Charles Evaldo Boller
Resumo
O maçom cumpre deveres que nascem da liberdade, vive a fé como
confiança lúcida e combate o fanatismo pela razão. Na loja, laboratório de
fraternidade, lapida-se em virtudes para construir, sob o Grande Arquiteto do
Universo, um mundo justo e fraterno.
Os deveres do maçom e sua fé constituem um diálogo constante
entre razão e transcendência. A Maçonaria não impõe dogmas, mas reconhece que a
fé é necessária como horizonte de sentido, completando os limites da razão. Inspirada em Sócrates,
Aristóteles, Kant e nos ideais iluministas, a Ordem ensina que o dever nasce da
liberdade responsável e se concretiza em virtudes como prudência, temperança,
fidelidade e união. O maçom é comparado ao cavaleiro medieval, que luta contra
a tirania e protege os mais frágeis, mas sua arma é a ética, não a espada. Na
loja, como em um laboratório de fraternidade, ele aprende a cultivar tolerância,
diálogo e memória dos que se sacrificaram pela liberdade de consciência. Sua fé
se traduz em ação: esperança ativa num futuro de justiça e fraternidade,
sustentado pela confiança no Grande Arquiteto do Universo. Assim, razão,
moralidade e espiritualidade unem-se no caminho maçônico.
A Fé sem Submissão Cega
A relação entre deveres maçônicos e fé é um dos temas mais
desafiadores da filosofia da Arte Real. De um lado, a Maçonaria, ordem
iniciática, ergue-se sobre o alicerce da razão,
do livre-pensamento e da crítica aos dogmatismos. De outro, ela reconhece na fé, não
como submissão cega, mas como abertura ao mistério e confiança no sentido
transcendente da existência, um elemento indispensável para a formação moral do
homem. O maçom encontra-se nesse espaço dialógico, entre a racionalidade
filosófica e a espiritualidade que transcende o visível, construindo uma
síntese viva entre ambos.
Neste ensaio, apresentamos conceitos articulados com a
filosofia maçônica, a história do pensamento ocidental e a prática do cotidiano
maçônico. A meta não é apenas refletir, mas sugerir aplicações práticas, de
modo que os deveres do maçom e sua relação com a fé possam ser compreendidos
não como abstrações, mas como exigências existenciais para a vida adulta,
familiar, profissional e espiritual.
A Fé como Horizonte Racional
Lembrando-nos a célebre passagem platônica sobre a morte de
Sócrates, Platão registra que o temor da morte é, em si, uma ignorância: não
sabemos o que ela é, e fingir saber é falsa sabedoria. A fé, portanto, não é o
contrário da razão, mas seu complemento. Para o maçom, a fé não consiste em
acreditar no impossível, mas em manter a confiança naquilo que a razão
reconhece como plausível, ainda que invisível. Fé é acreditar no não visível.
Na filosofia kantiana, esta articulação ganha maior precisão:
"tive de abolir o saber para dar
lugar à fé", dizia Kant na Crítica da Razão Pura. Para ele, a razão
não consegue provar a imortalidade da alma ou a existência de Deus, mas a
exigência prática da moralidade conduz à postulação de tais ideias. Para o
maçom, esta postulação transforma-se em dever: viver como se a imortalidade
fosse verdadeira, pois disso depende a dignidade de suas ações.
Aplicação prática: em loja, esse princípio se traduz na
recomendação de que cada irmão pratique a reflexão crítica, sem jamais
ridicularizar a crença do outro. A fé maçônica é universalizante, porque
parte da razão, mas reconhece o limite dela. Assim, cada maçom deve
aprender a viver no equilíbrio entre crítica e reverência, entre investigação e
devoção.
O Dever como Expressão da Liberdade
A Maçonaria não concebe dever como mera obediência externa.
Inspirada na tradição estoica e iluminista, ela entende dever como fruto da
liberdade. "Ser livre e de bons
costumes" é a condição para ingressar na Ordem. Mas essa liberdade não
é arbitrariedade: ela é responsabilidade, pois só é verdadeiramente livre
aquele que cumpre os deveres que reconhece como justos.
A ética maçônica exige que o dever se traduza em virtude.
Aristóteles, na Ética a Nicômaco, lembra que a virtude se realiza no hábito de
escolher o bem. Assim também o maçom, ao cumprir seus deveres, internaliza
valores que moldam seu caráter: temperança, prudência, fortaleza e justiça. O
dever é, portanto, instrucional; lapida o ser humano, transformando-o em "pedra cúbica".
