O caminho que inicia com a cerimônia de iniciação.
Charles Evaldo Boller
Inicia a escuridão.
O caminhante cego é conduzido por seu guia a iniciar uma
jornada, que ao final, dizem, lhe devolverão a visão.
Mesmo amparado, caminha trôpego, instável e inseguro. Todos
os quatro sentidos restantes de percepção estão funcionando ao máximo de suas
capacidades. Cada som, cada odor, cada detalhe do relevo é importante. Na falta
da luz, a mente trabalha ao máximo de sua capacidade para compensar a falta de
visão.
Alguém sussurra palavras de apoio aos seus ouvidos, as quais
o acalmam. No proceder gentil, terno e suave desta pessoa denota-se
consideração quase contemplativa, semelhante a ato de adoração. E esta Polidez
desenvolve no caminhante o efeito semelhante ao apoio do cajado, que o ampara
nos momentos de dificuldades e desequilíbrios das estradas. E mais, enche-o de
moral frente aos possíveis perigos; pois é propalado que, na via que pretende
passar, existem inúmeros riscos e armadilhas. Já está consciente da necessidade
de muita bravura para superar os perigos à sua frente. A Coragem surge então
como o ponto de prova mais elevado para seguir no caminho em toda a sua
extensão.
O caminhante já sabe que a via possui segredos que
possibilitam perspectivas de um futuro promissor, principalmente visando à
continuação da construção e o acabamento de seu templo interior, da sua
condição humana aperfeiçoada. Sabe também que, a matéria prima a ser utilizada
nesta obra será retirada do interior dele mesmo, independente de suas
limitações e imperfeições. Inclusive, e como bem maior, lhe será possibilitado
ver a luz em matizes diferentes dos até então observados. Tem a promessa que
estes bens serão adquiridos não por dinheiro, mas lhe serão doados se dispuser
de coração onde reina Pureza.
Para demonstrar que possui coração puro, é submetido a
testes de integridade. Passa por pontes instáveis, é ameaçado com arma branca,
sente-se rejeitado, é inquirido, é admoestado, enfim, passa por uma série de
atividades que, em outra situação, seriam encaradas como ultraje. Vence as
provas representadas simbolicamente pela Terra, Ar, Água e Fogo.
Como o caminho em que pisa possui inúmeras passagens
secretas, que abrigam tesouros materiais, intelectuais, ritualísticos e
espirituais. É exigida dele a Fidelidade para com a manutenção destes segredos.
Tudo mediante juramentos e acompanhado de advertências severas. Os moradores
locais usam de muita Prudência com a pretensão do passante. Usam de múltiplos
expedientes para descobrir e desarmar eventuais tentativas de aventura leviana.
A Prudência, filha mais velha da Sabedoria, é requisitada diversas vezes na
tomada de decisões em todos os questionamentos e juramentos.
Conforme vai sendo aprovado em cada etapa, segredos passam a
lhe ser revelados:
É recomendado que desenvolvesse moderação e sobriedade ao
consumir comida e bebida, bem como comedimento em outros prazeres da vida. A
Temperança é apresentada como rumo para a felicidade da alma e da saúde do
corpo.
É perceptível um refinado senso de Humor em alguns dos
procedimentos.
É orientado a desenvolver o reconhecimento por alguém que
lhe prestou um benefício, fazendo da Gratidão um modelo.
É exortado a dispor-se a sacrificar seus próprios interesses
em benefício da coletividade e de tornar a magnanimidade constante em sua vida.
Onde perder uma ocasião de ser útil é considerado infidelidade e um socorro
recusado, perjúrio.
Nunca doar nada de forma aviltante ou de modo a ofender
àquele que recebe.
Nunca tornar pública a sua doação, ou jactar-se dela, para
obter reconhecimento e louvor.
Cultivar permanentemente a Simplicidade e a Boa Fé.
Praticar a Generosidade, a qual trará progresso à vida
familiar e secular. E que esta virtude triunfe sobre a indiferença.
Desenvolver sentimento piedoso para com a tragédia pessoal
de outrem, principalmente de seus companheiros. E este deve estar acompanhado
do desejo de minorar a dor.
Praticar a Misericórdia que compele à participação não
apenas material, mas também, espiritual da infelicidade alheia. Suscitar um
impulso altruísta de participar do sofrimento de outrem, com Ternura para com o
sofredor.
Fazer da Compaixão e do Amor as virtudes mais preciosas da
vida, na medida em que, munido de Tolerância, reconhece que cada ser humano é
parte da humanidade, independente de raça, cor, religião, cultura e ideologia.
Não apenas desenvolver a Humanidade em pensamentos de
generosidade diante do sofredor, mas desenvolver a Doçura que o impede de
produzi-la ou de aumentá-la.
É convocado a alistar-se numa tropa de elite, homens de
escol treinados em agir contra a tirania e a escravidão resultantes da força
sem Justiça.
Que a Justiça deve começar em sua própria casa, de uma forma
para a qual há de se desenvolver uma estabilidade nas decisões a partir de um
bom coração, e do Amor dirigido pelo equilíbrio entre racionalidade e
emotividade.
É estimulado ao estudo da verdade independente de dogmas
religiosos ou filosóficos. Praticando permanentemente o que é justo à
semelhança de uma fortaleza inexpugnável, no alto de uma montanha indestrutível
que não pode ser abatida pela força ou ação de nenhum exército. Onde este forte
e esta montanha inexpugnável é o Grande Arquiteto do Universo, conceito que
engloba todas as divindades que o homem cria em si.
O caminhante a tudo absorve avidamente, pois já sabe que
está no lugar certo, e que o Criador, só se faz presente onde pessoas se tratam
como irmãos e têm profundo sentimento de Amor de uns pelos outros. Um Amor que
transpõem barreiras raciais, sociais e nacionais, unindo pessoas em genuína fraternidade
universal. E decide definitivamente em seu coração e em sua mente, que é num
lugar assim que o seu templo poderá receber os acabamentos para ser aprovado
por Aquele que construiu todos os Universos existentes. E considera que, como a
vida é uma teia tecida de bens e de males, será ali que passará a açoitar suas
virtudes para que estas não se tornem orgulhosas. Pretendendo que virtudes
assim tratadas acabem fortalecidas, transpostas não apenas no desenvolvimento
de energias para abster-se de vícios, mas até, em sequer desejá-los.
E termina a escuridão. E o caminhante chega ao final do
caminho das virtudes. Faz-se a luz. À sua frente são subitamente revelados,
pelo brilho da luz, diversos cavalheiros, perfilados e estranhamente
paramentados. Em suas mãos espadas e estas apontadas diretamente ao seu
coração. Passado o sobressalto, ele vê, não com os olhos da racionalidade, mas,
com os olhos do coração, que das pontas das espadas emerge a mais pura energia
do Universo, brota em profusão a maior riqueza que se pode desejar obter,
partindo da mais nobre de todas as virtudes, uma que os humanos seres têm
capacidade de produzir e doar sem esforço e sem sentimento de perda, a mais
importante delas, o Amor.
Bibliografia
1. COMTE-SPONVILLE, André, Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes, tradução: Eduardo Brandão, ISBN 85-336-0444-0, primeira edição,
Livraria Martins Fontes Editora Limitada, 392 páginas, São Paulo, 1995;
2. PUSCH, Jaime, ABC do Aprendiz, segunda edição, 146
páginas, Tubarão Santa Catarina, 1982;
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