteligência superior, aquilo que na tradição maçônica se denomina Grande Arquiteto do Universo. É postular que, para além das imperfeições e limitações humanas, existe uma instância de julgamento perfeito, imparcial e absoluto, capaz de assegurar que o bem seja recompensado e o mal, corrigido ou punido.

Essa hipótese é fundamental porque toca diretamente na maneira como o homem compreende sua existência, seu destino e a finalidade de suas ações. Se existe uma justiça divina, a vida humana não se reduz a um jogo cego de acasos, mas se integra a uma ordem universal, onde cada gesto encontra ressonância, cada escolha tem peso e cada sofrimento pode ter sentido. Se, ao contrário, a justiça divina é apenas uma projeção das esperanças humanas, resta-nos a tarefa de construir sistemas éticos e sociais capazes de mitigar o mal e a injustiça, assumindo plenamente a responsabilidade pelo destino comum.

A Justiça Divina nas Religiões

O Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo convergem na afirmação de que Deus é justo e, como Juiz Supremo, conhece os corações dos homens. Para o Cristianismo, o Juízo Final é a expressão máxima dessa justiça: todas as almas comparecerão diante de Deus e serão avaliadas por suas obras e intenções. O sofrimento presente pode ser compreendido como prova ou purificação, mas a justiça última se dará no além.

O Islamismo reforça essa concepção: Alá é o Juiz absoluto, e o Dia do Juízo é o momento em que cada ser humano prestará contas de suas ações. A balança moral, símbolo corânico, mostra que nada escapa ao julgamento divino, desde as grandes ações até as mais discretas intenções.

Nas religiões orientais, como o Hinduísmo e o Budismo, a justiça divina assume a forma do carma. Aqui, não se trata de um Deus pessoal que julga, mas de uma lei cósmica de causa e efeito, onde cada ação gera consequências inevitáveis. O carma pode atravessar vidas sucessivas, configurando a justiça como um processo educativo e retributivo que transcende a existência presente.

Essas visões mostram que, embora variadas, todas as tradições religiosas buscaram dar resposta à angústia fundamental: o que garante que o bem não seja em vão, e o mal não fique impune?

A Justiça Divina na Filosofia

Os filósofos também enfrentaram o dilema. Platão, em sua República, concebeu a ideia de um mundo das Formas, onde a justiça perfeita existe como arquétipo. A vida terrena, com todas as suas distorções, deveria aproximar-se desse ideal. Aristóteles, mais pragmático, falou da justiça como virtude distributiva e corretiva, mas deixou espaço para a noção de uma ordem natural que transcende o arbítrio humano.

No período medieval, Tomás de Aquino conciliou fé cristã e razão aristotélica, defendendo que a justiça divina se manifestava tanto na lei natural inscrita no coração humano quanto na lei eterna de Deus. Para ele, ainda que o mal aparente triunfar, nada escapa à Providência.

O Iluminismo trouxe uma reviravolta. Leibniz, em sua famosa tese de que vivemos no "melhor dos mundos possíveis", acreditava que a justiça divina se realizava na harmonia universal, ainda que invisível a olhos humanos. Voltaire, em sua sátira Cândido, ridicularizou tal confiança, apontando as catástrofes naturais e as guerras como refutações da ideia de ordem justa.

Kant, por sua vez, considerou que a justiça divina não pode ser provada empiricamente, mas é necessária como postulado da razão prática. Sem ela, a moralidade se enfraqueceria, pois faltaria a garantia de que agir corretamente não é absurdo num mundo dominado pela injustiça.

No pensamento moderno e contemporâneo, a questão se fragmentou. Para Nietzsche, a justiça divina é invenção destinada a subjugar os homens, um artifício moral dos fracos contra os fortes. Já filósofos existencialistas, como Camus, afirmam que o Universo é indiferente, cabendo ao homem criar sentido e justiça por si mesmo.

Evidências e Experiências

As chamadas "evidências" da justiça divina não podem ser compreendidas no mesmo sentido das provas científicas. Elas são narrativas, vivências e interpretações:

·         Textos Sagrados: narram casos em que a fidelidade é recompensada, como no livro de Jó, ou em que povos inteiros sofrem castigos divinos por seus desvios morais.

·         Milagres: relatos de acontecimentos extraordinários interpretados como intervenções de Deus para corrigir ou recompensar.

·         Experiências pessoais: indivíduos que percebem em sua trajetória sinais de justiça invisível, seja no alívio de uma dor, seja na queda de um opressor.

·         Carma: no Oriente, a noção de justiça cósmica opera sem a necessidade de um legislador divino, mas como lei intrínseca à realidade.

Essas experiências são subjetivas, mas desempenham papel decisivo: alimentam a esperança de que a vida possui um equilíbrio além da injustiça humana.

Interpretações Filosóficas da Justiça Divina

Podemos distinguir algumas concepções centrais:

·         Justiça Retributiva: recompensa o bem e pune o mal. Paradigma clássico do paraíso e inferno.

·         Justiça Restaurativa: busca a cura, a reconciliação e a restauração do equilíbrio moral.

