sábado, 27 de setembro de 2025

Deveres do Maçom, Religião e Autotransformação Individual

 Charles Evaldo Boller

Resumo

Entre os deveres do maçom e religião exploramos a profunda relação entre autotransformação individual e construção social, destacando que o primeiro dever do maçom é consigo mesmo, na lapidação da pedra bruta. A Maçonaria, herdeira do iluminismo, afirma-se como escola de liberdade e tolerância, contrapondo-se ao fanatismo religioso e à tirania política sem negar a dimensão espiritual do homem. Ao reconhecer no Grande Arquiteto do Universo o princípio universal da fé, a ordem ensina a distinguir entre essência e dogma, entre espiritualidade e superstição. Historicamente perseguida pela Igreja Católica Apostólica Romana, a Maçonaria mostrou-se, contudo, defensora da liberdade de consciência, da laicidade do estado e da fraternidade universal. Suas aplicações práticas abrangem a vida pessoal, familiar, profissional e social do maçom, que deve ser artífice da harmonia entre razão e fé. Assim, a ordem mantém-se como guardiã da dignidade humana e do sonho de uma sociedade justa, igualitária e fraterna.

Religião não Pode Ser Tratada de Forma Superficial

A Maçonaria é um fenômeno filosófico, espiritual e histórico que desafia as convenções estreitas da religião institucionalizada e da política absolutista. O tema dos deveres do maçom e sua relação com a religião não pode ser tratado de forma superficial. Ele toca diretamente na identidade da Ordem e na forma como ela foi compreendida, ou mal compreendida, ao longo dos séculos.

Ao contrário do que muitos imaginam, a Maçonaria não se coloca em oposição à fé, mas à intolerância e ao dogmatismo que, em nome da religião, macularam a história da humanidade com perseguições, guerras e exclusões. O dever do maçom é, antes de tudo, consigo mesmo: transformar-se em um homem livre, consciente, responsável, ético e capaz de iluminar a sociedade. Essa transformação se dá na relação equilibrada entre razão e espiritualidade, filosofia e religião, tradição e modernidade.

O Dever Maçônico de Transformar-se a Si Mesmo

O ponto de partida da filosofia maçônica é a autotransformação. Diferente de doutrinas que buscam a salvação pela submissão a dogmas externos, a Maçonaria ensina que a verdadeira obra é lapidar a pedra bruta, metáfora do próprio homem.

Essa lapidação é o processo de educar a mente e o coração, transformar vícios em virtudes e ignorância em sabedoria. Trata-se de um dever individual, mas que inevitavelmente tem repercussão social. O homem transformado inspira e contagia, pela força do exemplo, todos ao seu redor.

Esse princípio remonta à máxima socrática: "Conhece-te a ti mesmo". O conhecimento de si é fundamento da liberdade. Aquele que não se conhece é facilmente manipulado, seja por líderes políticos, seja por líderes religiosos.

O dever do maçom, portanto, é cultivar:

·         Autonomia intelectual, não aceitando verdades sem exame.

·         Moralidade prática, aplicando na vida os princípios de justiça e fraternidade.

·         Espiritualidade livre, que não depende de dogmas, mas da relação íntima com o Grande Arquiteto do Universo.

Maçonaria, Religião e Estado: Conflitos e Convergências

Desde o século XVIII, a Maçonaria se tornou alvo de críticas porque ousou colocar em xeque a união entre trono e altar. A Europa absolutista era sustentada por uma aliança entre a monarquia e a Igreja Católica Apostólica Romana. O rei governava em nome de Deus; a Igreja legitimava o poder real; e o povo devia obediência absoluta.

A Maçonaria insurgiu-se contra esse modelo por meio de dois princípios:

·         Soberania da razão: todo homem tem o direito de pensar livremente.

·         Universalidade da fé: a espiritualidade não é monopólio de uma instituição.

Não por acaso, muitos maçons estiveram presentes em movimentos de libertação política: a Independência dos Estados Unidos (com George Washington e Benjamin Franklin), a Revolução Francesa, as independências latino-americanas (com Bolívar, San Martín, Tiradentes).

O conflito não era com a fé, mas com a instrumentalização da religião pelo poder. Por isso, o dever do maçom sempre foi duplo: defender a liberdade religiosa e combater a tirania política.

O Impacto do Iluminismo e da Secularização

A filosofia iluminista foi decisiva para moldar a identidade maçônica. Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Locke e Diderot colocaram em circulação ideias que ecoam até hoje nas lojas:

·         Liberdade de consciência;

·         Igualdade jurídica;

·         Fraternidade universal;

·         Soberania popular;

·         Separação entre poderes.

Ao lado desses princípios, houve a secularização, ou seja, a emancipação das esferas da vida social em relação ao controle religioso. A ciência passou a ter autonomia frente à teologia. A política se libertou da tutela eclesiástica. A educação deixou de ser monopólio clerical.

Essa secularização não significa destruição da fé, mas sim a devolução da religião ao âmbito do íntimo, da consciência individual. A religião, em sua pureza, NÃO necessita de poder político para existir.

