Charles Evaldo Boller
Abstrato
Ser idiota não é ingenuidade, mas lucidez que incomoda. O maçom
aprende a unir bondade e prudência: compaixão sem servilismo, firmeza sem cinismo.
Só assim evita a armadilha social que ridiculariza a esperança e glorifica a
esperteza.
Ser um "idiota",
na acepção de Dostoiévski, não é ser um tolo ingênuo, mas alguém que insiste em
cultivar a bondade e a beleza em um mundo que só reconhece o cálculo e o
cinismo. O príncipe Míchkin, protagonista de O Idiota, encarna essa lucidez
dolorosa: ele sente a dor alheia como sua e, por isso, é visto como um
estrangeiro no meio social. A filosofia maçônica comunica-se intensamente com
essa figura, pois também propõe a lapidação do homem pela virtude, mas adverte
que a bondade precisa ser temperada pela prudência, sob risco de degenerar em
fraqueza. O desafio não é escolher entre a ingenuidade ou o cinismo, mas
encontrar o equilíbrio: agir com compaixão sem ser manipulado, com firmeza sem
ser conivente, com esperança sem ser ridicularizado. Evitar ser considerado
idiota, portanto, é unir coração e inteligência, mantendo-se íntegro sem
abdicar da lucidez.
O Maçom e os Valores que Desafiam a Lógica Utilitarista
No limiar do século XIX, Dostoiévski deu à humanidade um dos
arquétipos mais desconcertantes da literatura universal: o príncipe Liev
Nikolaievitch Míchkin, protagonista de O Idiota. Nele, a bondade absoluta e a
pureza espiritual tornam-se objeto de ridicularização e condenação social,
revelando a dificuldade quase insuperável de sustentar a integridade em um
mundo marcado pelo egoísmo e pela corrupção. A figura do idiota, no entanto,
não deve ser entendida apenas como ingenuidade simplória, mas como símbolo de
uma lucidez radical, de alguém que, recusando-se a aderir ao jogo cínico das
máscaras sociais, expõe a doença moral de sua época.
Dentro da filosofia maçônica, que busca o aperfeiçoamento do
homem e a construção de uma sociedade mais justa, o tema adquire uma força
singular. O maçom, como o príncipe Míchkin, é chamado a ser diferente, a
cultivar valores que desafiam a lógica utilitarista e mercantil do mundo
moderno. Mas, ao mesmo tempo, a Maçonaria ensina que é necessário sabedoria,
prudência e discernimento para não ser destruído pela mesma sociedade que se
pretende iluminar. Surge daí uma questão crucial: como agir com pureza de
coração sem ser considerado um idiota? Como sustentar a bondade e a
fraternidade sem ser esmagado pelo cinismo que nos cerca?
O Idiota e a Exposição da Hipocrisia
Dostoiévski constrói Míchkin como um ser quase angelical, cuja
sensibilidade é, ao mesmo tempo, sua força e sua condenação. Ele não apenas vê
a dor alheia, mas a sente como se fosse sua, experimentando aquilo que Cioran[1] chamaria
de o tormento de existir: a impossibilidade de ignorar o sofrimento do outro.
Esse excesso de empatia, em vez de aproximá-lo das pessoas, desperta
desconfiança e hostilidade.
O idiota, nesse sentido, não é o alienado, mas o lúcido demais.
Sua presença é um espelho incômodo que desvela as máscaras sociais, expondo a
hipocrisia de um mundo que prefere a esperteza à inocência, o cálculo ao amor,
a conveniência ao sacrifício. E aqui surge a conexão com a filosofia maçônica:
também o maçom, ao buscar a Verdade, é convidado a retirar as próprias máscaras
e a expor as falsas aparências do mundo. Contudo, as continuadas iniciações
ensinam que esse processo deve ser gradual, prudente, realizado no silêncio do
templo interior antes de se projetar em sociedade.
O Idiota Maçônico: a Ingenuidade que se Deve Evitar
O risco que se apresenta é evidente: confundir pureza com
ingenuidade, bondade com falta de senso crítico. O maçom que não desenvolve sua
inteligência, sua disciplina e sua autonomia pode ser visto como "idiota" não por excesso de
compaixão, mas por deficiência de discernimento.
Na simbologia do Rito Escocês Antigo e Aceito, os graus
iniciais já ensinam a necessidade do equilíbrio. O Aprendiz é advertido sobre a
pedra bruta, que precisa ser talhada com firmeza e paciência. O Companheiro
deve dominar as artes e ciências, aprendendo a pensar por si. O Mestre é
chamado a compreender o valor do sacrifício e da lealdade. Os graus
complementares, até o 33, continuam a insistir no uso da razão equilibrada com
doses elevadas de espiritualidade. Se o maçom ignora esse processo de lapidação
interior e se entrega a uma bondade ingênua, corre o risco de se tornar o
idiota de Dostoiévski: um cordeiro indefeso no meio de lobos.
Evitar esse destino exige a sabedoria
de unir compaixão com inteligência, fraternidade com estratégia, integridade
com firmeza. A bondade que não é acompanhada de lucidez
não passa de fraqueza disfarçada.
A Sociedade do Cinismo e o Risco da Conivência
Vivemos hoje numa época em que o cinismo é confundido com
inteligência e a frieza com maturidade. A ingenuidade é ridicularizada, a
esperança é zombada, e a esperteza é celebrada como sinônimo de sabedoria.
