Charles Evaldo Boller
Resumo
Entre os deveres do maçom e religião exploramos a profunda
relação entre autotransformação individual e construção social, destacando que o
primeiro dever do maçom é consigo mesmo, na
lapidação da pedra bruta. A Maçonaria, herdeira do iluminismo, afirma-se como escola
de liberdade e tolerância, contrapondo-se ao fanatismo religioso e à
tirania política sem negar a dimensão espiritual do homem. Ao reconhecer no Grande Arquiteto do Universo o princípio universal da fé, a ordem ensina a
distinguir entre essência e dogma, entre espiritualidade e superstição.
Historicamente perseguida pela Igreja
Católica Apostólica Romana, a Maçonaria mostrou-se, contudo, defensora
da liberdade de consciência, da laicidade do estado e da fraternidade
universal. Suas aplicações práticas abrangem a vida pessoal, familiar,
profissional e social do maçom, que deve ser artífice da harmonia entre razão e
fé. Assim, a ordem mantém-se como guardiã da dignidade humana e do sonho de uma
sociedade justa, igualitária e fraterna.
Religião não Pode Ser Tratada de Forma Superficial
A Maçonaria é um fenômeno filosófico, espiritual e histórico
que desafia as convenções estreitas da religião institucionalizada e da
política absolutista. O tema dos deveres do maçom e sua relação com a religião
não pode ser tratado de forma superficial. Ele toca diretamente na identidade
da Ordem e na forma como ela foi compreendida, ou mal compreendida, ao longo
dos séculos.
Ao contrário do que muitos imaginam, a Maçonaria não se
coloca em oposição à fé, mas à intolerância e ao dogmatismo que, em nome da
religião, macularam a história da humanidade com perseguições, guerras e
exclusões. O dever do maçom é, antes de tudo,
consigo mesmo: transformar-se em um homem livre, consciente, responsável, ético
e capaz de iluminar a sociedade. Essa transformação se dá na relação
equilibrada entre razão e espiritualidade, filosofia e religião, tradição e
modernidade.
O Dever Maçônico de Transformar-se a Si Mesmo
O ponto de partida da filosofia maçônica é a autotransformação.
Diferente de doutrinas que buscam a salvação pela submissão a dogmas externos,
a Maçonaria ensina que a verdadeira obra é lapidar a pedra bruta, metáfora do
próprio homem.
Essa lapidação é o processo de educar a mente e o coração,
transformar vícios em virtudes e ignorância em sabedoria. Trata-se de um dever
individual, mas que inevitavelmente tem repercussão social. O homem
transformado inspira e contagia, pela força do exemplo, todos ao seu redor.
Esse princípio remonta à máxima socrática: "Conhece-te a
ti mesmo". O conhecimento de si é fundamento da liberdade. Aquele que não
se conhece é facilmente manipulado, seja por líderes políticos, seja por
líderes religiosos.
O dever do maçom, portanto, é cultivar:
·
Autonomia intelectual, não aceitando
verdades sem exame.
·
Moralidade prática, aplicando na vida os
princípios de justiça e fraternidade.
·
Espiritualidade livre, que não depende de
dogmas, mas da relação íntima com o Grande Arquiteto do Universo.
Maçonaria, Religião e Estado: Conflitos e Convergências
Desde o século XVIII, a Maçonaria se tornou alvo de críticas
porque ousou colocar em xeque a união entre trono e altar. A Europa absolutista
era sustentada por uma aliança entre a monarquia e a Igreja Católica Apostólica Romana. O rei governava em nome de Deus;
a Igreja legitimava o poder real; e o povo devia obediência absoluta.
A Maçonaria insurgiu-se contra esse modelo por meio de dois
princípios:
·
Soberania da razão: todo homem tem o direito de
pensar livremente.
·
Universalidade da fé: a espiritualidade não é
monopólio de uma instituição.
Não por acaso, muitos maçons estiveram presentes em movimentos
de libertação política: a Independência dos Estados Unidos (com George
Washington e Benjamin Franklin), a Revolução Francesa, as independências
latino-americanas (com Bolívar, San Martín, Tiradentes).
O conflito não era com a fé, mas com a instrumentalização da
religião pelo poder. Por isso, o dever do maçom sempre foi duplo: defender a
liberdade religiosa e combater a tirania política.
O Impacto do Iluminismo e da Secularização
A filosofia iluminista foi decisiva para moldar a identidade
maçônica. Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Locke e Diderot colocaram em
circulação ideias que ecoam até hoje nas lojas:
·
Liberdade de consciência;
·
Igualdade jurídica;
·
Fraternidade universal;
·
Soberania popular;
·
Separação entre poderes.
Ao lado desses princípios, houve a secularização, ou seja, a
emancipação das esferas da vida social em relação ao controle religioso. A
ciência passou a ter autonomia frente à teologia. A política se libertou da
tutela eclesiástica. A educação deixou de ser monopólio clerical.
Essa secularização não significa destruição da fé, mas sim a
devolução da religião ao âmbito do íntimo, da consciência individual. A
religião, em sua pureza, NÃO necessita de poder político para existir.
