sábado, 1 de novembro de 2025

Fugir da Morte não é Difícil! Uma Reflexão Filosófico-maçônica Sobre a Morte e a Transcendência

 Charles Evaldo Boller

A morte não é inimiga da vida, mas sua mestra silenciosa. Fugir dela é simples: basta compreender que a vida começa quando o medo termina. O maçom, ao longo de sua jornada, aprende a morrer para viver, e, ao fazê-lo, conquista a única imortalidade que importa: a da consciência desperta.

A Dialética do Fim e do Recomeço

A morte, tema que perpassa todas as tradições humanas, é o ponto de convergência entre o mistério e o medo, o finito e o eterno. Fugir da morte, como ironizou Sócrates diante de seus discípulos, não é difícil; o que é realmente difícil é escapar à maldade, essa força corrosiva que atravessa a existência humana e, muitas vezes, mata o espírito antes do corpo. A morte física, dizia o filósofo, é apenas o termo natural da vida; mas a morte moral é a ruína da alma.

Na Maçonaria, esta distinção é central: o homem morre muitas vezes, não biologicamente, mas simbolicamente, e cada uma dessas mortes é uma iniciação. Morre o profano para nascer o iniciado; morre o ignorante para nascer o sábio; morre o egoísta para nascer o servidor. Assim, a Arte Real converte a morte em metáfora da transformação, como um rito contínuo de regeneração espiritual e intelectual.

A Morte na Perspectiva Filosófica e Maçônica

Desde os tempos pré-históricos, o homem buscou compreender a morte, tentando inseri-la em um horizonte de sentido. Os antigos egípcios, com suas tumbas adornadas, não celebravam o fim, mas o começo de uma nova jornada. A tumba, revestida de hieróglifos e oferendas, era uma biblioteca simbólica de instruções para o espírito que atravessaria o "Duat", o outro mundo. O "Livro dos Mortos" era, na verdade, o "Livro de Saída para a Luz", expressão que surge na Maçonaria quando o neófito é conduzido "da escuridão para a Luz".

O que o Egito chamava de renascimento do Ka, a Maçonaria chama de iniciação. Ambas as tradições partem da ideia de que a morte não é aniquilação, mas transmutação. O maçom aprende a "morrer bem", não no sentido físico, mas como exercício constante de desapego, purificação e preparação para níveis mais elevados de consciência.

Sócrates e o Paradigma do Destemor

A serenidade de Sócrates diante da cicuta é um arquétipo de sabedoria iniciática. Em seu último discurso, no Fédon, ele ensina que o filósofo deve, durante toda a vida, aprender a morrer. O exercício filosófico é, em essência, uma preparação para libertar a alma das correntes do corpo e da ignorância. Para Sócrates, a morte não é o fim, mas o desatamento das amarras que prendem a alma ao mundo sensível.

Na perspectiva maçônica, esta lição traduz-se no simbolismo do "Sepulcro do Mestre Hiram Abif", o arquétipo da fidelidade e da ressurreição espiritual. O Mestre é "morto" pela ignorância, pela inveja e pela ambição, as três paixões humanas simbolizadas pelos maus companheiros, mas renasce pela força dos irmãos que o buscam com amor e sabedoria. Fugir da morte, portanto, não é o objetivo; o que se busca é a superação da morte pela consciência.

A Ciência e a Religião Diante da Morte

O conflito entre ciência e religião acerca da morte é, na verdade, um falso dilema. A ciência descreve a decomposição da matéria; a religião busca o destino do espírito. Ambas falam de realidades complementares.

Na física quântica, o princípio da conservação da energia nos lembra que nada se perde, tudo se transforma. A energia vital que anima o corpo não desaparece; ela muda de forma, de frequência, de campo. O que para a biologia é morte, para a Metafísica é transmutação vibracional.

O mesmo conceito encontra respostas na Maçonaria, que ensina que o homem é um microcosmo, reflexo do macrocosmo universal. Assim, quando a centelha divina se recolhe, o corpo retorna ao pó, mas a luz interior retorna ao Grande Arquiteto do Universo, fonte de todas as energias. A morte, portanto, é apenas a reintegração do fragmento ao Todo.

A Psicologia do Medo e a Educação do Espírito

Do ponto de vista psicológico, o medo da morte é o medo da perda de controle, da dissolução do "eu". Viktor Frankl, sobrevivente de Auschwitz, afirmou que o homem não teme o fim em si, mas teme uma vida sem sentido. A Maçonaria, ao oferecer ao iniciado um caminho simbólico de aperfeiçoamento, combate justamente essa angústia existencial. Ensina-lhe que viver bem é preparar-se serenamente para morrer, e que a morte não é o contrário da vida, mas parte de sua própria estrutura.

Em termos andragógicos, a instrução maçônica oferece ao maçom instrumentos para lidar com a finitude. Cada ritual é uma lição de autotranscendência: o "silêncio" do aprendiz ensina a aceitar o inevitável; o trabalho do Companheiro simboliza o esforço contínuo de lapidação; e a contemplação do Mestre traduz a serenidade diante do ciclo completo da existência. Assim, a loja torna-se uma escola de maturidade emocional e espiritual.