Nesse contexto, a tentação é dupla: ou desistimos da pureza e nos tornamos
cínicos, ou insistimos na inocência e nos tornamos ridículos.
A filosofia maçônica oferece uma terceira via: a do discernimento.
O maçom deve cultivar a bondade, mas não a ingenuidade; deve agir com
fraternidade, mas não com servilismo; deve defender a justiça, mas não se expor
como mártir inútil. Trata-se de exercer a virtude da prudência, que Aristóteles
definia como a capacidade de deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para
a vida. A prudência é a virtude que impede o sábio de se tornar idiota.
O Espelho de Mishkin e o Espelho Maçônico
Nietzsche observou que ninguém mente tanto quanto o indignado,
porque a indignação muitas vezes é um escudo contra a própria culpa. Míchkin,
pela sua presença silenciosa, desperta essa indignação nos outros personagens.
Ele mostra que outra forma de viver seria possível, e isso é insuportável para
quem já se acomodou ao jugo da hipocrisia social.
A Maçonaria, com sua técnica andragógica, também é esse
espelho. O irmão, ao ser iniciado, é confrontado com sua própria ignorância. O
templo não é um lugar de aplauso, mas de autocrítica. O que diferencia o maçom
do idiota é a consciência desse processo: ele sabe que sua bondade precisa ser cultivada
na forja da disciplina interior, que sua pureza precisa ser protegida pela armadura da razão.
A Arte de não Ser um Idiota no Mundo
Evitar ser considerado idiota, sem abrir mão da bondade e da
sensibilidade, exige uma série de posturas práticas que encontram eco tanto em
Dostoiévski quanto na filosofia maçônica:
·
Unir coração e inteligência - A compaixão
não pode andar sem a lucidez. É preciso sentir a dor do outro, mas também
discernir quando esse sentimento pode ser manipulado.
·
Exercitar a prudência - Nem toda verdade
precisa ser dita em voz alta, nem toda bondade deve ser exposta em público. A
prudência é o equilíbrio entre a ação justa e a ação possível.
·
Cultivar a firmeza - O maçom deve ser
bondoso, mas também firme em seus princípios. Ser tolerante não significa
ser conivente.
·
Praticar a autocrítica - O idiota de
Dostoiévski não consegue perceber os limites de sua ingenuidade. O maçom, ao
contrário, deve praticar a constante revisão de si, reconhecendo seus erros e
aprendendo com eles.
·
Transformar a ingenuidade em esperança ativa
- A inocência de Míchkin é passiva; ele sofre o mundo sem transformá-lo. O
maçom deve agir: sua esperança deve ser operativa, sua bondade deve gerar
frutos concretos na sociedade.
Entre a Luz e a Sombra
No fim, a grande questão de Dostoiévski ressoa com força no
coração maçônico: quem é o verdadeiro idiota? O homem que se mantém íntegro e
paga o preço, ou aqueles que traem e corrompem sua alma para sobreviver? Talvez
a resposta esteja em recusar ambos os extremos: não sucumbir ao cinismo, mas
também não se perder na ingenuidade.
A filosofia maçônica ensina que a sabedoria
está no equilíbrio. O maçom deve cultivar a bondade absoluta, mas temperada
pela prudência; deve sustentar a compaixão, mas sem ser manipulado; deve amar a
beleza, mas sem se deixar destruir por ela. Assim, evita-se ser considerado
idiota pelo mundo e, ao mesmo tempo, não se abdica da integridade que dá
sentido à existência.
Em uma sociedade onde o cálculo e o egoísmo parecem dominar, ser
maçom é um ato de resistência silenciosa. Mas é uma resistência lúcida,
consciente de que a beleza pode salvar o mundo, desde que seja acompanhada
da força da razão e da disciplina da virtude.
Bibliografia Comentada
1.
ANDERSON, James. Constituições de Anderson
(1723). Texto fundamental da Maçonaria, que ressalta a união de virtude e
inteligência, base para evitar a ingenuidade maçônica;
2.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um Relato
sobre a Banalidade do Mal. A análise de como o mal pode ser organizado
burocraticamente ajuda a compreender a hostilidade social à bondade radical;
3.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. A noção de
prudência (phronesis) como virtude fundamental que impede a bondade de se
transformar em ingenuidade;
4.
CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição.
Reflexões sobre o tormento de existir e a sensibilidade extrema que se conecta
ao sofrimento de Míchkin;
5.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Diversas edições.
Obra central para compreender a figura de Míchkin como arquétipo da bondade
incompreendida e do "idiota
existencial";
6.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: "O que é o Esclarecimento?". O
chamado à autonomia do pensamento, essencial para evitar a passividade ingênua;
7.
MACKEY,
Albert G. Lexicon of Freemasonry. Referência clássica sobre o simbolismo
maçônico, útil para relacionar os ensinamentos dos graus com a filosofia da
prudência e da lucidez;
8.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. O
filósofo alemão reconheceu em Dostoiévski um psicólogo profundo; revelando sua
crítica à indignação como máscara moral ilumina a rejeição social a Míchkin;
[1]
Emil Cioran ou Emil Mihai Cioran, escritor e filósofo de nacionalidade
romena. Nasceu em Inari em 8 de abril de 1911. Faleceu em Paris em 20 de junho
de 1995. Um jornal britânico o chamou de o rei dos pessimistas;
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