quarta-feira, 22 de outubro de 2025

O Valor Maçônico da Divergência: a Arte do Pensar Construtivo

 Charles Evaldo Boller

O Ovo da Sabedoria

O maçom é o artífice da harmonia entre o pensar e o sentir, entre o eu e o outro. Ele sabe que cada divergência é uma centelha do fogo divino que o Grande Arquiteto soprou na Criação. Assim, enquanto o mundo teme o caos, o maçom nele vê o ovo da sabedoria, o início de toda nova Luz.

A convivência humana é marcada por tensões entre concordância e oposição. Em qualquer espaço onde as ideias circulam, seja na ágora ateniense de outrora, nas assembleias modernas ou nas oficinas maçônicas, o ato de discordar revela-se um exercício nobre de inteligência, coragem e fraternidade. Existe uma profunda meditação sobre o valor da crítica e do debate, elevando a divergência ao patamar de uma virtude filosófica.

O Diálogo e o Princípio da Concordância Fraterna

A harmonia é uma das colunas simbólicas da Maçonaria. No entanto, harmonia não é uniformidade, nem implica ausência de dissenso. O equilíbrio nasce da diversidade, da tensão criativa entre contrários que se respeitam. Assim como o compasso e o esquadro só traçam figuras perfeitas quando atuam em oposição regulada, também as ideias humanas só se tornam construtivas quando submetidas ao confronto disciplinado da razão.

Concordar, em um debate, pode significar apoio, incentivo e solidariedade. Mas uma concordância absoluta, acrítica, pode degenerar em servilismo intelectual, anulando o exercício da liberdade de consciência, valor supremo do maçom esclarecido. O filósofo Baruch de Spinoza, em sua Ética, já advertia que "o homem livre é aquele que vive sob o império da razão", e não o que se submete cegamente a ideias alheias. O maçom, como livre pensador, deve ser capaz de sustentar o equilíbrio entre empatia e autonomia, entre acolher o outro e preservar sua própria lucidez.

Na Loja, a concordância fraterna deve ser o terreno fértil onde a crítica floresce. Quando um irmão discorda de outro com respeito e amor à Verdade, ele cumpre seu dever de aperfeiçoamento mútuo. A indiferença, por outro lado, é a negação da fraternidade. Como observou Érico Veríssimo, "o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença". A indiferença é o silêncio gélido que interrompe o fluxo da energia vital entre os seres; é o fechamento do círculo que deveria permanecer aberto ao diálogo.

A Crítica como Cinzel: o Aperfeiçoamento pela Fricção

A Maçonaria é uma escola de polimento interior. Assim como o malho e o cinzel retiram as arestas da pedra bruta, a crítica construtiva remove as impurezas do pensamento. O maçom, consciente de que a perfeição é um ideal e não um ponto de chegada, deve aceitar o golpe do malho alheio com humildade e discernimento. Cada observação, cada contraponto, é uma oportunidade de depuração moral e intelectual.

A metáfora do cinzel é das mais belas do simbolismo maçônico: representa o instrumento que lapida, que molda a pedra irregular da personalidade humana. Se a palavra é o verbo criador, a crítica é o verbo transformador. O irmão não teme ferir, pois sabe que o toque firme do cinzel é um ato de amor disciplinado. Aquele que corrige, com propósito fraterno, age como o escultor que vê, dentro da pedra, a forma oculta que aguarda libertação.

Os filósofos estoicos, Sêneca, Marco Aurélio e Epicteto, já ensinavam que "ninguém se aperfeiçoa sem sofrimento". O atrito é o princípio do progresso, tanto na matéria quanto no espírito. O fogo purifica o metal; o embate das ideias purifica a mente. Assim, a crítica, quando conduzida com ética e fraternidade, é uma forma de alquimia intelectual, capaz de transformar o chumbo da ignorância no ouro da sabedoria.

O Ovo Filosófico: Metáfora da Gênese Intelectual

O símbolo do ovo, embora não seja oficial na Maçonaria, tem um profundo esclarecimento esotérico e filosófico. Desde as antigas cosmogonias egípcias1, hindus e órficas, o ovo cósmico representa o nascimento do universo, a unidade primordial que contém em si todas as dualidades. É o ponto onde o masculino e o feminino se unem para gerar a vida, princípio que a Maçonaria reconhece como analogia da Criação Universal.