Aplicação prática: a leitura dos landmarks e das
instruções maçônicas deve ser vista como exercício contínuo de formação.
O maçom não lê para decorar, mas para atualizar seu dever moral em cada
situação concreta: no trabalho, na política, na família, na sociedade civil.
A Luta contra o Fanatismo e a Defesa da Liberdade
Tomando a Inquisição como exemplo nefasto de imposição da fé
pela espada. Essa lembrança é crucial: o maçom combate não a religião, mas o
radicalismo. A defesa da liberdade de consciência é um dos pilares da Arte
Real. Como ensinava Voltaire, cujo pensamento está na base do Iluminismo
maçônico, "não concordo com o que
dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo".
Esse princípio se opõe a qualquer tentativa de uniformização
ideológica dentro da Loja. Um irmão pode ser católico, protestante, judeu,
muçulmano, espírita ou agnóstico. O que importa é sua fidelidade à liberdade e
à fraternidade. Assim, a Maçonaria não é religião, mas é espiritual; não é
política partidária, mas é ética; não é ciência, mas promove o espírito
científico.
Aplicação prática: as sessões devem cultivar debates
racionais, mas sempre dentro da tolerância. Quando surge divergência, o
método não é a imposição, mas a concórdia e o diálogo. A loja se torna, assim,
um laboratório de convivência plural que prepara os irmãos para o convívio democrático na
sociedade.
O Cavaleiro do Bem e a Vocação de Serviço
O maçom pode ser equiparado aos cavaleiros medievais que
protegiam os peregrinos. Essa metáfora é fecunda: o maçom é um cavaleiro do
bem, mas sem espada, sua arma é o malho e o cinzel, símbolos do trabalho
interior e da construção da sociedade.
Na filosofia cristã, a figura do cavaleiro remete à luta contra
os vícios. Na tradição islâmica, lembra a jihad maior, que é a batalha contra o
ego. Em ambas, a ênfase recai sobre a coragem moral. Para o maçom, essa coragem
significa enfrentar a tirania, mesmo sob risco de perseguição. Muitos maçons, ao
longo da história, sofreram martírio pela liberdade, como Giordano Bruno e os
carbonários italianos.
Aplicação prática: no cotidiano, ser cavaleiro significa
assumir responsabilidades éticas no trabalho, denunciar injustiças, apoiar os
vulneráveis e educar pelo exemplo. No lar, significa ser guardião da
verdade, da justiça e do amor. Na sociedade, significa não se calar
diante de abusos de poder.
Razão Pura e Espiritualidade
A razão, sozinha, pode levar ao ceticismo; a fé, isolada, pode
gerar fanatismo. A Maçonaria busca a síntese. Inspirada em Espinosa, defende a
ideia de que Deus é o princípio imanente da natureza, o Grande Arquiteto do
Universo. Inspirada em Kant, reconhece que sem espiritualidade a ação humana é
vazia. Inspirada em Hegel, percebe que a história é um processo dialético rumo
à liberdade.
Essa síntese dá ao maçom uma cosmovisão peculiar: ele se
aproxima do sagrado sem dogmatismo, da filosofia sem esterilidade, da ciência
sem reducionismo. Ele se torna, portanto, um homem integral.
Aplicação prática: cultivar diariamente o tripé razão,
moralidade e espiritualidade. Isso se traduz em práticas como meditação,
leitura filosófica, estudo das ciências e serviço comunitário. O equilíbrio
desses elementos prepara o maçom para ser ponte
entre mundos, entre fé e razão, entre tradição e modernidade, entre
indivíduo e sociedade.
O Laboratório da Loja
A loja simbólica é chamada de "pequeno laboratório", onde o maçom exercita suas virtudes.
Ali, aprende a controlar a língua, a respeitar a palavra do outro, a construir
unanimidades sem violência. O exercício da tolerância, da paciência e da
fraternidade é um treino para a vida social.
A loja é também memorial: honra os maçons mortos não por cargos
ou conquistas materiais, mas por seu testemunho ético. Essa referência à
memória mantém viva a chama da fé, não apenas no transcendente, mas na
humanidade.
Aplicação prática: incentivar trabalhos de reflexão
sobre os maçons históricos, realizar sessões de memória e fraternidade, e
propor projetos sociais que transformem a prática de caridade em formação do
caráter. A loja, ao se tornar comunidade de aprendizagem, prepara cidadãos
responsáveis.
