Charles Evaldo Boller
Sombras Históricas
A trajetória da humanidade é marcada por contrastes extremos:
de um lado, o florescimento do conhecimento, da arte, da ciência e da espiritualidade;
de outro, a persistência da ignorância, do fanatismo e da intolerância, que se
repetem como sombras históricas. Não se trata de meros desvios pontuais, mas de
fenômenos estruturais que, ao longo dos séculos, moldaram sociedades, ditaram guerras,
sustentaram tiranias e retardaram o progresso humano.
A Maçonaria, enquanto escola filosófica, espiritual e moral,
propõe-se a enfrentar esses males pela via da educação integral, do
cultivo da razão equilibrada e da prática da solidariedade fraterna.
Ao examinar a tríade formada pela ignorância, fanatismo e solidariedade,
deparamo-nos não apenas com conceitos abstratos, mas com forças vivas que,
ainda hoje, atuam em nosso cotidiano. Este ensaio busca refletir sobre tais
elementos, contextualizando-os na filosofia maçônica e oferecendo aplicações
práticas para o aperfeiçoamento individual e coletivo.
A Ignorância: Raiz do Embrutecimento Humano
A ignorância, na tradição filosófica ocidental, não é mera
ausência de conhecimento, mas distorção ativa da verdade. Platão, em sua
alegoria da caverna, já demonstrava que o ignorante não é apenas aquele que não
vê, mas aquele que se acomoda às sombras, resistindo à Luz que liberta.
No mundo contemporâneo, essa definição torna-se ainda mais
pertinente. Vivemos na era da informação, em que o conhecimento está acessível
de forma nunca antes vista. Contudo, a ignorância persiste porque não se trata
apenas de acesso, mas de interpretação crítica, de maturidade intelectual e de
disposição ética.
O ignorante moderno pode ter diplomas, acesso à Internet e
recursos materiais, mas usa tais instrumentos para manipular, subjugar e
ampliar sua esfera de poder. Essa ignorância, cultivada voluntariamente, gera
barbárie: guerras digitais, desinformação, discursos de ódio, polarização
ideológica.
Do ponto de vista maçônico, a ignorância é o maior obstáculo à
Luz. O rito iniciático, que guia o maçom das trevas para a iluminação, simboliza esse combate constante
contra a cegueira espiritual. Não se trata de decorar símbolos ou fórmulas,
mas de treinar o espírito para discernir, para pensar criticamente, para
praticar a autocrítica.
Aplicações Práticas
·
Na vida pessoal: cultivar hábitos de estudo
permanente, leitura reflexiva e debates construtivos, reconhecendo a própria
limitação e evitando o dogmatismo.
·
Na vida profissional: rejeitar o conhecimento
técnico dissociado da ética, aplicando a ciência e a tecnologia para o bem
comum.
·
Na vida maçônica: estimular debates em loja que
ultrapassem o formalismo ritualístico, transformando-os em exercícios de
pensamento crítico coletivo.
O Fanatismo: Distorção da Fé e da Política
O fanatismo, seja religioso, político ou ideológico, constitui
a forma mais perversa da ignorância. É uma anomalia
da razão, uma hipertrofia da crença que elimina a dúvida,
substituindo a busca pelo absoluto com a imposição violenta de certezas.
A história humana está repleta de exemplos: as guerras santas,
a Inquisição, os regimes totalitários do século XX, os fundamentalismos
contemporâneos. Em todos esses casos, a intolerância se revestiu de linguagem
sagrada ou nacionalista, legitimando atrocidades em nome de uma suposta causa
maior.
Do ponto de vista psicológico, o fanatismo alimenta-se do medo: medo da liberdade, da diferença, da
incerteza. O fanático encontra segurança em respostas simplistas e se entrega
cegamente a líderes que prometem salvação ou grandeza.
Na Maçonaria, combate-se o fanatismo pela valorização do
livre-pensamento. O maçom é incentivado a respeitar todas as crenças, mas a não
se aprisionar a nenhuma forma de absolutismo. A pluralidade de símbolos, de
ritos e de tradições espirituais dentro da Ordem expressa a rejeição ao
monopólio da verdade.
Aplicações Práticas
·
Na vida social: aprender a dialogar com pessoas
de opiniões contrárias, sem buscar impor verdades absolutas, mas construindo
consensos razoáveis.
·
Na vida política: exercer a cidadania
consciente, evitando o culto a personalidades ou partidos, e defendendo
princípios universais de justiça e dignidade.
·
Na vida maçônica: cultivar a tolerância entre
irmãos de diferentes credos e visões, reforçando o lema da fraternidade
universal.
A Solidariedade: Antídoto Contra a Barbárie
Se a ignorância cega e o fanatismo destroem, a solidariedade
constrói. Ela é a manifestação prática da fraternidade, o amor ativo que
transcende o individualismo.
