segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Entre a Areia e as Estrelas: Caminhar, Rituais e a Essência da Obra Interior

 Charles Evaldo Boller

Entre Rituais e Liberdade: o Segredo da Marcha Maçônica

Há perguntas aparentemente pequenas que escondem abismos de significado. Uma delas atravessa discretamente as colunas de muitas lojas: afinal, o aprendiz deve arrastar os pés ou caminhar normalmente em sua marcha ritual? À primeira vista, trata-se de detalhe mecânico, quase irrelevante. Mas, se olhada com atenção, essa questão revela o conflito silencioso entre tradição e liberdade, forma e essência, rito e consciência. Em cada passo arrastado ou erguido vibra a pergunta central da Maçonaria: o que realmente nos faz evoluir, o gesto do corpo ou o despertar do espírito?

Imagine uma escada metálica pendurada no teto de um templo, avançando a partir do livro da lei, sem que ninguém saiba explicar por que está ali. "Razão para a sua existência não há; alguém pendurou, e ninguém mais teve coragem de tirar", responde um irmão mais antigo. Essa imagem é um ícone perfeito das tradições que herdamos sem compreender, dos símbolos que repetimos por medo de mexer no que sempre foi assim. Quantas "escadas de Jacó" penduradas habitam nossas lojas, nossas crenças, nossas certezas? E, mais inquietante ainda: quantas delas habitam o interior de cada maçom?

O ensaio que se segue convida o leitor a ir além da curiosidade sobre o passo correto. Propõe examinar a própria lógica de nossos rituais, confrontando a tendência humana de multiplicar leis, detalhes e regulamentos, como fizeram os antigos hebreus com a lei mosaica, até que tudo se tornasse um fardo insuportável. Será que não fazemos o mesmo com nossos rituais, criando camadas de exigências formais que, muitas vezes, obscurecem a lei simples e revolucionária do amor fraternal? Quando a forma se torna um fim em si mesma, o rito deixa de ser porta e passa a ser parede.

Entre o pedreiro medieval, que mão sabia ler, mas dominava a pedra, e o maçom especulativo de hoje, cercado de livros, decretos e manuais, abriu-se um abismo de complexidade. Este ensaio encurta esse abismo, lembrando que a obra não é o templo de pedra, mas o Templo Interior, construído com pensamento, vontade e consciência. Por isso, trata de esoterismo, física quântica, filosofia clássica e religião não para erudição vazia, mas para mostrar como todas essas linguagens apontam para o mesmo núcleo: o poder libertador do pensamento.

Se a marcha do aprendiz é um símbolo, o que ela quer realmente nos dizer? Se os gestos não mudam o homem por "passe de mágica", onde está, então, a magia da Maçonaria? Este texto provoca, inquieta e convida: mais do que decidir se se arrastam ou não os pés, importa descobrir se já começamos, de fato, a caminhar em direção à própria liberdade. Ao final, talvez o leitor perceba que o "ritual correto" não está prescrito em nenhum decreto, mas se revela na qualidade da energia que leva para a loja, na coragem de questionar o que herdou e na disposição de transformar cada passo, arrastado ou firme, em ocasião consciente de subir a própria escada invisível rumo à Luz.

A Marcha do Aprendiz e o Simbolismo do Peso da Terra

A partir de usos e costumes se ensina que o Aprendiz deve arrastar os pés, como se ainda estivesse materialmente preso ao chão, incapaz de alçar voo para esferas mais sutis. Outros afirmam que deve caminhar normalmente, pois o movimento do corpo pouco altera a direção do espírito. Qual deles tem razão? Ambos, e nenhum. A pergunta, embora prática, revela o dilema maior da Maçonaria: o homem oscila entre a areia que o prende e as estrelas que o convidam. A polêmica dos passos não é sobre o andar, mas sobre o sentido do caminhar.

Arrastar os pés significa reconhecer o peso da existência. A Terra, um dos quatro elementos clássicos, não é limite, mas ponto de partida. A poeira que se levanta sob o calcanhar é a lembrança de que o Aprendiz ainda não conquistou o direito de subir a escada interna da espiritualidade, a chamada Escada de Jacó, que une Céu e Terra como um diapasão vibrando entre dois polos da Criação. No entanto, caminhar com passos normais também é correto, pois a marcha, enquanto símbolo, é apenas uma moldura. A pintura está dentro do homem.