No contexto do pensamento maçônico, o ovo filosófico pode ser compreendido como o germe da ideia. Toda nova concepção nasce do choque de contrários, da fusão entre o pensamento ativo (malho) e o pensamento passivo (cinzel). O debate acalorado, longe de ser desordem, é o ventre alquímico onde se gestam as verdades futuras. Assim como o caos precede o cosmos, o tumulto de opiniões é a matriz da síntese.

O Grande Arquiteto do Universo, em sua sabedoria infinita, cria a beleza pela irregularidade, como bem ilustra a metáfora das pedras roladas pelo rio. O atrito contínuo entre as pedras, aparentemente aleatório, gera formas harmoniosas, suaves ao tato e agradáveis ao olhar. Da mesma forma, as fricções humanas, quando orientadas pelo propósito do bem, produzem o arredondamento das personalidades, o polimento do caráter e a serenidade do espírito.

No pensamento hermético, "o que está em cima é como o que está embaixo" (Tábua de Esmeralda). Assim, o movimento das águas que molda as pedras é o reflexo do movimento das ideias que molda o intelecto humano. O ovo simbólico, portanto, representa o estado potencial do ser e do pensamento: o momento anterior à eclosão da Luz, quando as forças opostas ainda se equilibram na escuridão fecunda.

O Caos Criador: a Ordem nas Discussões Acaloradas

A Maçonaria ensina que "do caos nasce a luz". O caos, em sentido filosófico, não é desordem destrutiva, mas a matriz primordial da ordem. Platão, no Timeu, descreve o cosmos como um resultado da harmonia imposta pelo Demiurgo2 sobre o caos inicial. Analogamente, a discussão intensa, com suas aparentes contradições, é o campo onde o pensamento organiza a confusão em clareza.

O debate maçônico é um laboratório da alma. Ali, as ideias colidem como átomos em fusão, liberando energia intelectual. Cada intervenção, cada réplica, é uma centelha que ilumina um aspecto da Verdade. Quando os irmãos se chocam em argumentos, não se ferem, mas se forjam. O malho da palavra e o cinzel da razão são os instrumentos simbólicos dessa lapidação mútua.

O conflito, longe de ser destrutivo, é o motor da criação. A dialética hegeliana retoma essa mesma intuição: da tese e da antítese nasce a síntese, e assim o Espírito progride na história. Na Loja, o mesmo princípio opera: a divergência conduz à unidade superior, ao equilíbrio dinâmico da Verdade compartilhada.

No plano prático, o método brainstorm, ou "tormenta de ideias", reproduz esse princípio cósmico. Trata-se de uma aplicação profana de uma sabedoria esotérica antiga: permitir que o caos da imaginação humana produza ordem criativa. Ao suspender o julgamento e acolher as ideias mais ousadas, o grupo cria um campo vibracional onde a inteligência coletiva opera milagres. Essa técnica moderna é, sem o saber, um exercício maçônico: a confiança na construção conjunta da verdade.

A Ética da Discordância e o Amor Fraternal

Discordar com amor é uma arte. Exige domínio de si, humildade e respeito. A Maçonaria valoriza o silêncio tanto quanto a palavra, pois ambos são necessários para o equilíbrio da expressão. O silêncio protege da vaidade; a palavra liberta da omissão. O maçom fala quando pode contribuir para a edificação do templo moral, e cala quando sua fala seria inútil ou até destrutiva.

A discordância, quando movida pela vaidade, degenera em disputa; quando movida pelo amor, eleva-se à cooperação. O mal maior é a indiferença, o não ver, o não ouvir, o não sentir. O irmão que critica participa; o indiferente exclui-se do trabalho coletivo. Assim, na ética maçônica, criticar é servir.

Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, definia a virtude como o meio-termo entre dois vícios opostos. Entre a subserviência (excesso de concordância) e a hostilidade (excesso de discordância), está a virtude da moderação dialogal3. O maçom virtuoso é aquele que sabe discordar com elegância e concordar com discernimento. Sua bússola é o amor à Verdade, não o desejo de vitória.

O Caminho do Meio: Harmonia Entre Emoção e Razão

Existe a dificuldade de pensar quando a emoção toma conta. De fato, a filosofia ensina que o equilíbrio entre razão e emoção é condição essencial para o discernimento. Na simbologia maçônica, o malho representa a vontade e o cinzel, a inteligência. O trabalho só é perfeito quando ambos atuam em consonância. A emoção é o impulso que dá força ao golpe; a razão é o controle que orienta sua direção.

