quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Ética Maçônica: a Universalidade da Loja e a Responsabilidade do Iniciado

 Charles Evaldo Boller

A quarta instrução do grau de aprendiz, no Rito Escocês Antigo e Aceito, apresenta-se como um compêndio simbólico e moral de extraordinária riqueza. Por meio do diálogo entre o venerável mestre e os vigilantes, somos conduzidos a reflexões profundas sobre a universalidade da Maçonaria, a sustentação da loja nas colunas da sabedoria, força e beleza, a luta contra a ignorância, o fanatismo e a superstição, e a correta compreensão da solidariedade maçônica.

Neste ensaio, desenvolveremos uma expansão dos conceitos propostos, inserindo-os dentro da tradição filosófica e ética da Maçonaria, relacionando-a com pensadores clássicos e modernos, e sugerindo aplicações práticas à vida do maçom em suas dimensões pessoal, familiar, profissional e social.

A Loja como Universalidade

A primeira parte da instrução apresenta as dimensões simbólicas da loja: do Oriente ao Ocidente, do Norte ao Sul, da Terra ao céu, da superfície ao centro da Terra. Esta universalidade aponta para a noção de que a Maçonaria é, por essência, uma escola de caráter cosmopolita.

Na filosofia maçônica, tal concepção remete ao ideal estoico de Cosmópolis, a cidade universal da razão, em que todos os homens são cidadãos sob a lei natural. Marco Aurélio já dizia que somos membros de uma mesma comunidade cósmica; a Maçonaria, ao adotar dimensões que abarcam o Universo inteiro, faz eco a este princípio, afirmando-se como uma oficina universal.

Aplicação prática: o maçom contemporâneo deve compreender que sua atuação não se limita à loja, à cidade ou ao país, mas se insere em um contexto global. Ética profissional, responsabilidade ambiental, solidariedade internacional e respeito às culturas tornam-se desdobramentos modernos desse princípio.

O Oriente Como Fonte da Luz

Quando o segundo vigilante afirma que a loja está disposta de Oriente a Ocidente porque a Luz vem do Oriente, insere-se um ensinamento que transcende o simples simbolismo geográfico. O Oriente é o lugar do nascer do Sol, da aurora, da iluminação, mas também o berço histórico das civilizações e das tradições espirituais.

A filosofia, segundo a tradição, nasce na Grécia, mas alimenta-se das fontes egípcias, persas e indianas. A religião, em suas formas abraâmicas, surge no Oriente Médio. A ciência, em sua proto-história, nasce na Babilônia e no Egito. Assim, afirmar que a Luz vem do Oriente é reconhecer que a sabedoria humana é plural, que sua origem é comum, e que a civilização ocidental apenas se expandiu e sistematizou o que vinha das margens orientais.

Aplicação prática: o maçom deve cultivar a abertura cultural e intelectual, valorizando a diversidade e aprendendo com diferentes tradições. No mundo globalizado, este ensinamento se traduz na necessidade de dialogar com outras religiões, filosofias e culturas, sem fanatismo, dogmatismo ou preconceito.

As Três Colunas: Sabedoria, Força e Beleza

A sustentação da loja em três colunas, sabedoria, força e beleza, é um dos ensinamentos mais emblemáticos da Maçonaria. Essas colunas não são apenas virtudes, mas categorias estruturantes da vida humana.

·         Sabedoria: a capacidade de deliberar e dirigir. Na tradição platônica, remete ao governo da alma pela razão. Kant associa-a à maturidade do pensar autônomo. No contexto maçônico, o venerável mestre encarna a sabedoria porque orienta os obreiros.

·         Força: a sustentação da obra. Aristóteles já dizia que a virtude requer hábito e perseverança. A força, no sentido maçônico, não é violência, mas resiliência, disciplina e ação. O primeiro vigilante a representa porque zela pela manutenção e pelo salário dos obreiros.

·         Beleza: a harmonia da criação. Plotino descreve a beleza como reflexo da unidade do Uno. A Maçonaria vê nela o adorno que dá sentido à vida e ao trabalho. O segundo vigilante, ao conceder repouso, manifesta a dimensão estética e equilibrada da existência.

Aplicação prática: o maçom deve buscar o equilíbrio entre razão (sabedoria), ação (força) e estética (beleza). No trabalho, isso significa aliar competência técnica, esforço contínuo e apresentação ética e estética das obras; na família, unir prudência, responsabilidade e ternura; na vida interior, cultivar clareza mental, disciplina e sensibilidade espiritual.

A Luta Contra a Ignorância

A instrução declara: "a ignorância é a mãe de todos os vícios". Essa máxima ecoa a tradição socrática, segundo a qual o mal é fruto da ignorância. Para Sócrates, conhecer o bem é praticá-lo; ignorar é perder-se no erro.

A Maçonaria combate a ignorância porque ela escraviza os povos, mesmo sob constituições liberais. Um povo ignorante é incapaz de exercer plenamente sua liberdade. Essa crítica tem relação com Kant, em seu célebre ensaio "O que é o Esclarecimento?", quando afirma que a saída da menoridade depende da coragem de pensar por si mesmo.