A marcha é um modo de educar o corpo para disciplinar o espírito. Mas ela se torna irrelevante quando o próprio espírito desperta para o sentido profundo da caminhada. Por isso, cada loja adota a prática que lhe convém. A pluralidade é inerente à Arte Real, como se o Grande Arquiteto do Universo espalhasse fragmentos da Verdade em cada oficina, esperando que o conjunto das lojas funcione como um mosaico.

O gesto externo pode variar, mas o símbolo interior permanece. A questão é se o Aprendiz está disposto a caminhar no Templo Interior com a firmeza que não depende de músculos, mas de lucidez.

A Escada que Ninguém Ousa Retirar

Certa vez encontrei, suspensa no teto de uma laja do Rito Escocês Antigo e Aceito, uma escada metálica inclinada que partia de cima do livro da lei e alcançava o teto. Quando perguntei a razão daquela instalação, a resposta do Mestre mais antigo foi: "razão para existir não há; alguém pendurou aí e ninguém mais teve coragem de remover".

Esse episódio é metáfora de uma tendência humana universal: aquilo que não compreendemos, conservamos por receio. A escada inerte representa a tradição sem reflexão, o rito fossilizado, a liturgia transformada em superstição. O símbolo destituído de sentido vira ornamento; e o ornamento, quando não questionado, transforma-se em dogma involuntário.

A Escada de Jacó, na tradição esotérica, é dinâmica, viva, ascensional. Ela representa as sete virtudes ou sete degraus da consciência que o homem deve subir pela força da razão e da vontade. Uma escada fixa, de metal, suspensa como monumento à inércia, rompe com o próprio espírito do símbolo. Ela aponta para o Oriente, mas não conduz a lugar algum.

Da mesma forma, muitas práticas maçônicas sobrevivem apenas por costume. Não são erros, nem acertos: são apenas degraus que ninguém ousou mover. O Aprendiz que arrasta os pés e o Aprendiz que marcha normalmente podem estar igualmente condicionados por tradições cujo sentido se perdeu no tempo. Cabe ao filósofo da Arte Real perguntar: o ritual conduz à ascensão ou é apenas escada metálica pendurada no teto?

A Multiplicação das Leis e o Peso da Tradição

O homem, dizem os antigos, é especialista em complicar o simples. Os hebreus receberam preceitos básicos para orientar uma vida comunitária no deserto. Com o tempo, transformaram a simplicidade mosaica numa teia de obrigações. Quando Cristo propôs pelo Amor a libertação dessa carga transformada em leis, sintetizou toda a Lei em um único mandamento: amar. Mas os eruditos judeus criaram novas interpretações e regulamentações, reinstalando complexidade onde o Cristo sugerira simplicidade luminosa.

A Maçonaria vive fenômeno semelhante. O rito foi criado para ser caminho; tornou-se mapa. Depois virou manual, depois cartilha, depois catecismo. Em seguida, surgiram suplementos explicativos, complementos e "interpretações autorizadas". O que deveria conduzir ao Espírito passou a demandar mais e mais a matéria.

Essa multiplicação de normas deriva do impulso humano de controlar o invisível por meio do visível. Como se fosse possível regular o vento com decretos. O Cristo destruiu simbolicamente as leis para restituir liberdade. A Maçonaria, ao defender a Lei do Amor Fraternal, propõe que toda construção ritualística seja instrumento e não fim. Quando a cerimônia se torna um fim, ela se torna ídolo e não portal.

O Mestre esclarecido sabe que a Lei do Amor é critério interpretativo de todo o Rito. Se uma norma ritualística fere a fraternidade, ela trai o fundamento.

Maçons Operativos e a Simplicidade das Pedras

Os maçons operativos tinham pouco interesse por cerimônias. Reuniam-se em estalagens, pubs ou adegas. Suas assembleias eram mais reuniões de trabalho do que templos. Eram artesãos da pedra, não sacerdotes do símbolo. Não havia normas técnicas, Associação Brasileira de Normas Técnicas, rituais codificados ou manuais. Havia pedra, cinzel e maço. Havia geometria instintiva, matemática intuitiva, conhecimento transmitido pelo gesto, pelo olhar, pela prática.

