terça-feira, 19 de agosto de 2025

Filosofia para Poucos: Ensaio sobre a Filosofia Maçônica

 Charles Evaldo Boller

A Filosofia Como Pedra de Toque da Maçonaria

A Maçonaria, enquanto escola iniciática, simbólica e filosófica, é amplamente conhecida pelo seu rico arsenal de símbolos e alegorias. Contudo, paradoxalmente, a dimensão filosófica do ofício permanece sendo a menos compreendida pelos seus próprios adeptos. É comum que irmãos, ao longo de sua jornada, dominem razoavelmente os aspectos formais e rituais do simbolismo, aprendendo o valor da pedra bruta, do esquadro e do compasso, mas sintam-se inseguros diante da filosofia que se esconde por trás dessas imagens.

Tal incompreensão não decorre de incapacidade intrínseca, mas de dois fatores históricos e instrucionais: a visão de que a filosofia é um campo reservado a gigantes intelectuais, como Platão, Aristóteles ou Kant, e a experiência frustrada deles de que, ao se depararem sozinhos com textos filosóficos clássicos, desistem diante da densidade da linguagem. O resultado é a crença equivocada de que a filosofia é apenas para alguns poucos iluminados, e não um caminho acessível a todo aquele que busca a sabedoria.

O presente ensaio tem por objetivo desfazer essa ilusão, demonstrando que a filosofia maçônica é acessível, prática e essencial à vida do iniciado. Ela não é um mistério reservado a eleitos, mas um guia de conduta e uma metodologia de autodescoberta.

O Conceito de Filosofia: da Grécia à Loja

A palavra filosofia deriva do grego "filosofia", significando literalmente "amor à sabedoria". Os gregos antigos, especialmente Sócrates, Platão e Aristóteles, foram os primeiros a organizar sistematicamente o pensar humano, distinguindo entre filosofia natural, filosofia moral e filosofia metafísica.

·         Filosofia Natural: corresponde ao estudo das leis da natureza, o que, na Antiguidade, era confundido com a própria ciência.

·         Filosofia Moral: trata da conduta humana, dos costumes e da ética.

·         Filosofia Metafísica: volta-se às causas primeiras, aos fundamentos do ser e da existência.

A Maçonaria, ao adotar a filosofia como parte de seu arcabouço, não o faz em chave puramente teórica, mas prática: o amor à sabedoria deve refletir-se na vida cotidiana do iniciado. A sabedoria não é um acúmulo de erudição, mas o uso inteligente do conhecimento, orientado pelo discernimento ético.

Neste sentido, a filosofia maçônica é menos um conjunto de doutrinas fixas e mais uma metodologia iniciática: ela convida o maçom a filosofar, a tornar-se amigo da sabedoria, aplicando símbolos e alegorias como ferramentas de reflexão existencial.

Sabedoria, Conhecimento e Inteligência: o Tripé do Pensamento Maçônico

É importante distinguir três conceitos que frequentemente se confundem:

·         Conhecimento: é a apreensão de dados e informações. É acessível a todos e relativamente fácil de adquirir.

·         Inteligência: é a capacidade de organizar o conhecimento, estabelecer conexões, deduzir consequências.

·         Sabedoria: é o uso prudente e ético do conhecimento e da inteligência.

A sabedoria, objetivo supremo da jornada maçônica, não é dada de imediato. É fruto de uma disciplina interior, de trabalho contínuo, de confrontação com dilemas éticos. Por isso, na Maçonaria, o maçom é chamado a não apenas instruir-se, mas a filosofar: refletir sobre as consequências de seus atos, sobre o significado dos símbolos, sobre os limites de sua própria existência.

Aqui, o mito do Jardim do Éden é uma metáfora eficaz. Ao comer do fruto da árvore da sabedoria, Adão e Eva tomam consciência de si mesmos e de sua capacidade de escolha. A expulsão do paraíso não deve ser lida apenas como punição, mas como a inauguração da responsabilidade ética: o homem é livre, mas deve lidar com as consequências de suas escolhas.

Pensadores da Filosofia Maçônica

Ao longo dos séculos, diversos maçons se dedicaram a pensar a filosofia do ofício. Cada um, condicionado pelo seu tempo, ofereceu uma perspectiva singular:

·         William Preston (1742-1818): Escocês, destacou a importância do conhecimento e da educação racional como fundamento da filosofia maçônica. Para ele, a instrução intelectual era inseparável da vida iniciática;

·         Karl Christian Friedrich Krause (1781-1832): filósofo e jurista alemão, enfatizou que a Maçonaria deveria ser compreendida como um sistema ético voltado à ordem social e à responsabilidade humana. Sua filosofia do direito influenciou o entendimento de que a Maçonaria não é apenas uma associação de fraternidade, mas uma escola de cidadania;

·         George Oliver (1782-1867): clérigo e erudito inglês, via a Maçonaria como continuidade de uma tradição antiquíssima, remontando a Seth e aos patriarcas bíblicos. Sua leitura tradicionalista ressaltava a dimensão espiritual e revelada da Ordem;

·         Albert Pike (1809-1891): estadista e erudito norte-americano, em sua monumental obra Morals and Dogma, enfatizou a dimensão Metafísica da Maçonaria, buscando nela um sistema filosófico universal que unisse simbolismo, ética e esoterismo;

Esses autores demonstram a pluralidade de leituras possíveis. A filosofia maçônica não é um corpo fechado de doutrinas, mas um campo aberto de reflexão.