A Não-Passividade e a Defesa da Justiça
A Maçonaria não é pacifista. De fato, não se trata de um
pacifismo ingênuo. O maçom é chamado a retirar a paz dos tiranos, a incomodar
os corruptos, a desmascarar os hipócritas. Sua luta não é armada, mas ética.
Trata-se de uma resistência ativa, semelhante àquela de Sócrates, de Gandhi ou
de Martin Luther King.
Aplicação prática: o maçom deve aprender a agir na
esfera pública com coragem, mesmo quando isso lhe custar reputação ou
segurança. Participar do debate social, contribuir para instituições civis,
fiscalizar o poder político, tudo isso faz parte de seus deveres. A loja prepara
seus membros para o exercício da cidadania plena.
Virtudes e Vícios
A lista de virtudes e vícios do maçom é clara. A instrução
maçônica é essencialmente aristotélica: o bem consiste no meio-termo entre
excessos. A prudência corrige a irreflexão, a temperança modera a paixão, a
união vence a discórdia. O malho e o cinzel são símbolos de um trabalho
permanente, pois o vício não é eliminado de uma vez, mas pela perseverança.
Aplicação prática: a cada sessão, propor reflexões sobre
como as virtudes podem ser vividas no cotidiano. Por exemplo, a prudência no
uso das redes sociais, a temperança no consumo, a fidelidade nos
relacionamentos, a discrição nos negócios. A ética maçônica não é teórica; é
prática.
Fé no Futuro da Humanidade
Convém reafirmar a fé do maçom num futuro promissor para a
humanidade. Essa esperança é, ao mesmo tempo, espiritual e política. É
espiritual porque se funda na confiança no Grande Arquiteto do Universo; é
política porque se traduz em trabalho concreto por liberdade, igualdade e
fraternidade.
Aplicação prática: a fé no futuro exige ação no presente. Projetos de educação,
inclusão social, defesa ambiental e cultura devem ser incentivados pelas lojas.
O maçom deve ser protagonista de mudanças, não mero espectador.
O Chamado a Ser um Cavaleiro do Bem
Os deveres do maçom e sua fé não são conceitos abstratos.
Eles se desdobram em práticas concretas de liberdade, fraternidade e
espiritualidade. O maçom é chamado a ser cavaleiro do bem, trabalhador
incansável no laboratório da loja, combatente da tirania e guardião da
esperança. Sua fé não é fanatismo, mas confiança lúcida no mistério que sustenta
a vida. Seu dever não é submissão, mas liberdade
responsável.
Assim, cumprir os deveres e cultivar a fé é ser fiel à essência
da Maçonaria: construir, com malho e cinzel, um mundo mais justo, livre e
fraterno, sob a luz do Grande Arquiteto do Universo.
Bibliografia Comentada
1.
ANDERSON, James. Constituições de Anderson
(1723). Documento fundador da Maçonaria moderna, que estabelece a liberdade de
consciência como princípio inegociável;
2.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Referência
fundamental sobre virtudes e hábitos. Inspira a instrução maçônica das
virtudes;
3.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Mostra o
arquétipo do cavaleiro ou herói que se aproxima do ideal do maçom como
combatente do mal;
4.
DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva
antropológica. Para compreender o papel da Maçonaria no desenvolvimento do
indivíduo livre dentro da modernidade;
5.
ESPINOSA, Baruch. Ética. Propõe visão imanente
de Deus, muito próxima da noção do Grande Arquiteto do Universo. Inspira a
espiritualidade racional da Maçonaria;
6.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito.
Interpretação dialética da história como busca da liberdade, semelhante ao
ideal maçônico de progresso humano;
7.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura e Crítica
da Razão Prática. Oferece a base filosófica para compreender a fé como
postulado moral, não como imposição dogmática;
8.
MENDES, Armando. Maçonaria e Filosofia. Estudo
contemporâneo que articula filosofia ocidental e prática maçônica;
9.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Obra clássica que
mostra a relação entre morte, ignorância e fé. Fundamenta a visão racional da
Maçonaria sobre o mistério da vida e da morte;
10. VOLTAIRE.
Tratado sobre a Tolerância. Texto iluminista que fundamenta a luta maçônica
contra o fanatismo e pela liberdade de consciência;
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