Essa simplicidade funcional é metáfora poderosa. O Aprendiz contemporâneo, rodeado de livros, decretos, manuais e liturgias, pode perder de vista a essência operativa: esculpir a si mesmo. A ferramenta do maçom especulativo é o pensamento disciplinado, e não a coreografia ritual.

Um pedreiro medieval não discutiria se devia arrastar os pés. Ele observaria se o bloco de pedra estava pronto para o encaixe. O Aprendiz moderno deveria fazer o mesmo: avaliar se sua mente está em ângulo com a verdade, se seu coração está nivelado pela justiça, se sua vontade está perpendicular à moral.

A Cerimônia Aponta o Caminho, mas não é o Caminho.

A Sinfonia de Influências que Moldou o Rito Escocês Antigo e Aceito

O Rito Escocês Antigo e Aceito tornou-se repositório de inúmeras tradições: rosacruzes, cabalistas, hermetistas, alquimistas, filósofos, esoteristas, místicos, políticos iluministas, cristãos esotéricos, neoplatônicos, pitagóricos e filólogos. Essa pluralidade faz do rito uma biblioteca viva, cheia de pistas, atalhos, metáforas e símbolos.

Mas essa riqueza também gera confusão. O neófito, ao percorrer a sala dos símbolos, vê um mosaico tão variado que pode concluir erroneamente que a Maçonaria é um sincretismo religioso. Não é. A Ordem não é religião, nem pretende ser. Ela utiliza símbolos religiosos porque estes são linguagem universal da humanidade. Religiões oferecem metáforas; o rito oferece interpretação.

A liberdade ocorre no pensamento. O maçom, ao estudar diferentes tradições, aprende a não ser prisioneiro de nenhuma. Ele cola fragmentos de sabedoria de múltiplas fontes para construir visão própria. O rito é ferramenta de desapego intelectual, e não instrumento de doutrinação.

O que o maçom aprende é olhar além da forma. Se o símbolo o escraviza, ele perde seu poder de libertação.

Pluralidade, Dinâmica Social e o Eterno Retorno das Reformas

A Maçonaria, como qualquer instituição humana, é atravessada por dinâmicas sociais. Rituais se transformam, gestos se modificam, marchas e palavras de ordem são ajustadas por usos e costumes locais. Cada loja possui personalidade própria, moldada pela sensibilidade de seus membros. Essa pluralidade não é ameaça, mas riqueza.

Contudo, a história mostra ciclos. Primeiro, tradição. Depois, interpretação. Em seguida, complexificação. Depois, reforma. Cristo revogou a lei mosaica para restaurar simplicidade. Após Ele, surgiram novos códigos. Na Maçonaria ocorre o mesmo: quando uma liturgia se torna pesada, alguém propõe simplificação. Quando simplificada, com o tempo, volta a crescer.

Esse ciclo não é defeito, mas reflexo da própria natureza humana. Em sociologia, chama-se dinâmica da tradição. Em filosofia, chama-se dialética. Em física quântica, chama-se flutuação: todo sistema vivo vibra, oscila, reinicia, reorganiza.

A loja que compreende essa dinâmica não se desespera com mudanças. Ela as espera.

Rizzardo da Camino e a Diversidade Ritualística

Rizzardo da Camino, estudioso do Rito Escocês Antigo e Aceito, observou que cada Grande Loja brasileira possui seu próprio ritual, sempre com pequenas diferenças. Nos graus filosóficos, supremos conselhos divergem entre si, embora todos respeitem os landmarks. Para ele, rituais alterados com boa intenção podem até ampliar a fraternidade, mas frequentemente prejudicam o esoterismo.

A observação é importante. Se o ritual é alterado sem compreensão profunda de sua função simbólica interna, perde-se não apenas forma, mas conteúdo. Modificar ritual sem compreender sua estrutura esotérica é como remover um tijolo estrutural acreditando tratar-se de ornamento.

Mas o rito também não deve ser encarado como estátua intocável. Ele é navegação. Não se troca o casco durante a viagem, mas pode-se ajustar as velas. Cada loja encontra seu equilíbrio entre fidelidade à tradição e abertura ao desenvolvimento interno.