Na tradição maçônica, a solidariedade não se confunde com
assistencialismo. Trata-se de uma ética profunda, fundada na noção de que a
humanidade é uma oficina comum, e cada obreiro deve contribuir para o bem-estar
coletivo. A Loja é o laboratório onde se treina a solidariedade que depois se
expande para a sociedade profana.
A solidariedade, contudo, exige maturidade espiritual. Não
basta doar recursos materiais; é preciso oferecer tempo, atenção, escuta,
empatia. Num mundo fragmentado pela competição, a solidariedade resgata a
dimensão comunitária da existência.
Aplicações Práticas
·
Na vida familiar: praticar a escuta ativa, o
cuidado e o apoio mútuo como expressão cotidiana do amor fraterno.
·
Na vida profissional: desenvolver lideranças
solidárias, que compreendem que o sucesso individual depende do crescimento
coletivo.
·
Na vida maçônica: criar projetos de mútua ajuda
entre irmãos e de impacto social, reforçando a imagem da Ordem como força
transformadora da sociedade.
Síntese Filosófica: da Ignorância à Iluminação
A tríade analisada representa um itinerário simbólico. A ignorância
é a escuridão inicial, o fanatismo é o fogo destrutivo que consome sem
iluminar, e a solidariedade é a chama equilibrada que aquece e orienta.
O trabalho maçônico consiste em transformar a energia bruta do
ser humano em força construtiva. Esse processo é comparável à lapidação da
pedra bruta: o ignorante é a pedra sem forma; o fanático é a
pedra mal esculpida, rígida e frágil; o solidário é a pedra polida, apta
a integrar a construção universal.
Nessa visão, a Maçonaria assume papel instrucional: formar
homens livres, conscientes e fraternos, capazes de resistir às tentações da
ignorância e do fanatismo.
Relevância Contemporânea
No século XXI, a tríade analisada adquire contornos ainda mais desafiadores.
·
Ignorância: alimentada por mentiras, pela
superficialidade das redes sociais e pela crise dos sistemas educacionais.
·
Fanatismo: revigorado por discursos populistas e
fundamentalismos religiosos que exploram o medo e a insegurança.
·
Solidariedade: fragilizada pelo individualismo
exacerbado, pela lógica do consumo e pela mercantilização das relações humanas.
A Maçonaria, diante desse cenário, pode oferecer alternativa.
Não como instituição fechada em seus templos, mas como movimento de formação
ética e espiritual que inspira seus membros a serem agentes transformadores.
Cultivo da Razão Equilibrada
A ignorância, o fanatismo e a solidariedade constituem não
apenas conceitos, mas forças históricas que moldam destinos individuais e
coletivos. A Maçonaria, enquanto escola iniciática, oferece um caminho de
libertação: da ignorância à iluminação, do fanatismo à tolerância, do egoísmo à
solidariedade.
Que o Grande Arquiteto do Universo inspire cada maçom e cada
cidadão a praticar a sabedoria, cultivando
a razão equilibrada, rejeitando os extremismos e promovendo a fraternidade
universal. Assim, a sociedade humana poderá caminhar, mesmo em meio às trevas,
rumo à Luz da perfeição moral e espiritual.
Bibliografia Comentada
1.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. Estudo clássico sobre o fanatismo político,
analisando regimes que sacrificaram milhões em nome de ideologias absolutas;
2.
COMENIUS, João Amós. Didática Magna. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. Referência pedagógica que dialoga com a
proposta maçônica de educação universal como antídoto à ignorância;
3.
HUNTER, James C. O monge e o executivo. Rio de
Janeiro: Sextante, 2004. O Aplica o princípio da solidariedade à liderança,
mostrando como o serviço e o cuidado com os outros são fundamentos de uma vida
ética;
4.
HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações.
Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. Texto controverso, mas relevante para entender
os riscos do fanatismo religioso e político no mundo globalizado;
5.
HUXLEY, Aldous. A filosofia perene. São Paulo:
Cultrix, 2006. Apresenta uma síntese de tradições espirituais que combatem o
fanatismo e reforçam a solidariedade universal;
6.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o
Esclarecimento?. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Texto seminal para a
filosofia maçônica, pois define a saída da menoridade pela autonomia da razão,
contrapondo-se tanto à ignorância quanto ao fanatismo;
7.
MACKAY, Albert. Enciclopédia da Maçonaria. São
Paulo: Madras, 2007. Compilação de conceitos, símbolos e interpretações da
tradição maçônica, útil para relacionar ignorância, fanatismo e solidariedade à
filosofia da Ordem;
8.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à
educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2011. Obra que dialoga diretamente com a
proposta maçônica de combater a ignorância através de uma educação integral e
solidária;
9.
PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena da
Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2007. Obra clássica que apresenta a
alegoria da caverna, fundamental para compreender a metáfora da ignorância como
prisão;
10. RUSSELL,
Bertrand. Por que não sou cristão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.
Crítica lúcida ao fanatismo religioso, mostrando como a fé pode degenerar em
dogma opressor quando divorciada da razão;
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