quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

O Espírito de Corpo como Cimento da Loja Viva

 Charles Evaldo Boller

A loja maçônica do Rito Escocês Antigo e Aceito pode ser comparada a uma ponte suspensa: cada cabo isolado parece frágil, mas, quando entrelaçados, sustentam pesos imensos e permitem atravessar abismos. Esse entrelaçamento invisível é o espírito de corpo. Ele não é um ornamento moral nem uma recomendação retórica, mas a condição prática para que a loja exista como espaço iniciático vivo e transformador. Sem ele, restam rituais bem executados, porém vazios; com ele, até os gestos mais simples se tornam atos de edificação interior.

A tradição maçônica herdou dos antigos cavaleiros a noção de disciplina, não como imposição externa, mas como ordem interior. Platão, em A República, ensinava que a justiça nasce quando cada parte cumpre sua função em harmonia com o todo. Essa imagem ajusta-se perfeitamente à Loja: cada obreiro é como uma pedra viva que só encontra seu lugar quando aceita cooperar. Não se trata de brilhar sozinho, mas de refletir a luz comum. O espírito de corpo ensina que ninguém constrói o Templo Interior em isolamento, assim como nenhuma catedral se sustenta sobre uma única coluna.

A iniciação maçônica propõe liberdade, mas não a liberdade do ego solitário. É a liberdade responsável de quem escolhe pertencer. Aristóteles afirmava que o homem é um ser naturalmente político, feito para a vida em comunidade. Na loja, essa verdade ganha forma concreta: a presença regular, o aceite dos encargos, o cuidado com o trabalho alheio. Envolver-se é como molhar os pés na água; comprometer-se é atravessar o rio sabendo que haverá correnteza. O juramento maçônico simboliza exatamente essa travessia consciente.

A metáfora do organismo vivo ajuda a compreender a profundidade desse compromisso. Uma Loja não é o prédio, nem os títulos, nem os paramentos; é o sangue simbólico que circula entre os irmãos. Quando um órgão se omite, todo o corpo sente. Diferentemente do mundo profano, onde se substituem funções com facilidade, a Loja depende do trabalho voluntário, sustentado por caráter, empatia e amor ao avental. Cada irmão traz uma história, um ritmo, um tom de voz próprio. Substituir um obreiro comprometido é como tentar trocar o coração por uma engrenagem: pode até funcionar por um tempo, mas perde-se a vida.

A filosofia clássica ilumina ainda outro aspecto essencial: o valor do dever. Kant ensinava que a ação moral nasce do dever assumido livremente. Na Loja, isso significa compreender que cargos humildes não são degraus menores, mas exercícios refinados de lapidação. Quem aprende a servir no silêncio fortalece mais o espírito de corpo do que quem busca destaque. Uma sugestão prática é simples e poderosa: valorizar publicamente os trabalhos discretos, criar rodízio de funções e estimular irmãos menos experientes a assumirem responsabilidades acompanhados por mentores. Assim, a Loja se torna escola viva, não palco.

Isso dialoga com a ciência contemporânea por meio de metáforas. A física quântica nos lembra que nada existe isolado; tudo se define por relações. Um elétron só faz sentido dentro de um campo de elétrons e prótons. O maçom, da mesma forma, só realiza plenamente sua identidade iniciática quando inserido na egrégora da Loja. Presença, pensamento e intenção alinham-se e criam um campo simbólico que potencializa a transformação individual e coletiva. Por isso, a ausência constante não é neutra: ela enfraquece o campo, como um fio solto em um tecido delicado.

O espírito de corpo também educa para a tolerância. Voltaire defendia que a convivência civilizada nasce do respeito às diferenças. Na Loja, pensar diferente não é ameaça, mas oportunidade de crescimento. Ouvir, acolher e dialogar são exercícios tão iniciáticos quanto qualquer ritual. Uma prática construtiva é promover momentos de escuta fraterna, onde irmãos possam compartilhar dificuldades e aprendizados sem julgamento. Isso fortalece laços e humaniza a instituição.

No fim, o espírito de corpo revela sua face mais profunda no amor fraterno. Não um amor sentimental, mas um amor ético, que se expressa em fidelidade, cuidado e responsabilidade. Onde irmãos se unem por algo maior do que eles mesmos, manifesta-se aquilo que a Maçonaria chama de Grande Arquiteto do Universo. Assim, "tornar feliz a humanidade" deixa de ser uma frase solene e se transforma em obra silenciosa, iniciada no cotidiano da Loja e irradiada para a vida profana, como Luz que não faz ruído, mas ilumina.

Bibliografia Comentada

1.     ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001. Fundamental para compreender a relação entre virtude, comunidade e felicidade, conceitos centrais ao espírito de corpo maçônico;

2.     KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007. Base filosófica para a compreensão do dever livremente assumido, essencial ao juramento maçônico;

3.     PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. Oferece a metáfora da harmonia das partes no todo, aplicável à Loja como organismo simbólico;

4.     VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Sustenta a importância do respeito às diferenças como fundamento da convivência fraterna;

5.     WIRTH, Oswald. O Simbolismo Maçônico. São Paulo: Pensamento, 2000. Referência clássica para a leitura simbólica da Loja como espaço vivo de iniciação e transformação;

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