Esoterismo Maçônico: Navegação Pelas Ciências Antigas e Modernas

O esoterismo da Maçonaria é sustentado por quatro pilares clássicos: Pitagorismo, Alquimia, Cabala e Hermetismo. Cada uma dessas tradições oferece linguagem simbólica para decodificar o mistério do ser.

O Pitagorismo ensina o Universo como harmonia matemática. A vibração quântica pode ser entendida como resposta moderna dessa visão: partículas se comportam como ondas que se modulam em padrões geométricos invisíveis. O maçom é convidado a modular sua própria vibração interior, tornando seu pensamento harmônico com as leis naturais.

A Alquimia, por sua vez, representa a transformação interior. O chumbo da ignorância busca o ouro da consciência. A metáfora alquímica aparece no conceito quântico de transmutação energética: a energia não se perde, apenas muda de forma.

A Cabala oferece visão Metafísica da Criação estruturada em dez sefirot, que se comunicam através de canais "sagrados". Na linguagem moderna, isso lembra campos energéticos, interconexões e redes de informação estruturadas em múltiplos níveis.

O Hermetismo integra todas essas ciências e oferece seu axioma supremo: "O Todo é Mente; o Universo é Mental." Hoje, a física quântica demonstra que o observador influencia o fenômeno observado. O Hermetismo já sugeria isso há milênios: consciência molda realidade.

A Maçonaria não exige que o adepto se torne especialista nessas tradições, mas recomenda conhecimento básico para que desenvolva ferramentas de interpretação do mundo e de si mesmo.

Energia, Ritual e a Verdadeira Função do Símbolo

A energia que circula numa loja reunida é mais importante que o rigor formal absoluto. Quando o ambiente é fraterno, a vibração coletiva cria campo sutil que favorece introspecção, insight e transformação. Ritualmente, a isto é dado o nome de egrégora: a força invisível criada por mentes alinhadas em propósito comum.

A posição dos pés, a altura do compasso, o ângulo do braço, são elementos simbólicos. Eles apenas abrem a porta. O que transforma é o que acontece depois que o iniciado atravessa o portal.

O simbolismo ritual é gatilho, NÃO causa. Nenhum gesto produz iluminação sem que o coração deseje ser iluminado. Nenhuma marcha eleva o ser se o ser não deseja ascender.

A "magia" maçônica é psicológica e espiritual: decorre da convivência constante com irmãos que despertam uns aos outros, formando campo energético que amplifica virtudes.

Arrastar ou Levantar os Pés? Um Dilema que Oculta Outro

Inventar rituais faz parte da natureza humana. O ato de arrastar os pés pode ter surgido por simples costume, ampliado depois por interpretação esotérica tardia. Caminhar normalmente é igualmente válido. Em ambos os casos, a loja é soberana.

O que não é soberano é o apego. É possível amar a tradição sem idolatrá-la. É possível praticar gesto simbólico sem substituí-lo pelo significado que ele apenas aponta.

No fundo, perguntar qual é o passo correto é pergunta mal colocada. A pergunta é: "o que a marcha produz em meu Templo Interior?" Se produz vigilância, humildade, atenção e presença, está correta. Se produz vaidade, competição e orgulho ritualístico, está errada, ainda que tecnicamente impecável.

A Disciplina e o Papel dos Regulamentos

Quando uma obediência estabelece ritual oficial, cabe ao maçom obedecer por disciplina. Disciplina não é servidão; é harmonia. Em física quântica, sistemas coerentes vibram em uníssono e produzem efeitos que sistemas caóticos jamais alcançam. Uma loja que vibra em coerência ritualística cria campo de consciência mais estável.

Assim, uniformização ritual é ferramenta para facilitar sintonia. Mas nunca deve ser confundida com verdade absoluta.

A Ilusão da Mudança Mágica e a Verdadeira Transformação

Nenhum gesto ritual altera o homem por si só. A transformação ocorre quando mente, emoção e vontade se alinham. Não é o passo que muda o Aprendiz; é o Aprendiz que muda o passo. O rito funciona como senha que desperta potenciais internos, mas a mudança depende de lucidez pessoal.

É ingênuo acreditar que um movimento do corpo possa substituir trabalho interior. Mas é realista compreender que o rito cria ambiente favorável para que esse trabalho floresça. A egrégora é o acelerador invisível da consciência.