Símbolos e Alegorias: Pedagogia Filosófica da Maçonaria

A grande originalidade da filosofia maçônica reside no uso de símbolos e alegorias como ferramentas de pensamento.

·         Símbolos: objetos materiais (compasso, esquadro, pedra bruta, pedra cúbica) que remetem a princípios éticos e filosóficos. Embora o objeto permaneça o mesmo ao longo do tempo, a interpretação muda conforme o contexto histórico e cultural.

·         Alegorias: narrativas ou imagens (o Templo de Salomão, a lenda de Hiram, o Jardim do Éden) que encobrem verdades universais sob o véu da imaginação.

A filosofia maçônica, portanto, não exige erudição livresca. Exige, sim, sensibilidade hermenêutica: a capacidade de interpretar, meditar e adaptar símbolos e alegorias às circunstâncias pessoais e sociais de cada época.

O Ponto Dentro do Círculo: uma Metáfora Filosófica

Entre os muitos símbolos maçônicos, o ponto dentro do círculo merece destaque. Ele sugere a necessidade de equilíbrio entre liberdade e limite, entre desejo e razão.

·         O ponto representa o indivíduo, centro de consciência e liberdade.

·         O círculo representa os limites impostos pela ética, pela lei natural, pelos costumes.

Filosofar, neste contexto, é aprender a mover-se dentro do círculo sem perder-se nos extremos. É saber ajustar-se às circunstâncias, controlando emoções e paixões. A sabedoria consiste em definir conscientemente os limites do círculo: até onde se pode ir sem perder a dignidade, a fraternidade, a justiça.

Aplicação prática: na vida cotidiana, o ponto no círculo ensina ao maçom a estabelecer seus próprios limites éticos. Numa sociedade marcada pela competição e pela hostilidade, o maçom deve saber até onde pode ceder, até onde deve resistir, para manter sua integridade.

Filosofia Maçônica Como Instruções da Autotransformação

A filosofia maçônica não é especulação abstrata, mas método de autotransformação. Ao refletir sobre símbolos e alegorias, o maçom é levado a examinar-se a si mesmo, educando seus desejos, disciplinando suas paixões e ampliando sua consciência.

·         Dimensão individual: a filosofia convida o maçom a cultivar virtudes como prudência, temperança, coragem e justiça.

·         Dimensão social: a filosofia o impele a atuar como cidadão consciente, promovendo liberdade, igualdade e fraternidade.

·         Dimensão espiritual: a filosofia o coloca diante do mistério do ser, convidando-o a uma religiosidade sem dogmas, fundada na experiência do Sagrado.

Assim, a filosofia maçônica é prática de vida: orienta escolhas, educa atitudes, guia o trabalho interior.

Aplicações Práticas da Filosofia Maçônica

·         Na vida pessoal: o maçom aplica a filosofia para alcançar equilíbrio emocional, controlar impulsos e orientar-se pela prudência.

·         Na vida familiar: a filosofia ensina a viver com paciência, tolerância e amor, cultivando o lar como espaço de harmonia.

·         Na vida profissional: a filosofia maçônica estimula a ética no trabalho, a justiça nas relações e a honestidade nas transações.

·         Na vida social e política: a filosofia convida à participação cidadã, à defesa da Democracia e à luta contra injustiças e arbitrariedades.

·         Na vida iniciática: a filosofia, aplicada nos trabalhos de Loja, torna o ambiente maçônico espaço de meditação coletiva, de busca conjunta pela sabedoria.

Filosofia para Todos

A filosofia da Maçonaria não é para poucos. É para todos aqueles que, com humildade e disciplina, se dispõem a refletir sobre os símbolos, alegorias e princípios da Ordem. Ela não exige gênio intelectual, mas abertura de espírito e constância no trabalho interior.

O iniciado não é aquele que acumula conhecimentos, mas aquele que, pela filosofia, transforma sua vida em expressão viva da sabedoria. Assim, honra o Grande Arquiteto do Universo e contribua para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

Bibliografia

1.      BENOÎT, Pierre; VAUX, Roland de. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973; referência essencial para compreender o uso de alegorias e narrativas bíblicas na Maçonaria, especialmente o mito do Éden, interpretado como metáfora do livre-arbítrio e da responsabilidade ética;

2.      FONSECA, Geraldo Ribeiro da. A Egolatria e o Escopo Ético da Maçonaria. Londrina: A Trolha, 2015; obra contemporânea que analisa a relação entre filosofia, ética e autotransformação na prática maçônica, oferecendo interpretações modernas sobre a função da Ordem;

3.      GRANDE LOJA DO Paraná. Ritual do Grau 01, Aprendiz Maçom, Rito Escocês Antigo e Aceito. Curitiba: GLP, 2013; fonte ritualística que mostra como a filosofia se encontra velada no simbolismo dos primeiros graus, convidando o iniciado a uma reflexão contínua;

4.      OLIVER, George. The Antiquities of Freemasonry. Londres, 1823; obra fundamental para compreender a leitura tradicionalista da Maçonaria, vinculando-a a antigas tradições religiosas e filosóficas;

5.      PIKE, Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry. Charleston, 1871; clássico monumental, em que Pike interpreta a filosofia maçônica em chave Metafísica e universalista, influenciando profundamente a tradição do Rito Escocês Antigo e Aceito;

6.      RODRIGUES, Raimundo. A Filosofia da Maçonaria Simbólica. Londrina: A Trolha, 2007; estudo sistemático sobre a filosofia maçônica, explorando suas raízes históricas e seu papel instrucional, sendo uma leitura indispensável para quem deseja compreender a dimensão filosófica da Ordem;

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