A Dupla Natureza da Morte: Fim e Transcendência

A filosofia clássica oferece duas abordagens complementares da morte. Epicuro via nela apenas a ausência de sensação: "a morte nada é para nós, pois enquanto existimos, ela não existe; e quando ela existe, nós não mais existimos". Já Platão, em contrapartida, concebia a alma como imortal, prisioneira temporária do corpo.

A Maçonaria concilia essas visões aparentemente opostas. Reconhece o caráter finito da forma, mas afirma a eternidade da essência. O corpo físico é o templo perecível; o espírito é o arquiteto imortal que, ao findar uma obra, passa a outra. A cada reencarnação simbólica, a cada iniciação, o maçom aprende a reconstruir seu templo com materiais mais nobres, até que finalmente alcance a "Grande Obra", a união com o Princípio.

Religião, Mito e o Anseio pela Imortalidade

As religiões sempre procuraram domesticar a morte com narrativas de esperança. No Cristianismo, Cristo vence a morte pela ressurreição; no Egito, Osíris renasce após ser despedaçado por Set; na tradição persa, Mitra nasce da rocha para libertar o homem da escuridão. Todas essas histórias são expressões simbólicas de um mesmo arquétipo: a passagem da morte para a vida, das trevas para a Luz.

A Maçonaria herda esse arquétipo e o transforma em rito: o neófito é conduzido "da morte para a Luz" por meio da Iniciação. Morre para o mundo profano e renasce como um ser consciente de sua própria divindade interior. É o que Blavatsky chamou de "morte iniciática", a descida ao interior do ser é seguida da ascensão à consciência superior.

Física Quântica e Transcendência: o Campo Unificado da Vida

Os avanços da física moderna aproximam-se surpreendentemente das antigas concepções esotéricas. A teoria quântica do campo unificado sugere que toda a matéria é uma manifestação de energia em vibração, e que o observador participa ativamente na criação da realidade. A morte, nesse contexto, seria apenas uma mudança de estado energético, uma alteração de frequência no oceano quântico.

Do ponto de vista hermético, esta ideia já estava expressa na Tábua de Esmeralda: "Nada morre, tudo se transforma". O maçom, ao compreender essa lei, transcende o medo da morte. Ele sabe que a energia que o constitui é eterna, e que cada ato, cada pensamento, cada emoção deixa uma ressonância no campo universal. Assim, viver é perpetuar-se no invisível.

Aplicações Andragógicas: Aprender a Morrer, Aprender a Viver

Na educação maçônica, inspirada na andragogia, o adulto é visto como sujeito de experiência. Ensinar-lhe a "morrer bem" é ensiná-lo a desapegar-se de velhos hábitos, crenças e ilusões. Em cada sessão de Loja, o maçom é convidado a deixar do lado de fora seus apegos, símbolo do ego, do orgulho, da vaidade, e entrar no templo desnudo de falsas identidades. Este gesto simples é uma lição de morte simbólica e de renascimento interior.

O método andragógico também implica reflexão e diálogo. Discutir sobre a morte em Loja não é mórbido, mas libertador. Ao encarar o tema com serenidade, o maçom aprende a viver com propósito, cultivando valores que sobrevivem ao tempo: a virtude, o amor fraterno, a verdade, a justiça. A Loja é um laboratório de transcendência, onde se aprende a converter o medo em sabedoria.

Metáforas e Exemplos Práticos

A borboleta que abandona o casulo não morre: apenas muda de forma. Assim também o homem que, ao final da vida, abandona o corpo para assumir novas dimensões. O medo da morte é como o medo da aurora para quem viveu sempre na noite, não é o fim, mas o início de outra claridade.

Na prática, o maçom que compreende este ensinamento torna-se mais compassivo, menos apegado a disputas e rancores. Ele sabe que o tempo é curto e precioso; que cada gesto pode ser o último; e que a única herança é o bem que se faz. Fugir da morte, nesse sentido, é simplesmente viver de modo a não morrer nunca na memória dos justos.

Ética, Moral e Liberdade Diante da Morte

Farias Brito afirmava que "cada um é a todo o momento criação de si mesmo". A morte, portanto, não é apenas biológica, mas ética. Morremos um pouco cada vez que traímos nossos princípios; renascemos quando agimos conforme a consciência. A liberdade e a felicidade, dizia o filósofo cearense, não são dádivas, mas conquistas do espírito.

Na Loja, esse princípio se manifesta na prática do dever. Ser fiel à palavra dada, cumprir com os juramentos, respeitar a vida, tudo isso é aprender a morrer com dignidade. A liberdade é a serenidade diante do fim, fruto de uma existência coerente e plena de sentido.

A Morte Simbólica de Hiram Abif

O mito central do Rito Escocês Antigo e Aceito, a morte e ressurreição de Hiram Abif, é uma síntese de todos os mistérios da morte. O Mestre Hiram, construtor do Templo de Salomão, é assassinado por três companheiros que simbolizam a ignorância, a inveja e a ambição. Enterrado no silêncio, ele é reencontrado e erguido à vida pela Palavra Perdida, símbolo da Verdade eterna.

