segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Ignorância, Fanatismo, Solidariedade e Razão

 Charles Evaldo Boller

Sombras Históricas

A trajetória da humanidade é marcada por contrastes extremos: de um lado, o florescimento do conhecimento, da arte, da ciência e da espiritualidade; de outro, a persistência da ignorância, do fanatismo e da intolerância, que se repetem como sombras históricas. Não se trata de meros desvios pontuais, mas de fenômenos estruturais que, ao longo dos séculos, moldaram sociedades, ditaram guerras, sustentaram tiranias e retardaram o progresso humano.

A Maçonaria, enquanto escola filosófica, espiritual e moral, propõe-se a enfrentar esses males pela via da educação integral, do cultivo da razão equilibrada e da prática da solidariedade fraterna. Ao examinar a tríade formada pela ignorância, fanatismo e solidariedade, deparamo-nos não apenas com conceitos abstratos, mas com forças vivas que, ainda hoje, atuam em nosso cotidiano. Este ensaio busca refletir sobre tais elementos, contextualizando-os na filosofia maçônica e oferecendo aplicações práticas para o aperfeiçoamento individual e coletivo.

A Ignorância: Raiz do Embrutecimento Humano

A ignorância, na tradição filosófica ocidental, não é mera ausência de conhecimento, mas distorção ativa da verdade. Platão, em sua alegoria da caverna, já demonstrava que o ignorante não é apenas aquele que não vê, mas aquele que se acomoda às sombras, resistindo à Luz que liberta.

No mundo contemporâneo, essa definição torna-se ainda mais pertinente. Vivemos na era da informação, em que o conhecimento está acessível de forma nunca antes vista. Contudo, a ignorância persiste porque não se trata apenas de acesso, mas de interpretação crítica, de maturidade intelectual e de disposição ética.

O ignorante moderno pode ter diplomas, acesso à Internet e recursos materiais, mas usa tais instrumentos para manipular, subjugar e ampliar sua esfera de poder. Essa ignorância, cultivada voluntariamente, gera barbárie: guerras digitais, desinformação, discursos de ódio, polarização ideológica.

Do ponto de vista maçônico, a ignorância é o maior obstáculo à Luz. O rito iniciático, que guia o maçom das trevas para a iluminação, simboliza esse combate constante contra a cegueira espiritual. Não se trata de decorar símbolos ou fórmulas, mas de treinar o espírito para discernir, para pensar criticamente, para praticar a autocrítica.

Aplicações Práticas

·         Na vida pessoal: cultivar hábitos de estudo permanente, leitura reflexiva e debates construtivos, reconhecendo a própria limitação e evitando o dogmatismo.

·         Na vida profissional: rejeitar o conhecimento técnico dissociado da ética, aplicando a ciência e a tecnologia para o bem comum.

·         Na vida maçônica: estimular debates em loja que ultrapassem o formalismo ritualístico, transformando-os em exercícios de pensamento crítico coletivo.

O Fanatismo: Distorção da Fé e da Política

O fanatismo, seja religioso, político ou ideológico, constitui a forma mais perversa da ignorância. É uma anomalia da razão, uma hipertrofia da crença que elimina a dúvida, substituindo a busca pelo absoluto com a imposição violenta de certezas.

A história humana está repleta de exemplos: as guerras santas, a Inquisição, os regimes totalitários do século XX, os fundamentalismos contemporâneos. Em todos esses casos, a intolerância se revestiu de linguagem sagrada ou nacionalista, legitimando atrocidades em nome de uma suposta causa maior.

Do ponto de vista psicológico, o fanatismo alimenta-se do medo: medo da liberdade, da diferença, da incerteza. O fanático encontra segurança em respostas simplistas e se entrega cegamente a líderes que prometem salvação ou grandeza.

Na Maçonaria, combate-se o fanatismo pela valorização do livre-pensamento. O maçom é incentivado a respeitar todas as crenças, mas a não se aprisionar a nenhuma forma de absolutismo. A pluralidade de símbolos, de ritos e de tradições espirituais dentro da Ordem expressa a rejeição ao monopólio da verdade.

Aplicações Práticas

·         Na vida social: aprender a dialogar com pessoas de opiniões contrárias, sem buscar impor verdades absolutas, mas construindo consensos razoáveis.

·         Na vida política: exercer a cidadania consciente, evitando o culto a personalidades ou partidos, e defendendo princípios universais de justiça e dignidade.

·         Na vida maçônica: cultivar a tolerância entre irmãos de diferentes credos e visões, reforçando o lema da fraternidade universal.

A Solidariedade: Antídoto Contra a Barbárie

Se a ignorância cega e o fanatismo destroem, a solidariedade constrói. Ela é a manifestação prática da fraternidade, o amor ativo que transcende o individualismo.