A Maiêutica Maçônica: Despertar o que Já Está no Iniciado

Pítagoras demonstrou ao escravo de Mênon que a verdade pode ser despertada pela pergunta certa. A função do venerável mestre e dos oficiais é semelhante: provocar o raciocínio, incitar reflexão, estimular o nascimento do pensamento próprio.

Marchas, sinais, toques e palavras são dispositivos de recordação. Eles funcionam como algoritmos simbólicos que organizam memórias profundas. Mas o sentido surge pela reflexão individual, não pela coreografia repetida.

A Liberdade do Pensamento e o Caminho Após o Rito

O rito é o limiar. A partir do limiar, cada maçom caminha sozinho, guiado por sua consciência, construindo seu templo vivo com carne, ossos e espírito. A liberdade não está na palavra escrita, mas no pensamento autônomo. Kant chamou esse processo de saída da menoridade. Platão o descreveu como ascensão da caverna. A física quântica o entende como colapso da função de onda pela escolha.

A liberdade é o ato supremo. A escolha é a ferramenta. O pensamento é o templo.

A Especulação como Método e como Vocação

A Maçonaria permite ao iniciado especular temas que não podem ser provados cientificamente, mas que são coerentes com lógica, sentimento e intuição. A especulação não é devaneio; é laboratório da consciência. É assim que o pensamento cresce e cria hipóteses que um dia poderão ser experimentadas na vida ou na ciência.

O erro não é obstáculo, mas ferramenta. A construção interior segue ciclos de tese, antítese e síntese. O Aprendiz aprende a duvidar para poder crer por convicção, e não por herança cultural.

Entre o Gesto e o Significado

Discutir se se arrastam ou se levantam os pés é como perguntar se o silêncio tem direção. A marcha é metáfora da busca interior. O que importa não é o ângulo do passo, mas o sentido da caminhada. O que importa não é a forma do rito, mas o despertar que ele provoca. O que importa não é o gesto, mas a luz que se acende na consciência.

O templo físico é metáfora. O rito é metáfora. O corpo é metáfora. O templo é a mente. O rito é o pensamento disciplinado. O Caminho é aquele que conduz o homem a si mesmo e, assim, ao Grande Arquiteto do Universo.

A marcha é apenas o primeiro passo. O restante da jornada é feito no silêncio da consciência.

A Caminhada Interior que Supera o Ritual

Ao concluir este ensaio, torna-se evidente que a discussão sobre a marcha do aprendiz, arrastar os pés ou caminhar normalmente, funciona apenas como porta de entrada para um tema muito mais profundo: a relação entre forma e essência na jornada maçônica. A pluralidade de práticas, tradições e interpretações não é defeito, mas testemunho de que a Maçonaria, enquanto caminho iniciático, sempre acolheu a diversidade humana em suas múltiplas expressões. Por trás de cada gesto ritual, há camadas de sentido simbólico; ainda assim, nenhum gesto, por si só, possui o poder de transformar o homem. O rito abre a porta, mas é o pensamento que atravessa o umbral.

A escada metálica suspensa no teto, preservada por hábito, não por significado, tornou-se metáfora-chave para compreender os riscos da tradição sem reflexão. A Maçonaria não se sustenta em objetos, mas em ideias; não se preserva em artefatos, mas em consciências despertas. O rito é ferramenta, NUNCA fim. Quando o símbolo se converte em fetiche, perde sua função iniciática. Quando o maçom repete sem compreender, sua marcha perde o sentido: ele desloca o corpo, mas não move a alma.

Outro ponto essencial é o paralelo com a antiga lei mosaica, que de tão multiplicada e reinterpretada tornou-se fardo insuportável até que Cristo a sublimasse pela simplicidade do amor. De modo semelhante, a Maçonaria corre o risco de transformar o simples em complexo, o essencial em detalhe, a luz em sombra. O ensaio reafirma que o princípio organizador da Arte Real não é a liturgia, mas a fraternidade; não é a regra, mas a consciência; não é o gesto, mas a intenção. A disciplina ritual tem propósito, mas nunca deve aprisionar o livre pensar, que é o verdadeiro altar da iniciação.