A Maçonaria absorveu esse espírito. Por isso, em suas lojas, não há religião oficial, mas todas as crenças são respeitadas, desde que pautadas no amor, na justiça e na busca da verdade.

A Filosofia Maçônica da Religião

A religião, sob a ótica maçônica, deve ser compreendida em três níveis:

·         Espiritualidade essencial - a busca humana pelo transcendente. Esse aspecto é universal e não se prende a dogmas.

·         Moralidade prática - os valores que permitem a convivência pacífica: amor, compaixão, solidariedade, perdão, justiça.

·         Institucionalização histórica - as formas concretas que a religião assume em diferentes épocas e culturas, muitas vezes contaminadas por interesses políticos.

A Maçonaria ensina que o dever do maçom é separar a essência do acessório, o espiritual do dogmático. Reconhecer a centelha divina em todas as tradições e, ao mesmo tempo, denunciar o fanatismo que desvirtua a fé.

O conceito do Grande Arquiteto do Universo expressa essa filosofia. Ele é símbolo supremo, que pode ser lido como Deus pessoal, como Energia universal, como Logos, como Princípio. Cada maçom tem liberdade de interpretá-lo segundo sua consciência.

Conflitos Históricos com a Igreja

O antagonismo entre Igreja Católica Apostólica Romana e Maçonaria é um capítulo complexo. A bula In Eminenti (1738) inaugurou séculos de condenações. Em 1917, o Código de Direito Canônico proibia explicitamente a filiação de católicos à Maçonaria, sob pena de excomunhão.

Os motivos dessas condenações foram variados:

·         O segredo das lojas, visto como suspeito.

·         O juramento maçônico, interpretado como rival da obediência à Igreja.

·         A liberdade de pensamento, considerada ameaça à autoridade papal.

Contudo, sob a perspectiva histórica, vê-se que o verdadeiro motivo era o medo da Igreja Católica Apostólica Romana em perder sua hegemonia. A Maçonaria oferecia ao homem um espaço de debate livre e de convivência fraterna entre credos distintos, algo que a Igreja da época não tolerava.

Ainda hoje persistem desconfianças, embora muitos teólogos modernos reconheçam que a Maçonaria não é ateísta, mas deísta e espiritualista.

Aplicações Práticas na Vida Contemporânea

O dever maçônico diante da religião se traduz em atitudes concretas:

·         No âmbito pessoal: cultivar estudo comparado das religiões, evitando fanatismos e ampliando a visão espiritual.

·         No âmbito familiar: promover a tolerância religiosa, respeitando a fé dos filhos, cônjuge ou parentes.

·         No âmbito profissional: agir com ética, não permitindo que crenças pessoais prejudiquem decisões justas.

·         No âmbito social: combater discursos de ódio religioso, promover o diálogo inter-religioso, defender a liberdade de consciência.

·         No âmbito político: apoiar a laicidade do Estado, garantindo que nenhuma religião se imponha sobre a sociedade.

A Humanidade Organizada Como em uma Loja

A Maçonaria é, antes de tudo, uma escola de liberdade. Seu dever em relação à religião não é negar a fé, mas purificá-la dos elementos que a corrompem. O maçom, ao transformar-se a si mesmo, torna-se artífice de uma nova sociedade, onde razão e espiritualidade, ciência e fé, indivíduo e comunidade caminham em equilíbrio.

O sonho maçônico é ver a humanidade organizada como em uma Loja: livre, igualitária, fraterna, sob a invocação do Grande Arquiteto do Universo.

Bibliografia Comentada

1.      ANDERSON, James. Constituições de Anderson (1723). Documento fundador da Maçonaria Especulativa. Defende a religião universal baseada na moral natural, base da tolerância maçônica;

2.      CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol (1602). Utopia filosófica que influenciou ideais de fraternidade e universalidade presentes na Maçonaria;

3.      HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções (1962). Contextualiza a ação de maçons nos movimentos revolucionários dos séculos XVIII e XIX;

4.      KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Iluminismo? (1784). Define o Iluminismo como a saída da menoridade pela autonomia do pensamento, fundamento do ethos maçônico;

5.      MONTESQUIEU, Charles. O Espírito das Leis (1748). Texto basilar da teoria da separação dos poderes, inspirador da reflexão política maçônica;

6.      PIKE, Albert. Morals and Dogma (1871). Obra fundamental da tradição escocesa americana, aborda a relação entre simbolismo maçônico, religião e filosofia;

7.      QUINET, Edgar. A Revolução Religiosa no Século XIX (1845). Obra que analisa as tensões entre fé, ciência e filosofia, tema central da relação Maçonaria-Religião;

8.      ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social (1762). Fundamenta o princípio da soberania popular, fortemente difundido nas lojas do século XVIII;

9.      VOLTAIRE, François-Marie. Tratado sobre a Tolerância (1763). Obra que combate o fanatismo religioso, defendendo a liberdade de consciência, essência da filosofia maçônica;

10.  WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905). Análise da secularização e do impacto da religião na modernidade, útil para entender o contexto maçônico;

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