terça-feira, 30 de setembro de 2025

O Idiota, a Filosofia Maçônica e a Arte de não se Deixar Reduzir

Charles Evaldo Boller

Abstrato

Ser idiota não é ingenuidade, mas lucidez que incomoda. O maçom aprende a unir bondade e prudência: compaixão sem servilismo, firmeza sem cinismo. Só assim evita a armadilha social que ridiculariza a esperança e glorifica a esperteza.

Ser um "idiota", na acepção de Dostoiévski, não é ser um tolo ingênuo, mas alguém que insiste em cultivar a bondade e a beleza em um mundo que só reconhece o cálculo e o cinismo. O príncipe Míchkin, protagonista de O Idiota, encarna essa lucidez dolorosa: ele sente a dor alheia como sua e, por isso, é visto como um estrangeiro no meio social. A filosofia maçônica comunica-se intensamente com essa figura, pois também propõe a lapidação do homem pela virtude, mas adverte que a bondade precisa ser temperada pela prudência, sob risco de degenerar em fraqueza. O desafio não é escolher entre a ingenuidade ou o cinismo, mas encontrar o equilíbrio: agir com compaixão sem ser manipulado, com firmeza sem ser conivente, com esperança sem ser ridicularizado. Evitar ser considerado idiota, portanto, é unir coração e inteligência, mantendo-se íntegro sem abdicar da lucidez.

O Maçom e os Valores que Desafiam a Lógica Utilitarista

No limiar do século XIX, Dostoiévski deu à humanidade um dos arquétipos mais desconcertantes da literatura universal: o príncipe Liev Nikolaievitch Míchkin, protagonista de O Idiota. Nele, a bondade absoluta e a pureza espiritual tornam-se objeto de ridicularização e condenação social, revelando a dificuldade quase insuperável de sustentar a integridade em um mundo marcado pelo egoísmo e pela corrupção. A figura do idiota, no entanto, não deve ser entendida apenas como ingenuidade simplória, mas como símbolo de uma lucidez radical, de alguém que, recusando-se a aderir ao jogo cínico das máscaras sociais, expõe a doença moral de sua época.

Dentro da filosofia maçônica, que busca o aperfeiçoamento do homem e a construção de uma sociedade mais justa, o tema adquire uma força singular. O maçom, como o príncipe Míchkin, é chamado a ser diferente, a cultivar valores que desafiam a lógica utilitarista e mercantil do mundo moderno. Mas, ao mesmo tempo, a Maçonaria ensina que é necessário sabedoria, prudência e discernimento para não ser destruído pela mesma sociedade que se pretende iluminar. Surge daí uma questão crucial: como agir com pureza de coração sem ser considerado um idiota? Como sustentar a bondade e a fraternidade sem ser esmagado pelo cinismo que nos cerca?

O Idiota e a Exposição da Hipocrisia

Dostoiévski constrói Míchkin como um ser quase angelical, cuja sensibilidade é, ao mesmo tempo, sua força e sua condenação. Ele não apenas vê a dor alheia, mas a sente como se fosse sua, experimentando aquilo que Cioran[1] chamaria de o tormento de existir: a impossibilidade de ignorar o sofrimento do outro. Esse excesso de empatia, em vez de aproximá-lo das pessoas, desperta desconfiança e hostilidade.

O idiota, nesse sentido, não é o alienado, mas o lúcido demais. Sua presença é um espelho incômodo que desvela as máscaras sociais, expondo a hipocrisia de um mundo que prefere a esperteza à inocência, o cálculo ao amor, a conveniência ao sacrifício. E aqui surge a conexão com a filosofia maçônica: também o maçom, ao buscar a Verdade, é convidado a retirar as próprias máscaras e a expor as falsas aparências do mundo. Contudo, as continuadas iniciações ensinam que esse processo deve ser gradual, prudente, realizado no silêncio do templo interior antes de se projetar em sociedade.

O Idiota Maçônico: a Ingenuidade que se Deve Evitar

O risco que se apresenta é evidente: confundir pureza com ingenuidade, bondade com falta de senso crítico. O maçom que não desenvolve sua inteligência, sua disciplina e sua autonomia pode ser visto como "idiota" não por excesso de compaixão, mas por deficiência de discernimento.

Na simbologia do Rito Escocês Antigo e Aceito, os graus iniciais já ensinam a necessidade do equilíbrio. O Aprendiz é advertido sobre a pedra bruta, que precisa ser talhada com firmeza e paciência. O Companheiro deve dominar as artes e ciências, aprendendo a pensar por si. O Mestre é chamado a compreender o valor do sacrifício e da lealdade. Os graus complementares, até o 33, continuam a insistir no uso da razão equilibrada com doses elevadas de espiritualidade. Se o maçom ignora esse processo de lapidação interior e se entrega a uma bondade ingênua, corre o risco de se tornar o idiota de Dostoiévski: um cordeiro indefeso no meio de lobos.

Evitar esse destino exige a sabedoria de unir compaixão com inteligência, fraternidade com estratégia, integridade com firmeza. A bondade que não é acompanhada de lucidez não passa de fraqueza disfarçada.

