sábado, 27 de setembro de 2025

Deveres do Maçom e Fé Como Horizonte Racional

 Charles Evaldo Boller

Resumo

O maçom cumpre deveres que nascem da liberdade, vive a fé como confiança lúcida e combate o fanatismo pela razão. Na loja, laboratório de fraternidade, lapida-se em virtudes para construir, sob o Grande Arquiteto do Universo, um mundo justo e fraterno.

Os deveres do maçom e sua fé constituem um diálogo constante entre razão e transcendência. A Maçonaria não impõe dogmas, mas reconhece que a fé é necessária como horizonte de sentido, completando os limites da razão. Inspirada em Sócrates, Aristóteles, Kant e nos ideais iluministas, a Ordem ensina que o dever nasce da liberdade responsável e se concretiza em virtudes como prudência, temperança, fidelidade e união. O maçom é comparado ao cavaleiro medieval, que luta contra a tirania e protege os mais frágeis, mas sua arma é a ética, não a espada. Na loja, como em um laboratório de fraternidade, ele aprende a cultivar tolerância, diálogo e memória dos que se sacrificaram pela liberdade de consciência. Sua fé se traduz em ação: esperança ativa num futuro de justiça e fraternidade, sustentado pela confiança no Grande Arquiteto do Universo. Assim, razão, moralidade e espiritualidade unem-se no caminho maçônico.

A Fé sem Submissão Cega

A relação entre deveres maçônicos e fé é um dos temas mais desafiadores da filosofia da Arte Real. De um lado, a Maçonaria, ordem iniciática, ergue-se sobre o alicerce da razão, do livre-pensamento e da crítica aos dogmatismos. De outro, ela reconhece na fé, não como submissão cega, mas como abertura ao mistério e confiança no sentido transcendente da existência, um elemento indispensável para a formação moral do homem. O maçom encontra-se nesse espaço dialógico, entre a racionalidade filosófica e a espiritualidade que transcende o visível, construindo uma síntese viva entre ambos.

Neste ensaio, apresentamos conceitos articulados com a filosofia maçônica, a história do pensamento ocidental e a prática do cotidiano maçônico. A meta não é apenas refletir, mas sugerir aplicações práticas, de modo que os deveres do maçom e sua relação com a fé possam ser compreendidos não como abstrações, mas como exigências existenciais para a vida adulta, familiar, profissional e espiritual.

A Fé como Horizonte Racional

Lembrando-nos a célebre passagem platônica sobre a morte de Sócrates, Platão registra que o temor da morte é, em si, uma ignorância: não sabemos o que ela é, e fingir saber é falsa sabedoria. A fé, portanto, não é o contrário da razão, mas seu complemento. Para o maçom, a fé não consiste em acreditar no impossível, mas em manter a confiança naquilo que a razão reconhece como plausível, ainda que invisível. Fé é acreditar no não visível.

Na filosofia kantiana, esta articulação ganha maior precisão: "tive de abolir o saber para dar lugar à fé", dizia Kant na Crítica da Razão Pura. Para ele, a razão não consegue provar a imortalidade da alma ou a existência de Deus, mas a exigência prática da moralidade conduz à postulação de tais ideias. Para o maçom, esta postulação transforma-se em dever: viver como se a imortalidade fosse verdadeira, pois disso depende a dignidade de suas ações.

Aplicação prática: em loja, esse princípio se traduz na recomendação de que cada irmão pratique a reflexão crítica, sem jamais ridicularizar a crença do outro. A fé maçônica é universalizante, porque parte da razão, mas reconhece o limite dela. Assim, cada maçom deve aprender a viver no equilíbrio entre crítica e reverência, entre investigação e devoção.

O Dever como Expressão da Liberdade

A Maçonaria não concebe dever como mera obediência externa. Inspirada na tradição estoica e iluminista, ela entende dever como fruto da liberdade. "Ser livre e de bons costumes" é a condição para ingressar na Ordem. Mas essa liberdade não é arbitrariedade: ela é responsabilidade, pois só é verdadeiramente livre aquele que cumpre os deveres que reconhece como justos.

A ética maçônica exige que o dever se traduza em virtude. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, lembra que a virtude se realiza no hábito de escolher o bem. Assim também o maçom, ao cumprir seus deveres, internaliza valores que moldam seu caráter: temperança, prudência, fortaleza e justiça. O dever é, portanto, instrucional; lapida o ser humano, transformando-o em "pedra cúbica".