A integração entre filosofia clássica, esoterismo e ciência contemporânea reforça que o ser humano é unidade dinâmica de matéria e espírito, e que sua evolução depende mais da qualidade de suas reflexões do que da precisão de seus movimentos. A física quântica, ao demonstrar que o observador influencia o fenômeno, reflete a lição hermética milenar: o Universo é moldado pela mente que o percebe. Assim também, o ritual é moldado pela consciência que o interpreta, não pela rigidez com que é executado.

Seja qual for a prática adotada por uma loja, importa que ela favoreça a harmonia do grupo, a elevação da egrégora e o desenvolvimento interior dos irmãos. É nesse campo energético compartilhado que a magia maçônica acontece: no encontro de mentes que se inspiram mutuamente, no debate que afia o discernimento, no silêncio que amplifica a intuição. É nesse espaço que se lapida a pedra bruta, que se erguem templos invisíveis e que se reencontra a própria liberdade.

A mensagem final encontra apoio em Sócrates, que ensinou que "uma vida não examinada não merece ser vivida". A Maçonaria existe precisamente para aprofundar esse exame: provocar o olhar interior, instigar a dúvida criativa, libertar o pensamento das amarras da heteronomia. O rito é apenas a moldura; a obra é o próprio homem. E somente quando o maçom compreende que cada passo, arrastado ou não, deve conduzi-lo a um nível mais elevado de consciência, é que sua marcha deixa de ser movimento e se torna Caminho.

Bibliografia Comentada

1.      CAMINO, Rizzardo da. Rito Escocês Antigo e Aceito: O Aprendiz. Porto Alegre: Federativa, 2010. Obra fundamental para compreender a pluralidade ritualística nas grandes lojas brasileiras, oferecendo visão histórica e crítica das diferenças existentes entre rituais estaduais e supremos conselhos, salientando impacto positivo e negativo das adaptações;

2.      ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Explora o simbolismo religioso e sua função estruturante na experiência humana, oferecendo base teórica para interpretar rituais maçônicos como hierofanias e não como dogmas;

3.      HALL, Manly P. The Secret Teachings of All Ages. Los Angeles: Philosophical Research Society, 1928. Compêndio clássico sobre tradições esotéricas universais, incluindo hermetismo, mitologia e simbolismo, útil para contextualizar referências dentro do estudo esotérico maçônico;

4.      HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005. Reflexão filosófica profunda sobre o ser e sua existência temporal, ajudando a compreender a marcha maçônica como metáfora existencial e não simples gesto ritualístico;

5.      JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. Estudo psicológico dos símbolos e arquétipos, essencial para compreender como a ritualística evoca imagens primordiais na consciência do iniciado;

6.      KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento? Lisboa: Edições 70, 2015. Fundamenta filosoficamente o papel da autonomia e liberdade de pensamento como pilares da evolução iniciática;

7.      PLATÃO. A República. Lisboa: Gulbenkian, 2001. Oferece o mito da caverna como metáfora central da iluminação iniciática, permitindo paralelos diretos com a ascensão maçônica rumo à Luz;

8.      PLOTINO. Enéadas. São Paulo: Paulus, 2000. Obra essencial do Neoplatonismo, explicando a ascensão da alma ao Uno, conceito que encontra paralelo direto na ideia maçônica de retorno ao Grande Arquiteto;

9.      PRZYLUSKI, Jean. La Légende de la Mort. Paris: Payot, 1927. Analisa simbolismo da morte e renascimento, contribuindo para interpretação dos graus maçônicos ligados à regeneração espiritual;

10.  SCHRÖDINGER, Erwin. What is Life? Cambridge: Cambridge University Press, 1944. Clássico da física e biologia, introduzindo conceitos que permitem paralelos entre energia, consciência e simbolismo esotérico;

11.  SETH, Anil. Being You: A New Science of Consciousness. New York: Penguin, 2021. Explica como a consciência é construção mental, oferecendo bases científicas contemporâneas para compreender afirmativas herméticas aplicadas à Maçonaria;

12.  WILBER, Ken. A União da Alma e dos Sentidos. São Paulo: Cultrix, 1998. Integra espiritualidade, psicologia e ciência, permitindo visão holística útil ao entendimento do trabalho iniciático;

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