Charles Evaldo Boller
O ingresso na Maçonaria é simbolicamente descrito como um
renascimento. O neófito, adentrando o espaço sagrado da loja, abandona a
condição de "menoridade", termo
que reflete a definição kantiana de esclarecimento, e caminha para a autonomia
de sua razão. No entanto, essa passagem não é nem abrupta nem garantida: ela
depende de coragem, disciplina, esforço interior e orientação adequada.
O padrinho, figura essencial no ingresso do profano, cumpre
papel transitório. Conduz o aspirante até a soleira do Templo, mas a partir do
instante em que a venda cai e a Luz se manifesta, a responsabilidade pela
evolução deixa de ser monopólio de um guia e passa a ser tarefa coletiva da loja
e, sobretudo, do próprio iniciado. É nesse ponto que surge a questão central:
qual é o dever do afilhado maçom?
Este ensaio busca responder a essa pergunta, articulando
fundamentos da filosofia maçônica, elementos da tradição iluminista, recursos
da andragogia como ciência da aprendizagem do adulto e implicações práticas
para a vida do maçom.
A Menoridade Simbólica e a Coragem da Razão
Immanuel Kant, no célebre ensaio Resposta à Pergunta: Que é o
Esclarecimento? Define a menoridade como a incapacidade de usar o próprio
entendimento sem a direção de outrem. A venda colocada nos olhos do iniciado
reproduz essa condição: trata-se de um ser humano que ainda não ousou caminhar
por si mesmo. O padrinho, ao conduzi-lo, encarna a representação de uma tutela
necessária, mas provisória.
A partir do momento em que a venda é retirada, o iniciado é
confrontado com uma nova condição de existência: a de homem livre, chamado a
assumir a autonomia da razão. Se insistisse em seguir cegamente o padrinho,
negaria a própria essência do ato iniciático. Portanto, o dever do afilhado é
emancipar-se, duvidar, experimentar, e sobretudo exercer sua liberdade de
pensar.
A Maçonaria ensina que a Luz recebida não é uma concessão
mágica, mas uma abertura de consciência que demanda esforço. A coragem de
servir-se de si mesmo é a virtude inaugural do maçom, sem a qual qualquer
iniciação seria mero formalismo.
O Papel Transitório do Padrinho
O padrinho é figura de ponte. Ele testemunha a idoneidade do
candidato, apresenta-o à loja, acompanha-o na preparação e responde por sua
honra. Mas sua função é limitada no tempo. Uma vez iniciada a jornada do
afilhado, o padrinho converte-se em irmão entre irmãos.
A continuidade da iniciação é missão coletiva da loja, entendida
como corpo docente, e missão pessoal do próprio maçom, que deve se
responsabilizar por sua caminhada. O vínculo de amizade e fraternidade entre
padrinho e afilhado subsiste. O que permanece é a recordação de um momento
crucial e o dever de nutrir uma amizade sincera.
Do ponto de vista prático, podemos dizer que o padrinho é um
facilitador inicial. Ele introduz o aprendiz no ambiente de aprendizagem, mas
não o substitui. A partir da iniciação, vigora a lógica da autoformação
acompanhada, que encontra na loja um espaço de estímulo e reflexão.
A Loja Como Comunidade de Aprendizagem
A loja não é apenas cenário de rituais: é comunidade de
aprendizagem. Como tal, reúne homens livres que, pela troca, pela crítica e
pelo debate, constroem conhecimento e cultivam virtudes. O iniciado, ao
adentrar esse espaço, encontra um conjunto de mestres preparados para guiar,
mas sobretudo para desafiar sua inteligência e sua ética.
A educação maçônica não se confunde com ensino dogmático. Ela é
orientada pela máxima socrática do "conhece-te
a ti mesmo". Ao invés de transmitir verdades acabadas, provoca o maçom
a duvidar, a questionar e a buscar sínteses pessoais. Nesse sentido, é
profundamente andragógica: trata o iniciado como adulto capaz de aprender por
experiência, reflexão e diálogo.
O dever do afilhado é participar ativamente dessa comunidade,
trazendo suas dúvidas, suas leituras e suas práticas de vida para enriquecer o
debate. O silêncio ritual, próprio do aprendiz, não significa passividade, mas
escuta ativa que prepara a intervenção consciente.
Andragogia e Aprendizagem Maçônica
Malcolm Knowles, teórico da andragogia, destaca que o adulto
aprende motivado por necessidades reais, experiências prévias e pela busca de aplicação
prática do conhecimento. Esses princípios se ajustam perfeitamente à instrução
maçônica.
·
Autonomia: o maçom deve ser sujeito de
sua formação, conduzindo suas buscas, sem depender da tutela permanente do
padrinho.
·
Experiência: a vida do iniciado é
material de aprendizagem. Ele traz ao templo sua bagagem e a transforma em
reflexão.
·
Relevância: o aprendizado precisa ter
aplicação concreta. Virtudes como fidelidade, justiça, tolerância e fraternidade
não são conceitos abstratos, mas orientações para a vida familiar, profissional
e social.
·
Aprendizagem ativa: o debate, o estudo em
grupo, os trabalhos apresentados em loja constituem práticas ativas, em
oposição ao mero acúmulo de informações.
Assim, o dever do afilhado é assumir sua aprendizagem como
tarefa vitalícia, utilizando a loja como espaço de reflexão crítica e
prática de virtudes.