Na tradição maçônica, a solidariedade não se confunde com assistencialismo. Trata-se de uma ética profunda, fundada na noção de que a humanidade é uma oficina comum, e cada obreiro deve contribuir para o bem-estar coletivo. A Loja é o laboratório onde se treina a solidariedade que depois se expande para a sociedade profana.

A solidariedade, contudo, exige maturidade espiritual. Não basta doar recursos materiais; é preciso oferecer tempo, atenção, escuta, empatia. Num mundo fragmentado pela competição, a solidariedade resgata a dimensão comunitária da existência.

Aplicações Práticas

·         Na vida familiar: praticar a escuta ativa, o cuidado e o apoio mútuo como expressão cotidiana do amor fraterno.

·         Na vida profissional: desenvolver lideranças solidárias, que compreendem que o sucesso individual depende do crescimento coletivo.

·         Na vida maçônica: criar projetos de mútua ajuda entre irmãos e de impacto social, reforçando a imagem da Ordem como força transformadora da sociedade.

Síntese Filosófica: da Ignorância à Iluminação

A tríade analisada representa um itinerário simbólico. A ignorância é a escuridão inicial, o fanatismo é o fogo destrutivo que consome sem iluminar, e a solidariedade é a chama equilibrada que aquece e orienta.

O trabalho maçônico consiste em transformar a energia bruta do ser humano em força construtiva. Esse processo é comparável à lapidação da pedra bruta: o ignorante é a pedra sem forma; o fanático é a pedra mal esculpida, rígida e frágil; o solidário é a pedra polida, apta a integrar a construção universal.

Nessa visão, a Maçonaria assume papel instrucional: formar homens livres, conscientes e fraternos, capazes de resistir às tentações da ignorância e do fanatismo.

Relevância Contemporânea

No século XXI, a tríade analisada adquire contornos ainda mais desafiadores.

·         Ignorância: alimentada por mentiras, pela superficialidade das redes sociais e pela crise dos sistemas educacionais.

·         Fanatismo: revigorado por discursos populistas e fundamentalismos religiosos que exploram o medo e a insegurança.

·         Solidariedade: fragilizada pelo individualismo exacerbado, pela lógica do consumo e pela mercantilização das relações humanas.

A Maçonaria, diante desse cenário, pode oferecer alternativa. Não como instituição fechada em seus templos, mas como movimento de formação ética e espiritual que inspira seus membros a serem agentes transformadores.

Cultivo da Razão Equilibrada

A ignorância, o fanatismo e a solidariedade constituem não apenas conceitos, mas forças históricas que moldam destinos individuais e coletivos. A Maçonaria, enquanto escola iniciática, oferece um caminho de libertação: da ignorância à iluminação, do fanatismo à tolerância, do egoísmo à solidariedade.

Que o Grande Arquiteto do Universo inspire cada maçom e cada cidadão a praticar a sabedoria, cultivando a razão equilibrada, rejeitando os extremismos e promovendo a fraternidade universal. Assim, a sociedade humana poderá caminhar, mesmo em meio às trevas, rumo à Luz da perfeição moral e espiritual.

Bibliografia Comentada

1.      ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Estudo clássico sobre o fanatismo político, analisando regimes que sacrificaram milhões em nome de ideologias absolutas;

2.      COMENIUS, João Amós. Didática Magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. Referência pedagógica que dialoga com a proposta maçônica de educação universal como antídoto à ignorância;

3.      HUNTER, James C. O monge e o executivo. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. O Aplica o princípio da solidariedade à liderança, mostrando como o serviço e o cuidado com os outros são fundamentos de uma vida ética;

4.      HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. Texto controverso, mas relevante para entender os riscos do fanatismo religioso e político no mundo globalizado;

5.      HUXLEY, Aldous. A filosofia perene. São Paulo: Cultrix, 2006. Apresenta uma síntese de tradições espirituais que combatem o fanatismo e reforçam a solidariedade universal;

6.      KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento?. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Texto seminal para a filosofia maçônica, pois define a saída da menoridade pela autonomia da razão, contrapondo-se tanto à ignorância quanto ao fanatismo;

7.      MACKAY, Albert. Enciclopédia da Maçonaria. São Paulo: Madras, 2007. Compilação de conceitos, símbolos e interpretações da tradição maçônica, útil para relacionar ignorância, fanatismo e solidariedade à filosofia da Ordem;

8.      MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2011. Obra que dialoga diretamente com a proposta maçônica de combater a ignorância através de uma educação integral e solidária;

9.      PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2007. Obra clássica que apresenta a alegoria da caverna, fundamental para compreender a metáfora da ignorância como prisão;

10.  RUSSELL, Bertrand. Por que não sou cristão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002. Crítica lúcida ao fanatismo religioso, mostrando como a fé pode degenerar em dogma opressor quando divorciada da razão;

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