Na vida cotidiana, essa harmonia manifesta-se na capacidade de escutar o outro sem perder a serenidade. Em debates políticos, familiares ou profissionais, o homem de sabedoria não reage, responde. A reação é instintiva; a resposta é reflexiva. O maçom, ao exercitar o autocontrole, converte o calor do debate em luz de compreensão. O caos emocional, assim transmutado, torna-se energia criadora.

O filósofo Immanuel Kant, em sua Crítica da Razão Prática, ensina que a razão deve ser o guia da ação moral. Mas ele não nega o valor do sentimento: o respeito é, para Kant, o afeto que nasce da consciência do dever. O respeito é, portanto, a emoção moralizada, o sentimento que une o coração à razão. Esse princípio encontra acolhimento perfeito na fraternidade maçônica, onde a razão ilumina e o amor aquece.

O Ovo Alquímico e o Renascimento Interior

O ovo reaparece na alquimia como símbolo do athanor, o forno onde ocorre a transmutação da matéria. O Ovo Filosófico contém, em miniatura, o processo de regeneração espiritual. No interior da casca opaca, a vida trabalha em silêncio, preparando o nascimento do novo ser. Assim também é o trabalho do maçom: dentro da câmara escura de seu próprio coração, ele incuba a Luz que um dia eclodirá.

Cada discussão, cada desafio intelectual, é uma iniciação. O choque das ideias representa o fogo alquímico que acelera a maturação interior. Quando o ovo se rompe, nasce a compreensão, e o homem renasce em consciência. É por isso que a Maçonaria valoriza tanto o debate: não como disputa, mas como processo de incubação do pensamento.

O simbolismo hermético ensina que "a natureza se alegra na natureza". O ovo, portanto, é a natureza do pensamento que gera nova natureza. Quando um irmão desafia outro a repensar suas convicções, ele o ajuda a quebrar a casca do dogma e a libertar o pássaro do espírito. Assim, da fricção das ideias, surge a liberdade interior.

Aplicações Práticas: o Debate como Ferramenta de Crescimento

Na sociedade, a técnica do brainstorm é usada para resolver problemas complexos. Na Maçonaria, o mesmo método pode ser adaptado para o aperfeiçoamento moral. Imagine uma Loja reunida para discutir um tema filosófico: cada irmão expõe, sem censura, sua interpretação simbólica. O venerável mestre atua como facilitador, não para impor conclusões, mas para permitir que o caos das ideias revele sua ordem interna.

O resultado desse exercício é duplo: intelectualmente, amplia-se a compreensão; espiritualmente, fortalece-se o vínculo fraterno. O maçom aprende a escutar o que discorda e a integrar as diferenças em sínteses mais elevadas. O método do caos produtivo4 torna-se, assim, um método de treinamento da alma, uma forma de andragogia maçônica5, na qual adultos aprendem não pela imposição, mas pela interação.

Na vida fora do templo, essa lição traduz-se em liderança ética. O chefe que acolhe opiniões divergentes estimula a criatividade de sua equipe; o pai que ouve seus filhos com respeito ensina o valor da autonomia; o cidadão que debate com civilidade fortalece a Democracia. O maçom, como exemplo na sociedade, deve ser molde dessa postura: firme na razão, suave no trato, aberto à Luz que pode vir até mesmo do contraditório.

A Sabedoria do Grande Arquiteto e a Matemática do Caos

A metáfora onde a matemática divina regula o caos, remete à harmonia universal. A ciência moderna, ao estudar os sistemas complexos, descobriu que a desordem aparente do Universo é regida por leis sutis. O fractal, por exemplo, revela que a irregularidade contém ordem interna. Assim também é o mundo humano: as relações, as discussões, as crises são parte de uma geometria invisível que o Grande Arquiteto do Universo utiliza para moldar o espírito.

Na visão maçônica, o Grande Arquiteto do Universo é o Geômetra Cósmico que desenhou toda a sua criação com linhas harmoniosas de precisão infinita e aparência caótica ao discernimento humano. O que para o homem parece acaso, confusão, para Ele é harmonia. "O que é caos para o homem, é ordem para Deus", dizia Pitágoras. O maçom, ao compreender essa lei, aprende a confiar no processo, mesmo quando o cinzel dói. Ele sabe que cada golpe tem propósito, que cada conflito é degrau, que cada divergência é um convite à transcendência.