·         Justiça de Provação: interpreta o sofrimento como teste que fortalece a virtude e a fé.

·         Justiça Imparcial: afirma que Deus ou a ordem cósmica julga sem favoritismos, transcendendo os preconceitos humanos.

Cada uma dessas visões molda a forma como comunidades religiosas e indivíduos enfrentam o problema do mal, da dor e do destino.

Justiça Divina e Ciência

A ciência moderna, por sua natureza empírica, não pode comprovar ou refutar a existência da justiça divina. No entanto, psicologia e neurociências demonstram que o ser humano possui uma predisposição à crença na justiça, denominada just world hypothesis: a tendência a acreditar que o mundo é justo e que as pessoas recebem o que merecem. Isso revela que a ideia de justiça divina não é apenas dogma religioso, mas necessidade psicológica para conferir sentido à vida.

A Justiça Divina e a Maçonaria

Na Maçonaria, o conceito de Justiça Divina ocupa lugar especial. Desde os primeiros graus, o maçom é ensinado a reconhecer a existência de uma ordem moral superior, simbolizada pelo Grande Arquiteto do Universo. Essa ordem transcende dogmas particulares, sendo apresentada como princípio universal.

A figura do Rei Salomão, paradigma da sabedoria e da equidade, inspira a conduta maçônica: julgar com equilíbrio, agir com integridade, decidir com discernimento. Na filosofia maçônica, a justiça divina não é um tribunal distante, mas um ideal de vida. Cada maçom deve ser, em sua esfera, reflexo dessa justiça perfeita.

Assim, a Justiça Divina, na ótica maçônica, traduz-se em valores práticos:

·         Igualdade: tratar todos os homens com dignidade e respeito.

·         Retidão: agir com honestidade e fidelidade à palavra empenhada.

·         Harmonia: cultivar a paz social, combatendo a tirania, a opressão e a intolerância.

A prática maçônica orienta o iniciado a alinhar sua conduta com os princípios universais da justiça, de modo a ser instrumento de equilíbrio no mundo profano.

Aplicações Práticas na Vida Contemporânea

A crença, ou mesmo a simples contemplação, da Justiça Divina pode ser aplicada de modo concreto:

·         Na vida pessoal: cultivar uma consciência reta, independentemente de recompensas externas. O maçom deve agir de modo íntegro, ainda que ninguém o veja.

·         Na vida social: assumir a luta por sistemas mais justos, combatendo corrupção, desigualdade e exclusões.

·         Na vida espiritual: compreender que cada ato tem peso moral e ressonância cósmica, buscando harmonia interior.

·         Na vida maçônica: nos debates em loja, aplicar a imparcialidade e a equidade, estimulando que todos possam falar e ser ouvidos.

·         Na educação maçônica: através da andragogia, promover reflexões filosóficas que não sejam meramente dogmáticas, mas que ajudem o irmão a discernir por si mesmo o que é justo e a alinhar-se com a lei superior.

Considerações Finais

A existência da Justiça Divina permanece questão de fé, filosofia e experiência íntima. Não se prova, mas se vive. Para os que nela acreditam, é fonte de esperança, consolo e estímulo à virtude. Para os que a negam, é metáfora útil que inspira a busca da justiça humana.

Na Maçonaria, mais importante do que especular sobre sua realidade Metafísica é praticar seus princípios éticos no mundo: ser justo, íntegro e equânime, tornando-se reflexo da harmonia universal. Assim, o maçom realiza no microcosmo de sua vida a Justiça que, no macrocosmo, é atribuída ao Grande Arquiteto do Universo.

Bibliografia

1.      ANDERSON, James. Constituições de Anderson (1723). Texto fundamental da Maçonaria moderna, que invoca o Grande Arquiteto como fundamento da ordem e da justiça;

2.      AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Obra clássica da filosofia cristã medieval. Fundamenta a relação entre lei natural, lei eterna e justiça divina;

3.      BÍBLIA SAGRADA. Fonte primária de narrativas sobre a justiça divina, especialmente nos livros de Jó, Salmos e nos Evangelhos;

4.      CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Reflexão existencialista sobre a ausência de sentido e a necessidade de criar justiça humana;

5.      CORÃO. Texto central do Islamismo, que apresenta Allah como juiz supremo;

6.      KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Essencial para compreender os postulados morais da razão, incluindo a necessidade de justiça divina como garantia da moralidade;

7.      LEIBNIZ, G. W. Teodiceia. Defesa da harmonia universal e da justiça divina no melhor dos mundos possíveis;

8.      PLATÃO. A República. Texto fundador da filosofia política e ética ocidental, onde a justiça aparece como ideia transcendente;

9.      UPANIXADES. Escrituras hinduístas que desenvolvem o conceito de carma como lei cósmica;

10.  VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. Crítica irônica à ideia de justiça divina como ordem racional do universo;

Um comentário:

Anônimo disse...

A complexidade humana está exposta nessa teia de pontos de vista de celebridades filosóficas por si só se resume: não é possível simplificar a obra do G.'.A.'.D.'.U.'.