quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

A Espada Interior e o Trabalho de Si Mesmo

 Charles Evaldo Boller

A filosofia maçônica ensina, desde seus primeiros símbolos, que o homem não nasce pronto: ele se constrói. No Rito Escocês Antigo e Aceito, essa ideia aparece com clareza ao afirmar que o templo não é feito de pedras externas, mas de valores, consciência e caráter. Trabalhar sobre si mesmo é, portanto, a obra maior do maçom. Não se trata de um esforço ocasional, mas de um labor contínuo, semelhante ao de um artesão que, dia após dia, retorna à mesma peça para corrigir imperfeições quase invisíveis.

A vida moderna, marcada pela pressa e pela competição, frequentemente empurra o indivíduo para fora de si. Busca-se reconhecimento, poder ou conforto, enquanto o interior permanece descuidado. A filosofia do Rito Escocês Antigo e Aceito atua como um chamado ao retorno. Ela recorda que nenhuma conquista externa se sustenta se o templo interior estiver frágil. É como erguer uma casa sobre areia: por mais bela que seja, cedo ou tarde ruirá. A metáfora é simples, mas profunda, e atravessa tanto a tradição maçônica quanto a filosofia clássica.

Aristóteles ensinava que a felicidade não é um acaso, mas o resultado da prática constante da virtude. Essa ideia conversa diretamente com o método maçônico: repetir bons hábitos, vigiar pensamentos, corrigir desvios. O maçom aprende que não basta conhecer o bem; é preciso exercitá-lo até que se torne parte de sua natureza. Assim como o músculo se fortalece pelo uso, o caráter se consolida pela repetição consciente.

N isso a metáfora da espada simbólica ocupa lugar central. Essa espada não fere corpos, mas corta ilusões. Seu fio é a lógica, capaz de separar o verdadeiro do falso; seu corpo é a psicologia, que permite compreender as próprias motivações e fragilidades; sua organização é a gnosiologia, que dá método e ordem ao conhecimento. Sem essa espada interior, o homem torna-se presa fácil de ideias sedutoras, paixões desordenadas e raciocínios mal construídos. Defender o templo interior é, antes de tudo, aprender a pensar bem.

Aqui aparece o ensinamento de Sócrates: "uma vida não examinada não merece ser vivida". Examinar-se é um ato de coragem. Exige admitir erros, reconhecer limites e aceitar que o inimigo mais persistente habita dentro de nós. O Rito Escocês Antigo e Aceito não propõe a negação da realidade, mas o enfrentamento lúcido dela. A batalha não acontece no exterior, mas no silêncio da consciência.

A espiritualidade, nesse contexto, não se opõe à razão; ao contrário, a completa. A fé maçônica no Grande Arquiteto do Universo não é ingênua nem dogmática, mas racional e simbólica. É a confiança de que o Universo possui ordem, sentido e coerência. Immanuel Kant afirmava que duas coisas o enchiam de admiração: o céu estrelado sobre nós e a lei moral dentro de nós. A Maçonaria une essas duas dimensões, mostrando que a contemplação do cosmos e o aperfeiçoamento ético são faces da mesma busca.

Como sugestão prática, convida-se o maçom a transformar o estudo em hábito vivo. Ler, refletir e dialogar não devem ser atividades restritas à loja, mas prolongamentos naturais da vida cotidiana. Outro exercício simples é a vigilância diária dos próprios pensamentos: perguntar-se, ao final do dia, quais ideias fortaleceram o templo e quais abriram fissuras. Pequenos ajustes feitos constantemente evitam grandes ruínas no futuro.

Há ainda a dimensão coletiva. O templo interior bem cuidado irradia equilíbrio para o ambiente. Relações familiares tornam-se mais harmoniosas, decisões profissionais mais éticas, e a convivência social mais fraterna. A Maçonaria ensina que o homem transformado transforma o mundo não pelo discurso, mas pelo exemplo silencioso. A vitória mais profunda é aquela que não faz ruído.

Em síntese, a filosofia do Rito Escocês Antigo e Aceito propõe uma técnica de ensino da consciência. Trabalhar, vigiar, corrigir e perseverar são verbos simples, mas exigentes. A espada interior e a trolha simbólica lembram que construir e defender são tarefas inseparáveis. Quem aceita esse caminho descobre que a liberdade não é ausência de limites, mas domínio de si mesmo, e que a felicidade nasce quando o ser humano se torna coerente com aquilo que reconhece como verdadeiro.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001. Obra fundamental para compreender a felicidade como resultado da prática virtuosa e do hábito consciente, conceito central para a ética aplicada à construção do templo interior;

2.      JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. Obra indispensável para a compreensão simbólica do inconsciente e do processo de individuação, em diálogo com a construção do templo interior;

3.      KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Análise rigorosa do dever moral e da autonomia da vontade, essencial para compreender a ética como disciplina consciente do agir;

4.      PIAGET, Jean. Epistemologia Genética. São Paulo: Martins Fontes, 1990. Contribuição essencial para a gnosiologia, esclarecendo os processos de formação do conhecimento humano e sua organização racional;

5.      PLATÃO. A República. São Paulo: Edipro, 2014. Texto clássico que investiga a justiça e a harmonia da alma, oferecendo bases filosóficas para a ideia de ordem interior defendida pela filosofia maçônica;

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