Aplicação prática: o maçom deve combater a ignorância em si e nos outros. Isso se traduz em dedicação ao estudo, incentivo à educação, apoio a projetos culturais e combate às mentiras e manipulações que, no mundo contemporâneo, perpetuam novas formas de servidão.

O Combate ao Fanatismo e à Superstição

O segundo vigilante afirma que o fanatismo é uma moléstia mental que leva os homens, em nome de Deus, a cometer atrocidades. A superstição, por sua vez, é descrita como religião dos ignorantes.

Essa crítica não é à fé, mas à sua deturpação. A , quando desprovida de razão, degenera em fanatismo; quando desprovida de liberdade, degenera em superstição. Spinoza, no tratado teológico-político, já advertia que o fanatismo é fruto da imaginação desregrada, e que somente a razão pode libertar a religião da tirania.

Aplicação prática: o maçom deve cultivar espiritualidade racional, ética e tolerante. Isso implica respeito às religiões sem aderir a dogmas cegos, valorização da ciência sem reducionismos materialistas, e promoção de diálogo inter-religioso como caminho de paz.

A Solidariedade Como Laço Sagrado

A instrução apresenta a solidariedade como elo que fortalece os maçons, mas adverte contra sua interpretação deturpada. Solidariedade não é cumplicidade com o erro, mas amparo aos que sofrem injustamente.

A ética maçônica é clara: não se deve proteger irmãos que se desviam da moral, pois isso seria pactuar com a corrupção. A fraternidade exige mérito, probidade e honra.

Aplicação prática: o maçom deve praticar solidariedade seletiva e justa. No ambiente profissional, isso significa apoiar colegas competentes e éticos, mas não favorecer corruptos. Na vida pública, significa agir com imparcialidade, preferindo irmãos apenas quando há igualdade de condições. Na família, significa educar com amor, mas também com firmeza.

Fraternidade e Cidadania

O primeiro vigilante esclarece: a Maçonaria seleciona seus membros pela inteligência, caráter e probidade, e é por isso que tantos se destacam no mundo profano. Essa observação desmonta a acusação de protecionismo: não é a solidariedade que favorece os maçons, mas a excelência de sua formação.

Aplicação prática: o maçom deve ser exemplo de cidadania, colocando o bem público acima dos interesses pessoais ou corporativos. O juramento maçônico não é uma carta branca para favorecer irmãos, mas um compromisso com a justiça e a verdade.

A Ética Maçônica na Prática

A quarta instrução conclui reafirmando a fraternidade como processo educativo: instruir-se, corrigir defeitos, ser tolerante e generoso. A ética maçônica não se resume a códigos, mas a uma prática diária de lapidação moral.

Aplicação prática: o maçom deve aplicar esses princípios:

·         Na vida pessoal: cultivar disciplina, estudo contínuo, equilíbrio emocional;

·         Na família: ser esposo leal, pai justo, filho respeitoso;

·         Na profissão: agir com probidade, competência e espírito de serviço;

·         Na sociedade: defender a justiça, apoiar causas justas, lutar contra a corrupção;

Conclusão

A quarta instrução do grau de aprendiz no Rito Escocês Antigo e Aceito é, em essência, um tratado de ética prática. Ensina que a loja é universal como o universo, que se sustenta em sabedoria, força e beleza, que combate a ignorância, o fanatismo e a superstição, e que pratica uma solidariedade justa e fraternal.

Sua atualidade é evidente: em tempos de manipulação midiática, intolerância religiosa e crise ética, os ensinamentos desta instrução ressoam como um chamado ao esclarecimento, à razão e à fraternidade verdadeira. O maçom, como obreiro da arte real, deve ser Luz no mundo, exemplo vivo de cidadania e guardião da dignidade humana.

Bibliografia Comentada

  1. ANDERSON, James. Constituições de Anderson (1723). Tradução maçônica, diversas edições. Texto fundacional da Maçonaria moderna, base para os princípios de fraternidade e cidadania;
  2. CHOPRA, Deepak. Você é o Universo. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2017. Explora a universalidade do ser humano, ressonante com a visão maçônica da Loja como microcosmo do universo;
  3. KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Esclarecimento? São Paulo: Martins Fontes, 2005. Fundamenta a crítica à ignorância e à menoridade, ecoando o chamado da Maçonaria à autonomia da razão;
  4. MACKEY, Albert. Encyclopedia of Freemasonry. New York: Masonic History Co., 1917. Repertório de símbolos e instruções maçônicas, útil para compreender o contexto histórico da Quarta Instrução;
  5. MARCO AURÉLIO. Meditações. Lisboa: Gulbenkian, 2014. A visão estoica de cosmópolis dialoga com a ideia maçônica da Loja como universal;
  6. PLOTINO. Enéadas. São Paulo: Loyola, 2000. Inspira a compreensão da Beleza como reflexo da unidade, essencial à tríade Sabedoria-Força-Beleza;
  7. SPINOZA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Oferece a crítica filosófica ao fanatismo religioso, base para a visão maçônica da tolerância;

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