A Dúvida Como Método
"Ousa saber",
sapere aude. Mas esse saber não se alcança por certezas rígidas, e sim pela dúvida
permanente. O iniciado aprende a dizer "eu não sei", e essa postura não é fragilidade, mas força
intelectual.
A dúvida, longe de paralisar, é motor de progresso. É ela
que impede o dogmatismo, que estimula a pesquisa, que abre horizontes. O maçom
esclarecido não se contenta com verdades fáceis; sabe que todo conhecimento é
relativo, parcial, histórico.
O afilhado deve cultivar esse espírito crítico. Seu dever não
é repetir fórmulas, mas testá-las, confrontá-las com a realidade, extrair delas
sentido vivo. Nesse processo, a Maçonaria torna-se escola de filosofia prática,
onde a humildade intelectual se alia à coragem de pensar.
A Morte e Ressurreição Simbólica
Cada iniciação é uma morte e uma ressurreição. O iniciado morre
para uma condição de ignorância e renasce para uma condição mais lúcida. Mas
esse processo não se encerra na cerimônia: ele é cíclico, repetido em cada
aprendizado, em cada descoberta, em cada erro superado.
O padrinho cumpre seu papel ao introduzir o afilhado nesse
ciclo. Mas a continuidade é responsabilidade do próprio maçom. Seu dever é
aceitar morrer repetidamente para velhos preconceitos, hábitos nocivos e
verdades fossilizadas, renascendo para novas perspectivas.
Essa dinâmica de transformação permanente é o que confere
sentido prático à iniciação. Não se trata de uma experiência isolada, mas de um
modo de vida.
A Fraternidade Como Alimento do Vínculo
Ainda que o vínculo formal entre padrinho e afilhado se dissolva
após a iniciação, a amizade fraterna deve permanecer. No entanto, para que não
se torne mero formalismo social, precisa ser alimentada pelo amor, entendido
aqui no sentido de ágape, o amor fraterno que une os homens em torno de um
ideal comum.
O dever do afilhado é manter viva essa chama, não por
deferência hierárquica, mas por reconhecimento e gratidão. Ao mesmo tempo, deve
cultivar vínculos semelhantes com todos os irmãos, pois a loja é comunidade
igualitária, em que nenhum elo pode ser mais fraco.
Aplicações Práticas na Vida Profana
O aprendizado maçônico não se restringe ao Templo. O dever do
afilhado é transportar a Luz recebida para sua vida cotidiana:
·
Na família: exercer a paciência, a escuta
e o diálogo, promovendo harmonia.
·
Na profissão: agir com ética,
responsabilidade e espírito de serviço.
·
Na sociedade: combater a ignorância, a
injustiça e a intolerância.
·
Em si mesmo: cultivar a disciplina
interior, a reflexão e o autoconhecimento.
A iniciação seria vã se permanecesse restrita a símbolos e palavras.
O critério de evolução é a prática da virtude. Nesse ponto, a filosofia
maçônica encontra a ação: aprende-se fazendo, e faz-se aprendendo.
O Dever de Ser Livre
O dever do afilhado maçom não é obedecer cegamente ao padrinho,
mas tornar-se livre. Livre para pensar, para duvidar, para buscar, para errar e
recomeçar. Livre para dar glória ao Grande Arquiteto do Universo não pela
submissão, mas pela dignidade da autonomia.
A iniciação é apenas o início. A caminhada é longa, exigente,
jamais concluída. O afilhado deve assumir-se como estudante permanente (nunca
um eterno aprendiz porque um dia alcançará o grau de mestre e depois o de
senhor de si mesmo), sustentado pela fraternidade da Loja, orientado pela luz
da razão e movido pela coragem de ser. Esse é seu dever supremo: tornar-se
cada vez mais humano, cada vez mais justo, cada vez mais livre.
Bibliografia
1.
ANDERSON, James. Constitutions of the
Free-Masons (1723). Texto clássico que ressalta a dimensão ética da
fraternidade, orientando o dever do afilhado em relação à loja e à sociedade;
2.
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como símbolos, como a venda e a Luz, estruturam práticas sociais e educativas;
3.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Auxilia a
compreender a morte e ressurreição simbólica da iniciação como fenômeno
espiritual e antropológico;
4.
FERRER-BENIMELI, José Antonio. La Masonería:
Historia, Leyenda y Mito. Recurso essencial para compreender o papel do
padrinho e da loja na tradição maçônica;
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GUSDORF, Georges. Traité de Métaphysique.
Fundamenta a dimensão crítica da dúvida como motor de progresso intelectual e
espiritual;
6.
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e
Filosofia Antiga. Referência para interpretar a prática maçônica como filosofia
vivida, em que a dúvida e a síntese se tornam exercício de vida;
7.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões.
Útil para compreender o caráter interior, psicológico e transformador da
iniciação maçônica;
8.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é o
Esclarecimento? Texto fundamental para compreender a noção de menoridade e
autonomia da razão, central na analogia com a iniciação maçônica;
9.
KNOWLES, Malcolm. The Adult Learner: A Neglected
Species. Obra seminal da andragogia, cuja teoria sustenta a aplicação prática
da aprendizagem ativa e autônoma no contexto maçônico;
10. PIAGET,
Jean. O Nascimento da Inteligência na Criança. Embora centrado na infância,
oferece elementos para entender o processo de passagem da heteronomia à
autonomia, paralelo à iniciação;
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