Charles Evaldo Boller
A Filosofia Como Pedra de Toque da Maçonaria
A Maçonaria, enquanto escola iniciática, simbólica e filosófica,
é amplamente conhecida pelo seu rico arsenal de símbolos e alegorias. Contudo,
paradoxalmente, a dimensão filosófica do ofício permanece sendo a menos
compreendida pelos seus próprios adeptos. É comum que irmãos, ao longo de sua
jornada, dominem razoavelmente os aspectos formais e rituais do simbolismo,
aprendendo o valor da pedra bruta, do esquadro e do compasso, mas sintam-se
inseguros diante da filosofia que se esconde por trás dessas imagens.
Tal incompreensão não decorre de incapacidade intrínseca, mas de
dois fatores históricos e instrucionais: a visão de que a filosofia é um campo
reservado a gigantes intelectuais, como Platão, Aristóteles ou Kant, e a
experiência frustrada deles de que, ao se depararem sozinhos com textos
filosóficos clássicos, desistem diante da densidade da linguagem. O resultado é
a crença equivocada de que a filosofia é apenas para alguns poucos iluminados,
e não um caminho acessível a todo aquele que busca a sabedoria.
O presente ensaio tem por objetivo desfazer essa ilusão,
demonstrando que a filosofia maçônica é acessível, prática e essencial à vida
do iniciado. Ela não é um mistério reservado a eleitos, mas um guia de conduta
e uma metodologia de autodescoberta.
O Conceito de Filosofia: da Grécia à Loja
A palavra filosofia deriva do grego "filosofia", significando literalmente "amor à sabedoria". Os gregos
antigos, especialmente Sócrates, Platão e Aristóteles, foram os primeiros a
organizar sistematicamente o pensar humano, distinguindo entre filosofia
natural, filosofia moral e filosofia metafísica.
·
Filosofia Natural: corresponde ao estudo
das leis da natureza, o que, na Antiguidade, era confundido com a própria
ciência.
·
Filosofia Moral: trata da conduta humana,
dos costumes e da ética.
·
Filosofia Metafísica: volta-se às causas
primeiras, aos fundamentos do ser e da existência.
A Maçonaria, ao adotar a filosofia como parte de seu arcabouço,
não o faz em chave puramente teórica, mas prática: o amor à sabedoria deve
refletir-se na vida cotidiana do iniciado. A sabedoria não é um acúmulo de
erudição, mas o uso inteligente do conhecimento, orientado pelo discernimento
ético.
Neste sentido, a filosofia maçônica é menos um conjunto de
doutrinas fixas e mais uma metodologia iniciática: ela convida o maçom a
filosofar, a tornar-se amigo da sabedoria, aplicando símbolos e alegorias como
ferramentas de reflexão existencial.
Sabedoria, Conhecimento e Inteligência: o Tripé do Pensamento Maçônico
É importante distinguir três conceitos que frequentemente se
confundem:
·
Conhecimento: é a apreensão de dados e
informações. É acessível a todos e relativamente fácil de adquirir.
·
Inteligência: é a capacidade de organizar
o conhecimento, estabelecer conexões, deduzir consequências.
·
Sabedoria: é o uso prudente e ético do
conhecimento e da inteligência.
A sabedoria, objetivo supremo da jornada maçônica, não é dada de
imediato. É fruto de uma disciplina interior, de trabalho contínuo, de
confrontação com dilemas éticos. Por isso, na Maçonaria, o maçom é chamado a
não apenas instruir-se, mas a filosofar: refletir sobre as consequências de
seus atos, sobre o significado dos símbolos, sobre os limites de sua própria
existência.
Aqui, o mito do Jardim do Éden é uma metáfora eficaz. Ao comer
do fruto da árvore da sabedoria, Adão e Eva tomam consciência de si mesmos e de
sua capacidade de escolha. A expulsão do paraíso não deve ser lida apenas como
punição, mas como a inauguração da responsabilidade ética: o homem é livre, mas
deve lidar com as consequências de suas escolhas.
Pensadores da Filosofia Maçônica
Ao longo dos séculos, diversos maçons se dedicaram a pensar a
filosofia do ofício. Cada um, condicionado pelo seu tempo, ofereceu uma
perspectiva singular:
·
William Preston (1742-1818): Escocês,
destacou a importância do conhecimento e da educação racional como fundamento da
filosofia maçônica. Para ele, a instrução intelectual era inseparável da vida
iniciática;
·
Karl Christian Friedrich Krause
(1781-1832): filósofo e jurista alemão, enfatizou que a Maçonaria deveria ser
compreendida como um sistema ético voltado à ordem social e à responsabilidade
humana. Sua filosofia do direito influenciou o entendimento de que a Maçonaria
não é apenas uma associação de fraternidade, mas uma escola de cidadania;
·
George Oliver (1782-1867): clérigo e
erudito inglês, via a Maçonaria como continuidade de uma tradição antiquíssima,
remontando a Seth e aos patriarcas bíblicos. Sua leitura tradicionalista
ressaltava a dimensão espiritual e revelada da Ordem;
·
Albert Pike (1809-1891): estadista e
erudito norte-americano, em sua monumental obra Morals and Dogma, enfatizou a
dimensão Metafísica da Maçonaria, buscando nela um sistema filosófico universal
que unisse simbolismo, ética e esoterismo;
Esses autores demonstram a pluralidade de leituras possíveis. A
filosofia maçônica não é um corpo fechado de doutrinas, mas um campo aberto
de reflexão.
Símbolos e Alegorias: Pedagogia Filosófica da Maçonaria
A grande originalidade da filosofia maçônica reside no uso de
símbolos e alegorias como ferramentas de pensamento.
