sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

A Lapidação Interior e a Construção do Homem Inteiro

 Charles Evaldo Boller

A Maçonaria apresenta-se menos como uma escola que transmite conteúdos e mais como um método que provoca o ser humano a pensar por si mesmo. Ao ingressar nesse caminho, o iniciado percebe gradualmente que não receberá verdades prontas, mas instrumentos simbólicos para construir o próprio edifício interior. Essa constatação dialoga diretamente com a filosofia clássica, sobretudo com a herança socrática, segundo a qual o saber não pode ser imposto de fora, mas deve emergir do interior do indivíduo pela reflexão e pela experiência. O templo maçônico, nesse sentido, assemelha-se a um campo arado: não entrega a colheita, mas prepara o solo para que cada um semeie e colha conforme seu esforço e discernimento.

Sócrates afirmava que o conhecimento começa pelo reconhecimento da própria ignorância, e essa máxima encontra reflexo profundo na iniciação maçônica. O neófito, ao se deparar com símbolos que não se explicam, é levado a um estado de inquietação fértil. O esquadro, o compasso e a pedra bruta funcionam como espelhos: refletem não respostas, mas perguntas. Tal como na maiêutica socrática, o símbolo não ensina diretamente; ele faz nascer ideias que já estavam latentes. O aprendizado torna-se, assim, um parto interior.

Essa concepção do conhecimento como algo dinâmico e progressivo também se harmoniza com a visão de Heráclito, para quem tudo flui e nada permanece idêntico. As Verdades do maçom não são blocos de pedra imutáveis, mas andaimes provisórios. Na medida em que a consciência amadurece, aquilo que antes parecia sólido revela novas faces. A Maçonaria não teme essa mutabilidade; ao contrário, faz dela um princípio de um sistema de ensino. O símbolo é como um rio: quem nele entra hoje não encontra as mesmas águas de ontem, ainda que o leito permaneça.

Quando Platão distingue opinião e conhecimento, ele aponta que a maioria dos homens permanece no nível das sombras, enquanto poucos se dispõem a subir em direção à Luz. A Maçonaria traduz essa ascensão em linguagem simbólica. Cada grau, cada lenda e cada ritual representam degraus de uma escada interior. Não se trata de acumular títulos, mas de ampliar a capacidade de ver. A dialética platônica, que avança por tese, antítese e síntese, reaparece na prática maçônica como confronto sereno de ideias, escuta atenta e elaboração interior, acessível inclusive àqueles sem formação acadêmica formal.

A crítica à fragmentação do saber já estava implícita em Aristóteles, quando afirmava que a virtude nasce do equilíbrio. A educação profana moderna, ao compartimentar o homem em funções e especialidades, frequentemente perde de vista o todo. A Maçonaria, ao contrário, busca formar o homem inteiro. Moral, razão, emoção e espiritualidade não são compartimentos isolados, mas faces de uma mesma pedra em lapidação. Essa abordagem integral pode ser comparada a uma catedral: não se sustenta por uma única coluna, mas pela harmonia de todas.

Do ponto de vista construtivo, sugere-se que o maçom deva cultivar a curiosidade sem cair na indiscrição, a ação sem abandonar o silêncio, o pensamento sem desprezar o sentir. Essas tensões criativas lembram a ética do meio-termo aristotélico e podem ser aplicadas de forma prática na vida cotidiana. Como sugestão ilustrativa, o leitor pode observar suas próprias decisões diárias como pequenos rituais: cada escolha ética é um golpe de malhete que aproxima a pedra de sua forma cúbica. Do mesmo modo, reservar momentos de silêncio e reflexão, longe do ruído constante, funciona como o polimento fino que dá acabamento à obra.

A Maçonaria também se revela como escola de ação política no sentido mais elevado do termo. Ao formar homens capazes de governar a si mesmos, prepara-os para servir à coletividade com justiça e responsabilidade. Essa visão aproxima-se do ideal do filósofo-rei platônico, não como governante autoritário, mas como aquele que age orientado pela consciência e pelo bem comum. O maçom não busca o poder pelo poder; ele compreende que agir corretamente é, em si, um ato político transformador.

Em última instância, aparece a compreensão de que o templo não é feito de pedra, mas de atitudes. Cada homem é um santuário vivo, cujas portas são os sentidos e cujo altar é a consciência. Lapidar-se é um trabalho silencioso e contínuo, mas seus efeitos irradiam para além do indivíduo. Assim como uma única pedra bem talhada sustenta todo um arco, um ser humano íntegro pode sustentar, com sua presença ética, parte significativa do edifício social. Essa é a contribuição mais profunda da filosofia maçônica: formar consciências livres que, ao se transformarem, transformam também o mundo ao redor.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001. Obra clássica que fundamenta a ética das virtudes e do equilíbrio, oferecendo base sólida para compreender a formação moral integral proposta pela filosofia maçônica;

2.      HERÁCLITO. Fragmentos. São Paulo: Paulus, 2002. Texto essencial para a compreensão da ideia de fluxo e transformação contínua, conceito que dialoga diretamente com a noção maçônica de verdades dinâmicas;

3.      PLATÃO. A República. São Paulo: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. Referência central sobre dialética, política e educação do homem justo, cujos princípios encontram paralelos simbólicos na estrutura iniciática da Maçonaria;

4.      PLATÃO. Mênon. São Paulo: Loyola, 2001. Diálogo fundamental para o conceito de anamnese, que ilumina a compreensão do conhecimento como recordação de verdades latentes, amplamente explorada no método simbólico maçônico;

5.      SÓCRATES. Apologia de Sócrates. São Paulo: abril Cultural, 1983. Texto emblemático sobre autoconhecimento, ética e coerência entre pensamento e ação, pilares centrais da formação filosófica maçônica;

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