Cada maçom revive esse drama em sua jornada pessoal. A morte de Hiram é a morte do ego; sua ressurreição é o despertar do Eu superior. Ao compreender que a Palavra Perdida é a sabedoria interior, o iniciado aprende que a morte não destrói a essência, apenas a transforma.

A Sociedade Contemporânea e o Tabu da Morte

A modernidade tenta esconder a morte. Hospitais isolam os moribundos; a publicidade glorifica a juventude eterna; e a tecnologia promete prolongar a vida indefinidamente. Todavia, ao negar a morte, o homem nega também a vida. A Maçonaria, ao contrário, convida-o a olhar de frente o mistério e a reconciliar-se com a finitude.

Num mundo em que tudo é efêmero, o maçom deve ser o exemplo de equilíbrio. Saber que a vida é breve é o primeiro passo para valorizá-la. O tempo torna-se, então, um instrumento sagrado, uma régua de 24 polegadas a ser usada com sabedoria: oito horas para o trabalho, oito para o descanso, oito para o aperfeiçoamento espiritual. Assim se constrói o Templo do Tempo.

Ciência da Consciência e a Sobrevivência do Ser

As investigações da neurociência contemporânea, somadas aos estudos da consciência quântica, têm desafiado a visão materialista da morte. Experiências de quase-morte, fenômenos de consciência ampliada e relatos de memória extracorpórea sugerem que a mente pode existir independentemente do cérebro.

A Maçonaria, sem dogmatizar, acolhe essas descobertas como estímulo ao pensamento livre. Não afirma nem nega, mas convida a investigar. O princípio da Verdade, gravado no coração do iniciado, exige que ele una razão e intuição, ciência e fé, para compreender que a morte é apenas uma fronteira tênue entre planos de manifestação.

O Legado Espiritual: Viver para não Morrer

O ensinamento final da Maçonaria é simples e grandioso: viver de tal modo que a morte não destrua o que fomos. O homem morre, mas sua obra permanece, não apenas a obra material, mas a influência benéfica que exerceu sobre os outros. O sábio morre, mas sua luz continua iluminando consciências.

Na linguagem hermética, isto é a imortalidade da vibração. Cada pensamento elevado, cada ato de amor, cada gesto de justiça projeta-se no campo quântico da humanidade. Fugir da morte, portanto, é transcendê-la pela virtude.

A Arte de Morrer para Viver

Fugir da morte, afinal, é simples, basta não temê-la. Difícil é fugir da ignorância, da maldade e do egoísmo que matam a alma em vida. O iniciado aprende a morrer a cada dia: morre para o erro e renasce para a Verdade; morre para o ódio e renasce para o amor; morre para o mundo profano e renasce para o sagrado.

A morte, na Arte Real, é o maior de todos os mestres. Ela ensina humildade, urgência e sabedoria. Ensina que o templo exterior pode ruir, mas o templo interior é eterno. E quando o último alento se extinguir, o iniciado saberá, como Sócrates, que nada há a temer, pois a morte é apenas a passagem para outra Luz, o reencontro com o Grande Arquiteto do Universo.

Bibliografia Comentada

1.      ARISTÓTELES. De Anima. Define a alma como forma do corpo, inaugurando a reflexão sobre a unidade entre matéria e espírito, cara à tradição esotérica ocidental;

2.      Bíblia Judaico-cristã, tradução de João Ferreira de Almeida, versão revista e atualizada, Eclesiastes 9:5-10; João 11:25. Fontes bíblicas que inspiram tanto o pessimismo existencial quanto a esperança espiritual; ambas reinterpretadas sob a luz maçônica como etapas de um mesmo aprendizado;

3.      BLAVATSKY, Helena P. A Doutrina Secreta. Apresenta a morte como transição vibracional, em conformidade com os princípios herméticos e com a física quântica moderna;

4.      BRITO, Farias. Finalidade do Mundo. Obra-síntese do pensamento espiritualista brasileiro; relaciona liberdade e consciência à superação da morte interior;

5.      CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Explica o ciclo mítico de morte e renascimento como processo universal de autotranscendência;

6.      FRANKL, Viktor. Em Busca de Sentido. Demonstra que o homem pode suportar qualquer sofrimento se encontrar um propósito, inclusive o medo da morte;

7.      HEISENBERG, Werner. Física e Filosofia. Discorre sobre a relação entre observador e fenômeno, sugerindo paralelos entre a física quântica e o conceito maçônico de "criação pela mente";

8.      JASPERS, Karl. Filosofia da Existência. Defende a ideia de transcendência como dimensão constitutiva do ser humano, aproximando o existencialismo da Metafísica iniciática;

9.      PIKE, Albert. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry. Analisa a morte como símbolo da regeneração moral e espiritual do iniciado;

10.  PLATÃO. Fédon. Diálogo fundamental sobre a imortalidade da alma e a serenidade diante da morte; base filosófica para o simbolismo maçônico da passagem e da purificação;

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