A Maçonaria absorveu esse espírito. Por isso, em suas lojas,
não há religião oficial, mas todas as crenças são respeitadas, desde que
pautadas no amor, na justiça e na busca da verdade.
A Filosofia Maçônica da Religião
A religião, sob a ótica maçônica, deve ser compreendida em três
níveis:
·
Espiritualidade essencial - a busca
humana pelo transcendente. Esse aspecto é universal e não se prende a dogmas.
·
Moralidade prática - os valores que
permitem a convivência pacífica: amor, compaixão, solidariedade, perdão,
justiça.
·
Institucionalização histórica - as formas
concretas que a religião assume em diferentes épocas e culturas, muitas vezes
contaminadas por interesses políticos.
A Maçonaria ensina que o dever do maçom é separar a essência do
acessório, o espiritual do dogmático. Reconhecer a centelha divina em todas as
tradições e, ao mesmo tempo, denunciar o fanatismo que desvirtua a fé.
O conceito do Grande Arquiteto do Universo expressa essa
filosofia. Ele é símbolo supremo, que pode ser lido como Deus pessoal, como
Energia universal, como Logos, como Princípio. Cada maçom tem liberdade de
interpretá-lo segundo sua consciência.
Conflitos Históricos com a Igreja
O antagonismo entre Igreja
Católica Apostólica Romana e Maçonaria é um capítulo complexo. A bula In
Eminenti (1738) inaugurou séculos de condenações. Em 1917, o Código de Direito
Canônico proibia explicitamente a filiação de católicos à Maçonaria, sob pena
de excomunhão.
Os motivos dessas condenações foram variados:
·
O segredo das lojas, visto como suspeito.
·
O juramento maçônico, interpretado como rival da
obediência à Igreja.
·
A liberdade de pensamento, considerada ameaça à
autoridade papal.
Contudo, sob a perspectiva histórica, vê-se que o verdadeiro
motivo era o medo da Igreja Católica
Apostólica Romana em perder sua hegemonia. A Maçonaria oferecia ao homem
um espaço de debate livre e de convivência fraterna entre credos distintos,
algo que a Igreja da época não tolerava.
Ainda hoje persistem desconfianças, embora muitos teólogos
modernos reconheçam que a Maçonaria não é ateísta, mas deísta e espiritualista.
Aplicações Práticas na Vida Contemporânea
O dever maçônico diante da religião se traduz em atitudes
concretas:
·
No âmbito pessoal: cultivar estudo
comparado das religiões, evitando fanatismos e ampliando a visão espiritual.
·
No âmbito familiar: promover a tolerância
religiosa, respeitando a fé dos filhos, cônjuge ou parentes.
·
No âmbito profissional: agir com ética,
não permitindo que crenças pessoais prejudiquem decisões justas.
·
No âmbito social: combater discursos de
ódio religioso, promover o diálogo inter-religioso, defender a liberdade de
consciência.
·
No âmbito político: apoiar a laicidade do
Estado, garantindo que nenhuma religião se imponha sobre a sociedade.
A Humanidade Organizada Como em uma Loja
A Maçonaria é, antes de tudo, uma escola de liberdade. Seu
dever em relação à religião não é negar a fé, mas purificá-la dos elementos que
a corrompem. O maçom, ao transformar-se a si mesmo, torna-se artífice de uma
nova sociedade, onde razão e espiritualidade, ciência e fé, indivíduo e
comunidade caminham em equilíbrio.
O sonho maçônico é ver a humanidade organizada como em uma
Loja: livre, igualitária, fraterna, sob a invocação do Grande Arquiteto do
Universo.
Bibliografia Comentada
1.
ANDERSON, James. Constituições de Anderson
(1723). Documento fundador da Maçonaria Especulativa. Defende a religião
universal baseada na moral natural, base da tolerância maçônica;
2.
CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol (1602).
Utopia filosófica que influenciou ideais de fraternidade e universalidade
presentes na Maçonaria;
3.
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções (1962).
Contextualiza a ação de maçons nos movimentos revolucionários dos séculos XVIII
e XIX;
4.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o
Iluminismo? (1784). Define o Iluminismo como a saída da menoridade pela
autonomia do pensamento, fundamento do ethos maçônico;
5.
MONTESQUIEU, Charles. O Espírito das Leis (1748).
Texto basilar da teoria da separação dos poderes, inspirador da reflexão
política maçônica;
6.
PIKE,
Albert. Morals and Dogma (1871). Obra fundamental da tradição escocesa
americana, aborda a relação entre simbolismo maçônico, religião e filosofia;
7.
QUINET, Edgar. A Revolução Religiosa no Século
XIX (1845). Obra que analisa as tensões entre fé, ciência e filosofia, tema
central da relação Maçonaria-Religião;
8.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social
(1762). Fundamenta o princípio da soberania popular, fortemente difundido nas
lojas do século XVIII;
9.
VOLTAIRE, François-Marie. Tratado sobre a
Tolerância (1763). Obra que combate o fanatismo religioso, defendendo a
liberdade de consciência, essência da filosofia maçônica;
10. WEBER,
Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905). Análise da
secularização e do impacto da religião na modernidade, útil para entender o
contexto maçônico;
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