A Sociedade do Cinismo e o Risco da Conivência

Vivemos hoje numa época em que o cinismo é confundido com inteligência e a frieza com maturidade. A ingenuidade é ridicularizada, a esperança é zombada, e a esperteza é celebrada como sinônimo de sabedoria. Nesse contexto, a tentação é dupla: ou desistimos da pureza e nos tornamos cínicos, ou insistimos na inocência e nos tornamos ridículos.

A filosofia maçônica oferece uma terceira via: a do discernimento. O maçom deve cultivar a bondade, mas não a ingenuidade; deve agir com fraternidade, mas não com servilismo; deve defender a justiça, mas não se expor como mártir inútil. Trata-se de exercer a virtude da prudência, que Aristóteles definia como a capacidade de deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para a vida. A prudência é a virtude que impede o sábio de se tornar idiota.

O Espelho de Mishkin e o Espelho Maçônico

Nietzsche observou que ninguém mente tanto quanto o indignado, porque a indignação muitas vezes é um escudo contra a própria culpa. Míchkin, pela sua presença silenciosa, desperta essa indignação nos outros personagens. Ele mostra que outra forma de viver seria possível, e isso é insuportável para quem já se acomodou ao jugo da hipocrisia social.

A Maçonaria, com sua técnica andragógica, também é esse espelho. O irmão, ao ser iniciado, é confrontado com sua própria ignorância. O templo não é um lugar de aplauso, mas de autocrítica. O que diferencia o maçom do idiota é a consciência desse processo: ele sabe que sua bondade precisa ser cultivada na forja da disciplina interior, que sua pureza precisa ser protegida pela armadura da razão.

A Arte de não Ser um Idiota no Mundo

Evitar ser considerado idiota, sem abrir mão da bondade e da sensibilidade, exige uma série de posturas práticas que encontram eco tanto em Dostoiévski quanto na filosofia maçônica:

·         Unir coração e inteligência - A compaixão não pode andar sem a lucidez. É preciso sentir a dor do outro, mas também discernir quando esse sentimento pode ser manipulado.

·         Exercitar a prudência - Nem toda verdade precisa ser dita em voz alta, nem toda bondade deve ser exposta em público. A prudência é o equilíbrio entre a ação justa e a ação possível.

·         Cultivar a firmeza - O maçom deve ser bondoso, mas também firme em seus princípios. Ser tolerante não significa ser conivente.

·         Praticar a autocrítica - O idiota de Dostoiévski não consegue perceber os limites de sua ingenuidade. O maçom, ao contrário, deve praticar a constante revisão de si, reconhecendo seus erros e aprendendo com eles.

·         Transformar a ingenuidade em esperança ativa - A inocência de Míchkin é passiva; ele sofre o mundo sem transformá-lo. O maçom deve agir: sua esperança deve ser operativa, sua bondade deve gerar frutos concretos na sociedade.

Entre a Luz e a Sombra

No fim, a grande questão de Dostoiévski ressoa com força no coração maçônico: quem é o verdadeiro idiota? O homem que se mantém íntegro e paga o preço, ou aqueles que traem e corrompem sua alma para sobreviver? Talvez a resposta esteja em recusar ambos os extremos: não sucumbir ao cinismo, mas também não se perder na ingenuidade.

A filosofia maçônica ensina que a sabedoria está no equilíbrio. O maçom deve cultivar a bondade absoluta, mas temperada pela prudência; deve sustentar a compaixão, mas sem ser manipulado; deve amar a beleza, mas sem se deixar destruir por ela. Assim, evita-se ser considerado idiota pelo mundo e, ao mesmo tempo, não se abdica da integridade que dá sentido à existência.

Em uma sociedade onde o cálculo e o egoísmo parecem dominar, ser maçom é um ato de resistência silenciosa. Mas é uma resistência lúcida, consciente de que a beleza pode salvar o mundo, desde que seja acompanhada da força da razão e da disciplina da virtude.

Bibliografia Comentada

1.      ANDERSON, James. Constituições de Anderson (1723). Texto fundamental da Maçonaria, que ressalta a união de virtude e inteligência, base para evitar a ingenuidade maçônica;

2.      ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal. A análise de como o mal pode ser organizado burocraticamente ajuda a compreender a hostilidade social à bondade radical;

3.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. A noção de prudência (phronesis) como virtude fundamental que impede a bondade de se transformar em ingenuidade;

4.      CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição. Reflexões sobre o tormento de existir e a sensibilidade extrema que se conecta ao sofrimento de Míchkin;

5.      DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Diversas edições. Obra central para compreender a figura de Míchkin como arquétipo da bondade incompreendida e do "idiota existencial";

6.      KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: "O que é o Esclarecimento?". O chamado à autonomia do pensamento, essencial para evitar a passividade ingênua;

7.      MACKEY, Albert G. Lexicon of Freemasonry. Referência clássica sobre o simbolismo maçônico, útil para relacionar os ensinamentos dos graus com a filosofia da prudência e da lucidez;

8.      NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. O filósofo alemão reconheceu em Dostoiévski um psicólogo profundo; revelando sua crítica à indignação como máscara moral ilumina a rejeição social a Míchkin;



[1] Emil Cioran ou Emil Mihai Cioran, escritor e filósofo de nacionalidade romena. Nasceu em Inari em 8 de abril de 1911. Faleceu em Paris em 20 de junho de 1995. Um jornal britânico o chamou de o rei dos pessimistas;

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