A Luz que Nasce da Colisão

A filosofia maçônica ensina que a Luz não é recebida, é conquistada. Surge do esforço de compreender, de dialogar, de suportar o malho da crítica e o cinzel da razão. Concordar é fácil; discordar com amor é divino. O ovo da sabedoria nasce do atrito, e o caos das ideias é o prelúdio da harmonia espiritual.

Quando um irmão diz "eu tenho outro ponto de vista", e o faz com respeito, ele age como o Grande Arquiteto do Universo age: criando novas formas a partir da matéria bruta. Cada ideia polida é uma pedra ajustada no Templo Interior. E assim, entre choques e pausas, entre malhos e cinzéis, constrói-se o edifício da consciência humana, irregular, sim, mas bela como o ovo da vida.

Bibliografia Comentada

1. ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Analisa a tensão entre individualidade e coletividade, base sociológica para compreender o equilíbrio entre autonomia e fraternidade maçônica;

2. GREENLEAF, Robert. Servant Leadership. Moderniza o conceito de liderança ética e participativa, aplicável ao papel do venerável mestre como facilitador do diálogo;

3. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Explica o progresso do espírito por meio da dialética, espelhando a dinâmica maçônica do debate que gera síntese;

4. HERÁCLITO. Fragmentos. "O conflito é o pai de todas as coisas." Introduz a ideia da unidade dos contrários, princípio vital na dialética maçônica;

5. HERMES TRISMEGISTO. Tábua de Esmeralda. Texto hermético que sustenta o princípio da correspondência: o que ocorre no microcosmo humano reflete o macrocosmo universal;

6. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Fundamenta a moral racional que orienta o agir ético, iluminando o equilíbrio entre emoção e dever;

7. PLATÃO. Timeu. Descreve o cosmos como resultado da ordem imposta sobre o caos, base metafísica para compreender o valor do conflito criador;

8. SÊNECA. Cartas a Lucílio. Ensina que a adversidade é o laboratório da virtude, uma leitura estoica do valor da crítica e da resistência;

9. SPINOZA, Baruch. Ética. Obra fundamental sobre a razão como guia da liberdade. A crítica é vista como instrumento de libertação da mente das paixões irracionais;

10. VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento. Daqui se extrai a célebre frase sobre a indiferença, usada como base moral para a fraternidade ativa;



1 As cosmogonias egípcias eram diferentes versões da criação do universo, que coexistiam no antigo Egito. Cada uma se desenvolveu em uma das grandes cidades e era associada ao culto de um deus principal, como a de Heliópolis, que se baseava no deus sol Amon-Rá, ou a de Mênfis, onde o deus Ptah criava o mundo através do pensamento e da palavra. Elementos comuns incluem as águas primordiais do caos (Nun) e o surgimento de um monte primordial (benben);

2 Na filosofia de Platão, o Demiurgo é um "artífice divino" ou "criador" que molda o Universo a partir de uma matéria preexistente, usando as Ideias (formas eternas e perfeitas) como modelo. Diferente de um criador que cria do nada, o Demiurgo organiza o que já existe, buscando a perfeição ao imitá-las, embora o resultado final seja imperfeito devido à natureza caótica da matéria. Ele é visto como um princípio bom e inteligente, comparado a um artesão habilidoso;

3 A moderação dialogal não é um conceito formalmente definido, mas pode ser entendida como uma abordagem à moderação de conteúdo que prioriza a criação de um ambiente de conversação construtivo e participativo, em contraste com o modelo de moderação punitivo. Nela, a mediação é conduzida de forma colaborativa para promover o entendimento mútuo;

4 O Método Caos Produtivo, criado pelo consultor Alexandre Navarro, é uma abordagem de gestão que desafia a ideia de que a produtividade depende apenas de controle e organização absolutos. Inspirado na teoria do caos, que estuda a imprevisibilidade de sistemas complexos, o método defende que é possível encontrar resultados e inovação mesmo em cenários de desordem, incerteza e pressão constantes;

5 A andragogia maçônica não é um conceito formalmente estabelecido ou amplamente discutido, mas a Maçonaria adota naturalmente os princípios da andragogia, a ciência ensinar o adulto a aprender. O processo de aprendizado maçônico, voltado para membros adultos, valoriza a autonomia, a experiência de vida e a motivação intrínseca do maçom, diferentemente da pedagogia, que se aplica ao ensino de crianças;

Um comentário:

mauricio cabeleireiro disse...

Texto belíssimo e profundo ,que nos leva a reflexão que somente aqueles que compreendem tem capacidade de debater com equilíbrio.