Aplicação prática: a leitura dos landmarks e das instruções maçônicas deve ser vista como exercício contínuo de formação. O maçom não lê para decorar, mas para atualizar seu dever moral em cada situação concreta: no trabalho, na política, na família, na sociedade civil.

A Luta contra o Fanatismo e a Defesa da Liberdade

Tomando a Inquisição como exemplo nefasto de imposição da fé pela espada. Essa lembrança é crucial: o maçom combate não a religião, mas o radicalismo. A defesa da liberdade de consciência é um dos pilares da Arte Real. Como ensinava Voltaire, cujo pensamento está na base do Iluminismo maçônico, "não concordo com o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo".

Esse princípio se opõe a qualquer tentativa de uniformização ideológica dentro da Loja. Um irmão pode ser católico, protestante, judeu, muçulmano, espírita ou agnóstico. O que importa é sua fidelidade à liberdade e à fraternidade. Assim, a Maçonaria não é religião, mas é espiritual; não é política partidária, mas é ética; não é ciência, mas promove o espírito científico.

Aplicação prática: as sessões devem cultivar debates racionais, mas sempre dentro da tolerância. Quando surge divergência, o método não é a imposição, mas a concórdia e o diálogo. A loja se torna, assim, um laboratório de convivência plural que prepara os irmãos para o convívio democrático na sociedade.

O Cavaleiro do Bem e a Vocação de Serviço

O maçom pode ser equiparado aos cavaleiros medievais que protegiam os peregrinos. Essa metáfora é fecunda: o maçom é um cavaleiro do bem, mas sem espada, sua arma é o malho e o cinzel, símbolos do trabalho interior e da construção da sociedade.

Na filosofia cristã, a figura do cavaleiro remete à luta contra os vícios. Na tradição islâmica, lembra a jihad maior, que é a batalha contra o ego. Em ambas, a ênfase recai sobre a coragem moral. Para o maçom, essa coragem significa enfrentar a tirania, mesmo sob risco de perseguição. Muitos maçons, ao longo da história, sofreram martírio pela liberdade, como Giordano Bruno e os carbonários italianos.

Aplicação prática: no cotidiano, ser cavaleiro significa assumir responsabilidades éticas no trabalho, denunciar injustiças, apoiar os vulneráveis e educar pelo exemplo. No lar, significa ser guardião da verdade, da justiça e do amor. Na sociedade, significa não se calar diante de abusos de poder.

Razão Pura e Espiritualidade

A razão, sozinha, pode levar ao ceticismo; a fé, isolada, pode gerar fanatismo. A Maçonaria busca a síntese. Inspirada em Espinosa, defende a ideia de que Deus é o princípio imanente da natureza, o Grande Arquiteto do Universo. Inspirada em Kant, reconhece que sem espiritualidade a ação humana é vazia. Inspirada em Hegel, percebe que a história é um processo dialético rumo à liberdade.

Essa síntese dá ao maçom uma cosmovisão peculiar: ele se aproxima do sagrado sem dogmatismo, da filosofia sem esterilidade, da ciência sem reducionismo. Ele se torna, portanto, um homem integral.

Aplicação prática: cultivar diariamente o tripé razão, moralidade e espiritualidade. Isso se traduz em práticas como meditação, leitura filosófica, estudo das ciências e serviço comunitário. O equilíbrio desses elementos prepara o maçom para ser ponte entre mundos, entre fé e razão, entre tradição e modernidade, entre indivíduo e sociedade.

O Laboratório da Loja

A loja simbólica é chamada de "pequeno laboratório", onde o maçom exercita suas virtudes. Ali, aprende a controlar a língua, a respeitar a palavra do outro, a construir unanimidades sem violência. O exercício da tolerância, da paciência e da fraternidade é um treino para a vida social.

A loja é também memorial: honra os maçons mortos não por cargos ou conquistas materiais, mas por seu testemunho ético. Essa referência à memória mantém viva a chama da fé, não apenas no transcendente, mas na humanidade.