·
Símbolos: objetos materiais (compasso,
esquadro, pedra bruta, pedra cúbica) que remetem a princípios éticos e
filosóficos. Embora o objeto permaneça o mesmo ao longo do tempo, a
interpretação muda conforme o contexto histórico e cultural.
·
Alegorias: narrativas ou imagens (o
Templo de Salomão, a lenda de Hiram, o Jardim do Éden) que encobrem verdades
universais sob o véu da imaginação.
A filosofia maçônica, portanto, não exige erudição livresca.
Exige, sim, sensibilidade hermenêutica: a capacidade de interpretar, meditar e
adaptar símbolos e alegorias às circunstâncias pessoais e sociais de cada
época.
O Ponto Dentro do Círculo: uma Metáfora Filosófica
Entre os muitos símbolos maçônicos, o ponto dentro do círculo
merece destaque. Ele sugere a necessidade de equilíbrio entre liberdade e
limite, entre desejo e razão.
·
O ponto representa o indivíduo, centro de
consciência e liberdade.
·
O círculo representa os limites impostos pela
ética, pela lei natural, pelos costumes.
Filosofar, neste contexto, é aprender a mover-se dentro do
círculo sem perder-se nos extremos. É saber ajustar-se às circunstâncias,
controlando emoções e paixões. A sabedoria consiste em definir conscientemente
os limites do círculo: até onde se pode ir sem perder a dignidade, a
fraternidade, a justiça.
Aplicação prática: na vida cotidiana, o ponto no círculo
ensina ao maçom a estabelecer seus próprios limites éticos. Numa sociedade
marcada pela competição e pela hostilidade, o maçom deve saber até onde pode
ceder, até onde deve resistir, para manter sua integridade.
Filosofia Maçônica Como Instruções da Autotransformação
A filosofia maçônica não é especulação abstrata, mas método de
autotransformação. Ao refletir sobre símbolos e alegorias, o maçom é levado a
examinar-se a si mesmo, educando seus desejos, disciplinando suas paixões e
ampliando sua consciência.
·
Dimensão individual: a filosofia convida
o maçom a cultivar virtudes como prudência, temperança, coragem e justiça.
·
Dimensão social: a filosofia o impele a
atuar como cidadão consciente, promovendo liberdade, igualdade e fraternidade.
·
Dimensão espiritual: a filosofia o coloca
diante do mistério do ser, convidando-o a uma religiosidade sem dogmas, fundada
na experiência do Sagrado.
Assim, a filosofia maçônica é prática de vida: orienta
escolhas, educa atitudes, guia o trabalho interior.
Aplicações Práticas da Filosofia Maçônica
·
Na vida pessoal: o maçom aplica a
filosofia para alcançar equilíbrio emocional, controlar impulsos e orientar-se
pela prudência.
·
Na vida familiar: a filosofia ensina a
viver com paciência, tolerância e amor, cultivando o lar como espaço de
harmonia.
·
Na vida profissional: a filosofia
maçônica estimula a ética no trabalho, a justiça nas relações e a honestidade
nas transações.
·
Na vida social e política: a filosofia
convida à participação cidadã, à defesa da Democracia e à luta contra
injustiças e arbitrariedades.
·
Na vida iniciática: a filosofia, aplicada
nos trabalhos de Loja, torna o ambiente maçônico espaço de meditação coletiva,
de busca conjunta pela sabedoria.
Filosofia para Todos
A filosofia da Maçonaria não é para poucos. É para todos aqueles
que, com humildade e disciplina, se dispõem a refletir sobre os símbolos,
alegorias e princípios da Ordem. Ela não exige gênio intelectual, mas abertura
de espírito e constância no trabalho interior.
O iniciado não é aquele que acumula conhecimentos, mas aquele
que, pela filosofia, transforma sua vida em expressão viva da sabedoria. Assim,
honra o Grande Arquiteto do Universo e contribua para a construção de uma
sociedade mais justa e fraterna.
Bibliografia
1.
BENOÎT, Pierre; VAUX, Roland de. A Bíblia de
Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973; referência essencial para compreender o
uso de alegorias e narrativas bíblicas na Maçonaria, especialmente o mito do
Éden, interpretado como metáfora do livre-arbítrio e da responsabilidade ética;
2.
FONSECA, Geraldo Ribeiro da. A Egolatria e o
Escopo Ético da Maçonaria. Londrina: A Trolha, 2015; obra contemporânea que
analisa a relação entre filosofia, ética e autotransformação na prática
maçônica, oferecendo interpretações modernas sobre a função da Ordem;
3.
GRANDE LOJA DO Paraná. Ritual do Grau 01,
Aprendiz Maçom, Rito Escocês Antigo e Aceito. Curitiba: GLP, 2013; fonte ritualística
que mostra como a filosofia se encontra velada no simbolismo dos primeiros
graus, convidando o iniciado a uma reflexão contínua;
4.
OLIVER, George. The Antiquities of Freemasonry.
Londres, 1823; obra fundamental para compreender a leitura tradicionalista da Maçonaria,
vinculando-a a antigas tradições religiosas e filosóficas;
5.
PIKE,
Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of
Freemasonry. Charleston, 1871; clássico monumental, em que Pike
interpreta a filosofia maçônica em chave Metafísica e universalista,
influenciando profundamente a tradição do Rito Escocês Antigo e Aceito;
6.
RODRIGUES, Raimundo. A Filosofia da Maçonaria
Simbólica. Londrina: A Trolha, 2007; estudo sistemático sobre a filosofia
maçônica, explorando suas raízes históricas e seu papel instrucional, sendo uma
leitura indispensável para quem deseja compreender a dimensão filosófica da
Ordem;
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