Aplicação prática: incentivar trabalhos de reflexão sobre os maçons históricos, realizar sessões de memória e fraternidade, e propor projetos sociais que transformem a prática de caridade em formação do caráter. A loja, ao se tornar comunidade de aprendizagem, prepara cidadãos responsáveis.

A Não-Passividade e a Defesa da Justiça

A Maçonaria não é pacifista. De fato, não se trata de um pacifismo ingênuo. O maçom é chamado a retirar a paz dos tiranos, a incomodar os corruptos, a desmascarar os hipócritas. Sua luta não é armada, mas ética. Trata-se de uma resistência ativa, semelhante àquela de Sócrates, de Gandhi ou de Martin Luther King.

Aplicação prática: o maçom deve aprender a agir na esfera pública com coragem, mesmo quando isso lhe custar reputação ou segurança. Participar do debate social, contribuir para instituições civis, fiscalizar o poder político, tudo isso faz parte de seus deveres. A loja prepara seus membros para o exercício da cidadania plena.

Virtudes e Vícios

A lista de virtudes e vícios do maçom é clara. A instrução maçônica é essencialmente aristotélica: o bem consiste no meio-termo entre excessos. A prudência corrige a irreflexão, a temperança modera a paixão, a união vence a discórdia. O malho e o cinzel são símbolos de um trabalho permanente, pois o vício não é eliminado de uma vez, mas pela perseverança.

Aplicação prática: a cada sessão, propor reflexões sobre como as virtudes podem ser vividas no cotidiano. Por exemplo, a prudência no uso das redes sociais, a temperança no consumo, a fidelidade nos relacionamentos, a discrição nos negócios. A ética maçônica não é teórica; é prática.

Fé no Futuro da Humanidade

Convém reafirmar a fé do maçom num futuro promissor para a humanidade. Essa esperança é, ao mesmo tempo, espiritual e política. É espiritual porque se funda na confiança no Grande Arquiteto do Universo; é política porque se traduz em trabalho concreto por liberdade, igualdade e fraternidade.

Aplicação prática: a fé no futuro exige ação no presente. Projetos de educação, inclusão social, defesa ambiental e cultura devem ser incentivados pelas lojas. O maçom deve ser protagonista de mudanças, não mero espectador.

O Chamado a Ser um Cavaleiro do Bem

Os deveres do maçom e sua fé não são conceitos abstratos. Eles se desdobram em práticas concretas de liberdade, fraternidade e espiritualidade. O maçom é chamado a ser cavaleiro do bem, trabalhador incansável no laboratório da loja, combatente da tirania e guardião da esperança. Sua fé não é fanatismo, mas confiança lúcida no mistério que sustenta a vida. Seu dever não é submissão, mas liberdade responsável.

Assim, cumprir os deveres e cultivar a fé é ser fiel à essência da Maçonaria: construir, com malho e cinzel, um mundo mais justo, livre e fraterno, sob a luz do Grande Arquiteto do Universo.

Bibliografia Comentada

1.      ANDERSON, James. Constituições de Anderson (1723). Documento fundador da Maçonaria moderna, que estabelece a liberdade de consciência como princípio inegociável;

2.      ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Referência fundamental sobre virtudes e hábitos. Inspira a instrução maçônica das virtudes;

3.      CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Mostra o arquétipo do cavaleiro ou herói que se aproxima do ideal do maçom como combatente do mal;

4.      DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica. Para compreender o papel da Maçonaria no desenvolvimento do indivíduo livre dentro da modernidade;

5.      ESPINOSA, Baruch. Ética. Propõe visão imanente de Deus, muito próxima da noção do Grande Arquiteto do Universo. Inspira a espiritualidade racional da Maçonaria;

6.      HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Interpretação dialética da história como busca da liberdade, semelhante ao ideal maçônico de progresso humano;

7.      KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática. Oferece a base filosófica para compreender a fé como postulado moral, não como imposição dogmática;

8.      MENDES, Armando. Maçonaria e Filosofia. Estudo contemporâneo que articula filosofia ocidental e prática maçônica;

9.      PLATÃO. Apologia de Sócrates. Obra clássica que mostra a relação entre morte, ignorância e fé. Fundamenta a visão racional da Maçonaria sobre o mistério da vida e da morte;

10.  VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Texto iluminista que fundamenta a luta maçônica contra o fanatismo e pela liberdade de consciência;

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